Quando te oferecem os vegetais, isso é? – a China
Acocorei-me sobre o saco de serapilheira onde estavam meia dúzia de vegetais que uma jovem vendedora de cabelos longos e negros atados num rabo-de-cavalo tinha à venda. Seleccionei dois tomates, uma beringela, uns raminhos de coentros e cebolinho, duas batatas, um ramo de pak-choi (ingredientes para preparar o almoço do dia, que passámos a cozinhar no intervalo das nossas pedaladas, na beira da estrada, para evitar ter de comer a comida plástica à venda nas mercearias e super-mercados).
Devolvi os vegetais à rapariga para serem pesados e pedi a conta – “duo xau quian?”. Como tardava em vir, apontei para os yuans que trazia na carteira com receio que a minha pronuncia fosse incompreensível, mas nada , recebi em troca um sorriso e um abanar veemente das mãos a indicar que o pagamento não ia ser aceite. Voltei a insistir, mas depois de uma resposta que não entendi, mais sorrisos e abanar de mãos, percebi que não valia a pena teimar. Agradeci com vários “xie xies” e, conformada, dirigi-me a um senhor velhote, vestido com a farda azul escura dos dias em que o comunismo era outra coisa (outra coisa mais rigorosa e mais séria), para lhe comprar umas ameixas que tinha num cesto de carregar às costas pousado no chão. Pus umas quantas num saco e mais uma vez, na hora do pagamento – nada, com sorriso de orelha a orelha – parecia um catraio, também não aceitou. Tínhamos mais umas coisas na lista de compras mas mudei de ideias, preferi não abusar da generosidade desta gente simpática e bem-intencionada que parecia ter-nos decretado “o dia do não pagamento”.
Nas primeiras semanas que pedalámos na província de Yunnan, passando por sítios anónimos que não constavam no nosso guia, e muitas vezes, nem mesmo no nosso mapa, descobrimos uma China só nossa que nos abraçava com gestos generosos e simpáticos com inesperada frequência.
Ao viajar de bicicleta fica a sensação de que andamos a unir pontos – os pontos de interesse, os pontos de abastecimento, os pontos entre paisagens a não perder, os pontos históricos…mas muitas vezes onde acabamos mais preenchidos é no espaço de intervalo entre esses pontos.
Weishan – Na cidadela do “Tigre e do Dragão”
Chegámos a Weishan ao início da tarde, de regresso às cidades presentes no nosso guia e no nosso mapa. Procurámos alojamento e depois saímos para explorar a parte histórica da cidade ao sabor lento dos nossos passos.
Foi como se tivéssemos sido transportados para dentro do filme O Tigre e o Dragão. Não ficaríamos espantados se nos passassem por cima da cabeça ninjas voadores nos seus trajes negros, fazendo coreografias de lutas mirabolantes. Mas o espaço entre muralhas com as suas ruelas estreitas revelou-se pacífico e pacato, sem mais do que duas ou três crianças a correr entre risadas na calçada para agitar a ordem das coisas por ali.
As portas de madeira gasta davam acesso ao mundo das casas de negócios tradicionais em espaços escuros e mal iluminados. Uma fábrica artesanal de noodles pendurados à janela, aqui. Outra que vendia, fazia e afiava facas, ali. Além, costureiras com máquinas de dar ao pedal das antigas, envolvidas num enredado de tecidos de várias cores e padrões – quem olhava de relance tinha dificuldade em entender onde acabava a costureira e começavam os tecidos e as linhas e as bobines de fitas coloridas. A destoar, uma ou outra casa de souvenirs, mas nada ofensivo e, certamente, nada na escala do que viemos mais tarde a ver nas cidades de Dali e Lijian, onde o difícil, se não impossível, era encontrar algo que não fosse uma loja de souvenirs, restaurante, hotel ou agência turística.
Weishan foi uma surpresa tão agradável que decidimos inventar um dia de folga na nossa maratona ciclística e ficar outro dia a saborear aquele canto de China antiga. Mas depois do descanso o tique taque do relógio voltou a ouvir-se e seguimos a toque dos seus ponteiros, para ver se conseguíamos chegar perto da fronteira da província de Sichuan antes do nosso visto terminar.
Drama na estrada
Estava tudo a correr tão bem. Os condutores que passavam por nós eram geralmente cautelosos, as estradas calmas – chegámos até a pensar que a má fama das estradas chinesas e dos seus condutores, era exagero total.
À saída de Dali antiga (existe a versão moderna e não turística da cidade a 15 quilómetros), rumámos em direcção ao lago Erhai para fazer cerca de 30 quilómetros nas suas margens. Passámos por aldeia após aldeia, de casas de paredes brancas decoradas, salpicadas entre campos de cultivo com as montanhas nos fundos a fazer de muralha natural.
