Hekou, entrada pelas portas das traseiras
O que esperar de um país com um quinto da população mundial, onde a cada minuto nascem 34 novos seres, que é também o quarto maior do planeta, com mais de 9 milhões e meio de quilómetros quadrados, e possivelmente o berço da civilização contínua mais antiga da história da humanidade? O que esperar de um país com uma cultura e uma forma de ser tão diferente, que visto à distância parece personificar o antagonismo do muito do que nos é familiar? – Não esperar nada e estar preparado para tudo – abrir a mente, deixar para trás as ideias pré-concebidas e acabar surpreendido, é essa a lição que a China tem à espera dos que ousam desvendá-la!
No dia 503 da nossa viagem, no início de uma tarde de céus pardos, depois de minutos que nos pareceram horas enquanto os nossos passaportes eram escrutinados meticulosamente pelo oficial da fronteira e os seus superiores e finalmente carimbados depois de muita hesitação, entrávamos na China com as nossas bikes em punho, um país ao qual, para bem, teríamos que nos habituar. Íamos levar pelo menos quatro meses a atravessá-lo, desde o nosso ponto de entrada pelas portas das traseiras, no Sul em Hekou, até às suas fronteiras com a ásia central às portas do Quirguistão, no Noroeste.
As diferenças separadas apenas pelo rio lamacento ausente da cor que lhe dá o nome -Vermelho, eram muitas. Hekou, mesmo sendo uma cidade de província esquecida nos confins da província de Yunan, era visivelmente mais desenvolvida do que a sua homónima vizinha, Lau Cai, na outra margem do rio no Vietnam. O contraste entre a limpeza, a organização, os edifícios, os veículos, as pessoas, até a existência de passeios funcionais, era gritante, mas foi bom constatar que a vida aqui também se traz para as ruas e que aqui as ruas também são das pessoas. No final da tarde as praças encheram-se de gente a fazer exercício, os restaurantes de bancos baixos a transbordar de odores vindos de recipientes fumegantes e ingredientes vivos e pessoas com apetite, os mercados com frutas e vegetais e os sons de pregões a ecoar pelos becos e bairros.
Na China entender, os sinais
Na manhã seguinte, com o sol matinal já a aquecer mais do que o desejado, mas cheios de entusiamo e curiosidade que se segue à entrada de um país novo, seguimos viagem rumo a Norte por uma estrada secundária tranquila coberta pela copa frondosa e verdejante das árvores que se abraçavam sobre as nossas cabeças. A G326 seguia as margens do rio Vermelho, mas sobre ela passavam por vezes, para além das copas da árvores, os viadutos de uma auto-estrada que ia na mesma direcção mas quase em linha recta, prescindindo das subidas e das descidas, desaparecendo montanha adentro ou ganhando pernas colossais de cimento para evitar os desníveis do percurso.
Desenhar uma rota na China, sobretudo em áreas remotas e não muito pisadas pelas botas dos turistas tem que se lhe diga. No dia da nossa chegada a Hekou tínhamos corrido a cidade em busca de um mapa que nos facilitasse a vida e que tivesse os nomes das localizações tanto no alfabeto latino como nos caracteres chineses, mas foi uma busca inglória. Os mapas que encontrámos estavam, como seria de esperar, escritos só em Chinês e a maioria das indicações na estrada, idem, idem, aspas, aspas. O Nuno, que é o “route-manager”, viu acrescentadas às suas funções, o desafio adicional de descodificar os sinais Chineses tal como num jogo de “descubra as diferenças”. A coisa é um bocado assim: os traços parecem um homem a fazer malabarismo em cima de um baloiço, ao lado de uma balança, onde está encostado um outro homem à espera em frente de uma cadeira romana em cima da qual está uma espécie de T com dois traços, com uma chave de fendas virada ao contrário pendurada – ora temos então: Xinjie – fácil!
O sistema de escrita chinesa é feito à base de hieróglifos e estima-se que seja também o mais antigo do mundo. Com mais de seis mil anos de existência, suponho que nesta época dos primórdios da civilização humana não fosse prioridade criar um sistema de escrita simples e como resultado o que temos nos dias de hoje, mesmo com todas as modernizações, é um sistema onde cada palavra corresponde a um símbolo e onde existem mais de 30 mil símbolos diferentes correspondentes às diferentes palavras. Com o conhecimento de 5 a 6 mil caracteres já se consegue ler e escrever com facilidade, mas mesmo assim é difícil não ficar desanimado com o que parece uma aprendizagem hercúlea. Valha-nos saber que muitos dos caracteres são uma espécie de representação simplificada do objecto a que se referem, mas só mesmo um olho aguçado e um bom sentido de orientação nos vão permitindo avançar na direcção certa. Isso, e o GPS, admitimos!
Relógios nas paredes, cama à vista
Ao fim da primeira jornada de pedaladas, já o dia se escondia por trás do manto escuro da noite, chegávamos a Xinjie onde decidimos pernoitar. Mesmo na semi obscuridade do final da tarde aquela vila de beira de estrada não conseguia ofuscar o facto triste de que a beleza se tinha esquecido de passar por ali. Parecia saída de uma descrição dickensiana da revolução industrial, feita de cinzento, fumo, pó, lixo, edifícios de cimento manchados de humidades e descuidos, habitada por gente densa e com ar cansado.