Entretanto, os caminhos labirínticos que seguiam o lago deixaram de seguir e tivemos que nos juntar a uma estrada principal (a S221), esburacada, com bermas erráticas e trânsito como nunca tínhamos experienciado na China – intenso, pesado e constante.
A primeira subida, na estrada que nos ia levar a Lijian (cidade Património da Humanidade), começa. Entre curva e contra curva, a berma desaparece e, no seu lugar, o fosso – que eu chamo o fosso da morte, muito comum nas estradas Chinesas – e que serve para desviar a água das chuvas e também como devorador de ciclistas, se algum carro os empurrar lá para dentro, ou se os próprios ciclistas se distrairem.
Nem bem tínhamos pedalado duzentos metros já a outra faceta dos condutores chineses começava a revelar-se – a faceta de psicopatas – possuídos como zombies em busca da próxima vítima, que lhes aparece em forma dos que ousam obstruir-lhes a passagem.
O que vivemos naqueles vinte minutos de inferno, que a mim me pareceram uma eternidade, não me vão sair da memória tão depressa.
Comecemos com uma “entrada” de ultrapassagens perigosas feitas pelos inúmeros autocarros, carros, camiões, carros ligeiros, em competição na “pista” de curvas sem visibilidade. Sirva-se depois um ”amuse bouche” temperado de apitos infernais em som estéreo e ”surround”. Como malabarismo final, a gota d´água, o prato principal servido bem quentinho – um autocarro em alta velocidade a ultrapassar um tractor que nos ultrapassava em tangente libertando uma nuvem negra de fumo e um ruído tão trepidante que as minhas entranhas estremeciam. No sentido oposto – tcham, tcham: um camião cheiinho de brita. (E o vacão do condutor do autocarro abranda, ou muda de ideias? Claro que não! Mete-lhe a quinta e segue estrada acima). O resto da malta teve que acomodar a falta de espaço rodoviário o melhor que pode, evitando uma catástrofe digna da primeira página do Correio da Manhã ou do Crime. Nas regras da cabecinha deste zombie esfomeado, possuído pela raiva desmedida causada pelo facto de ter, não um, mas três veículos à sua frente, e dois deles – pasme-se, bicicletas – nada importava, a sua missão era ultrapassar até à morte! Tenho a certeza que se ouviam as suas gargalhadas “draculianas” – Uahhhaahaaha, enquanto os passageiros fechavam os olhos e pensavam nos pauzinhos de incenso que iam queimar ao Buda se sobrevivessem à viagem, (não vejo grandes probabilidades nisto ter acontecido, mas quem sabe, milagres acontecem todos os dias).
Naquele momento vi a coisa mal parada. Cada” macaco no seu galho” e o meu não era aquela estrada, a menos que quisesse acabar o dia como a bicharada dos desenhos animados – a servir de tatuagem ao alcatrão. Bati o pé. Por ali não seguia. E o Nuno que não me viesse com histórias de que o cicloturismo também são estradas com trânsito e dias menos bons . Não veio. Quando se juntou a mim, no desvio que fiz até à outra berma mais espaçosa, deve ter visto o terror espelhado nos meus olhos e quando lhe disse que não fazia tenções de continuar por aquela estrada, respondeu com olhos de carinho e compreensão, que estava bem e que se arranjaria alternativa. Mas o quê? O trânsito não abrandava. A outra estrada que víamos ao longe, era tão ou mais concorrida do que a estrada onde nos encontrávamos…como é que íamos sair dali?
Males que vêm por bem!
Há coisas surreais, e o que nos aconteceu é uma delas. Entre as duas estradas suicidas havia uma auto-estrada em construção. Do alto da estrada onde parámos a ponderar as nossas opções, vimos passar carros das obras e decidimos fazer um corta-mato com as bicicletas na mão a ver se encontrávamos entrada para a auto-estrada. Ela apareceu na forma de uma ponte cujas extremidades ainda não estavam niveladas. Depois de alguma ginástica, tira e poem alforges, atravessámos a ponte e entrámos sem mais obstruções na estrada dos nossos sonhos: duas vias com uso quase exclusivo e sem pagar portagem!
Ninguém parecia muito preocupado com a nossa presença, e por isso seguimos sem problemas uns vinte quilómetros até que nos apareceu um túnel à frente. Ó diacho, e agora? Será que está terminado? Será que podemos passar? Os construtores na beira da estrada acenaram que sim. Três quilómetros de escuridão mais tarde víamos de novo a luz do dia e poupávamos as pernas de subida certa, ou pior, ter que voltar para trás e encontrar a saída.
Fizemos cerca de sessenta quilómetros na auto-estrada por estrear para Lijian. A distância era maior mas poupámos em tempo – era tudo a direito, mesmo com todas as montanhas à nossa volta. Só deixámos o conforto das quatro faixas de rodagem porque o sol já se punha, não tínhamos água suficiente e sem estações de serviço à vista (isso já era pedir muito) não podíamos acampar. Saímos numa povoação de beira de estrada e na manhã seguinte partimos bem cedo de regresso à outra estrada suicida, praticamente vazia nas primeiras horas do dia. Desistimos da ideia de regressar à auto-estrada porque segundo percebemos estava interrompida e impassável num outro túnel que havia mais à frente.
No Desfiladeiro do Salto do Tigre
Ao final de 23 dias na província de Yunnan com 1,100 quilómetros percorridos chegávamos a Qiaotou, nas margens do rio Yantgtze, um dos maiores da china. Estávamos a 90 quilómetros do nosso objectivo, que era a cidade de Shangri-la, íamos conseguir terminar a etapa com sucesso – ou tudo assim o indicava.
Qiaotou é uma pequena vila feia e suja, ponto de passagem e entrada, para os que como nós querem fazer a caminhada ao longo do Desfiladeiro do Salto do Tigre. Estávamos com tempo e por isso trocámos os pedais pelas botas de calcorreadas durante três dias.
É um passeio de cortar a respiração (em todos os sentidos) mas gratificante. O rio segue furioso ao longo do sopé das montanhas, que em partes chegam a ter mais de 5 mil metros de altura. O caminho é uma linha estreita com vistas panorâmicas do desfiladeiro aos nossos pés e dos monstros de rocha pura em cima das nossas cabeças. Nas pausas, aldeias tibetanas com alojamento no seio daquela paisagem imensa.
No último dia decidimos fazer o regresso a pé pela estrada que estava parcialmente fechada devido a uma derrocada. Contra a insistência do Nuno, que afirmava a pés juntos, mesmo sem nunca ali ter estado, que haveriam muitos sitíos pelo caminho para comprar água, segui os meus instintos e comprei uma garrafa de litro e meio (que nos custou os olhos da cara – 2 euros). É que mesmo não bebendo água suficiente, não gosto de andar desprevenida e tínhamos uma caminhada de 22 dois quilómetros pela frente, com o sol já aquecer tudo e todos à sua volta e sem garantias de que houvesse ponto de abastecimento pelo caminho. O litro e meio de água foi claramente insuficiente para a caminhada de vinte quilómetros debaixo do sol escaldante – não encontrámos nenhuma loja até pouco antes de chegarmos à aldeia.
Resultado no dia seguinte: não estávamos em condições para nos nos fazer às bikes, sobretudo o Nuno, que acordou com os sintomas de desidratação e insolação e estava com febre. A coisa piorou, quando a febre do Nuno passou mas foi substituída por uma dor de costas e barriga agonizantes, que teimavam em não passar. O Nuno insitiu em avançar, mas não era uma decisão sensata seguir naquele estado, particularmente quando Shangri-La ficava acima dos 3200 metros de altitude. Viajar também é reconhecer que por vezes o melhor é não ir a lado nenhum.
Mas tínhamos que começar a pensar na melhor forma de chegar até Macau. O nosso visto acabava dentro de quatro dias e o Nuno já não tinha páginas livres no seu passaporte. Será que com esta maré de azares íamos conseguir sair do país a tempo, obter um passaporte novo e estender o visto? A próxima história que nos leva por terras de Macau e Hong Kong (e para longe das nossas bikes) revela a resposta a estas perguntas.
Para quem está a pensar visitar a província de Yunnan não podem perder o Desfiladeiro do Salto do Tigre, ou Desfiladeiro Hutiao, como também é conhecido.
Em baixo deixamos umas dicas e a descrição do que fizemos para que aproveitem ao máximo os vossos dias lá.
Ir com tempo para disfrutar esta parte do mundo, vale a pena cada minuto.
Nós dividimos o percurso em três dias (a maioria das pessoas passa um ou dois, na melhor das hipóteses) e adorámos cada minuto. Se gostam de natureza, aldeias remotas e cenários dramáticos então é melhor não ter pressas e ir com tempo para saborear.
A caminhada no percurso mais alto é a melhor forma de ver o desfiladeiro.
O percurso pode ser feito num dia se estiveres em boa forma, embora pensemos que isso não te dê tempo para apreciar o que te rodeia com a devida atenção. Dois é o suficiente, e três, ideal se tiveres tempo e quiseres fazer as coisas nas calmas. O percurso alto são cerca de 25 kilómetros com partes puxadas e bem inclinadas. Nós decidimos regressar pelo caminho de baixo (acrescentando mais 23 kms), que segue junto ao rio Yangtze numa estrada alcatroada. Quando por lá passámos no verão de 2013, estava parcialmente fechada devido a uma derrocada por isso fazia-se bem a pé – não havia autocarros cheios de turistas e a estrada praticamente vazia.
Levar o mínimo
Não vale a pena encher as mochilas com muita coisa, porque há sítios pelo caminho para comprar comida e bebida. Nós encontrámos vários sítios onde até vendiam “Snickers”! Os que preferem opções mais saudáveis há fruta e comida local deliciosa. A mochila pequena carregada apenas com uma muda de roupa, um agasalho, algo para a chuva, papel higiénico, escova de dentes e a máquina fotográfica é bagagem mais do que suficiente.
Logística
Deixámos as nossas bikes e alforges na Jane´s Guest House e ficámos lá uma noite antes da caminhada. A maioria das pessoas chegam de Lijiang ou de Shangri-la a Quiatou, deixam as mochilas na guest-house e seguem para aproveitar o resto do dia para fazer a caminhada. (Se não ficares alojado na guest-house eles cobram por guardar a bagagem, cerca de meio euro, 5 yuan).
A cerca de 2 kilometros depois de se começar a caminhada existe uma guest-house – Naxi Guest-House – que serve comida deliciosa e está numa aldeia bem mais bonita que Quiatou. Eles oferecem a opção de levar as malas/mochila no final da caminhada. É uma opção a ponderar para os que não se importarem de subir uns quilómetros com as malas grandes às costas. Nós comemos lá um pequeno almoço – omelete com vegetais, que era uma espécie de pizza vegetariana, que recomendamos, e o café local também era delicioso.
Depois desta aldeia o caminho e a subida começam a sério. Sobem-se as famosas 28 curvas de cotovelo antes de chegar ao topo.( Se eram 28, não confirmamos, confessamos que perdemos a conta e o folego). Se estiveres muito aflito/a, há uns tipos constantemente a insistirem se não queres ir de burro, ou que te levem a tua mochila. No topo, há uma senhora a vender bebidas, frutas e canábis, nem mais! E a pedir 8 yuan ( 1 euro) para tirares um foto numa pedra entre bandeiras lá no topo. (A senhora fuma daquilo que vende com certeza). Depois é tudo a descer até se chegar a outra guest-house – a Tea Horse, que foi onde passámos a noite. A comida aqui é barata e boa e a “mama” e os seus ajudantes (família provavelmente) são bastante simpáticos. Os quartos é que não são muito baratos a 80 yuan (10 euros) e com a casa de banho compartida a uns 100 metros fora da casa e não propriamente a mais moderna ou com as melhores facilidades. Paga-se pelas vistas. Mas há quartos com casa de banho privada para os que têm orçamento.
Na manhã seguinte depois de uns 3 kms de caminhada, quando passámos pela Half-Way guest-house, onde tínhamos considerado pernoitar na noite anterior para avançar um pouco mais, ficámos contentes em não o ter feito porque a malta aqui não parecia ser tão simpática, os preços da comida eram mais puxados e pior de tudo, a comida não era nada de especial. O percurso fica ainda mais interessante depois da aldeia onde está a Half-way guest- house, mas para os que sofrem de vertigens o melhor é não olhar para os lados. Passa-se por umas cataratas, o caminho em partes é escavado na rocha e depois vem uma descida ingreme e longa, até à zona que aparece no mapa como Walnut Garden. Aqui podes regressar numa mini-van (organizar com a Tina guest- house – o primeiro sitio que vês quando chegas ao alcatrão, ou ter o transporte já organizado de Quiatou).
Podes ainda descer até ao rio, por um dos caminhos que os locais mantêm e cobram para passagem. Vale a pena porque é espectacular ver o e ouvir o rio numa das partes onde o desfiladeiro é mais cavado. Mas é uma senhora descida e se chover, algo perigosa.
Nós ficámos mais uma noite no River Café Guest-House (no edifício em cimento, não o tibetano). E o quarto tinha casa de banho privada era novo a estrear e com as melhores vistas do desfiladeiro. Um dos sítios mais bonitos onde ficamos em toda a viagem e pelo mesmo preço que pagámos pelo quarto na Half-way guest- house 80 yuan.Nesse mesmo dia andámos mais um pouco e fomos almoçar à Tibetan guest-house, um sitio acolhedor, arquitectura tradicional tibetana.
No dia seguinte regressámos estrada fora nos 23 kms de regresso. Se têm intenções de fazer o mesmo, levar água com fartura, porque não há nada pelo caminho.
Cada guest-house tem uma versão de um mapa do percurso desenhado. O caminho também está bem marcado por isso é pouco provável que alguém se perca, mas aqui fica uma cópia para as preparações.
Entrada para o desfiladeiro, paga em Quiatou, 65 Yuan (8 Euros).
Boa caminhada.
Escrito em Junho de 2013