Ali pusemos em prática uma dica, quase anedótica, que outro ciclista nos tinha dado sobre como encontrar sítio para dormir na China – “sítios com relógios pendurados nas paredes”. Logo à entrada da vila, com três relógios pendurados, vimos uma espécie de entrada para um prédio prometedora. Entrámos, fizemos o gesto universal de quem procura sítio para dormir – as palmas da mão juntas postas ao lado do rosto meio inclinado. O rapaz por detrás do balcão abanou a cabeça a dizer que sim e depois de uma inspecção e o preço negociado, tínhamos quarto para a nossa segunda noite na China. Funciona. Mas há mais que descobrimos sobre a arte de encontrar alojamento na China, quando a palavra “guest-house” ou hotel, está a milhas de ser vista. Relógios. Quanto menos relógios tiverem pendurados, mais baratinho é o quarto, se houver muitos relógios, assim por exemplo a dar as horas de Nova York e Londres, está certamente para lá das nossas possibilidades – o melhor é o fuso horário não passar de Bangcoque. Na falta de relógios é procurar restaurantes com escadas na sala de comer, ou janelas num prédio com ares condicionados e cortinas iguais. E perguntar, afinal já dizem os ditados e com muita razão – “perguntar não ofende” e “quem tem boca vai a Roma”, ou neste caso, vai à China. Os sinais de KTV – Karaoke TV, também são auspiciosos de sítios com cama, embora não de uma noite tranquila. Incluído no preço vem também a banda sonora dispensável de passar a noite a ouvir gente desafinada, como gatos no cio, a cantar canções de amor chinesas fora de tom e em “repeat”.
Em último caso, e porque pode ser um verdadeiro desafio encontrar sítio para passar a noite, mesmo que as palavras hotel estejam bem escarrapachadas à entrada – algo a ver com o facto de todos os estrangeiros terem, em teoria, de estar registados com a polícia e muitos donos de hotéis e pensões não estarem para ter trabalho – há os hotéis dos prazeres carnais à hora, e embora não sejam fáceis de discernir dos outros, muitos também têm relógios nas parede e o sinal hotel, os donos ou recepcionistas parecem sempre mais do que felizes em que fiquemos lá alojados e nunca se preocupam muito com passaportes ou registos. Não é de surpreender porém se a meio da noite nos vier bater à porta uma “coelhinha playboy” que se enganou no número do quarto onde os seus serviços eram requisitados.
Para comer – apontar
Na manhã seguinte nem os raios de sol trouxeram um pouco de beleza à vila desolada que era Xinjie. O sítio era verdadeiramente feio, não havia ponta por onde se lhe pegasse. Na noite anterior, quando saímos à procura de sítio para comer, havia uma vaca presa às grades de uma ponte. Pareceu-nos estranho, porque é que alguém deixaria ali o animal sendo que metade do seu corpo obstruía a via? E talvez seja imaginação minha, mas a vaca sabia o seu destino, era impossível não reparar nos seus olhos lúgubres e vazios. Na manhã seguinte quando saímos já com as nossas bikes, uma imagem saída de um filme de terror, lá estava a mesma vaca, hirta e morta no chão, exactamente no mesmo sítio da noite anterior e ainda com a corda a prendê-la à ponte. No chão um fio de sangue, e de volta dela um homem de maçarico na mão a esturricar-lhe a pele. Porque raio é que se mata uma vaca no meio da rua e quase no meio da estrada? A única resposta que posso encontrar é que o dono quisesse que o animal fosse atropelado, para poupar o trabalho de ter de o matar, mas, fosse lá o que fosse, que aquilo não era espectáculo para assistir nas primeiras horas do dia, isso não era. E, na realidade, nem a qualquer outra hora do dia. Seguimos a bom ritmo, desejosos de nos distanciarmos daquele sítio dantesco e com a clara impressão de que na China tudo é possível.
Ao contrário das nossas piores expectativas – que já nos imaginávamos com coisas estranhíssimas no prato -foi relativamente fácil pedir comida, assim com saber o que nos aparecia no prato. Nesta parte da China, um pouco por toda a província de Yunnan, existe um novo conceito de restaurante – que acrescentámos ao nosso léxico de ciclovagabundos – os restaurantes frigorífico. Tal como o nome indica, têm um ou mais frigoríficos, onde estão os ingredientes para os quais se aponta. Escolhido o menu, que geralmente consiste num ou dois vegetais, ovos, carne ou peixe, a cozinheira pergunta algo que deduzimos ser – como é que queremos os ingredientes cozinhados e em que combinação – ao que nós respondemos fazendo o som de comida a ser salteada “tchhhhh”,”tchhhh”, mais os gestos de quem tem um wok nas mãos, e depois voltamos a apontar para os ingredientes criando combinações possíveis, que nem sempre são aprovadas pelo cozinheiro, o que nos obriga a reavaliar as nossas escolhas e repetir o processo mais uma vez. Como acompanhamento dos nossos pratos vem sempre uma grande taça de arroz branco, e para beber, oferta da casa, chá, que o Nuno diz que sabe a água de cozer relva.
À parte de uma vez que nos apareceu tudo cozido (parecia comida de hospital – alguém confundiu a nossa imitação de comida a ser frita com comida a ser cozida, como é possível?), regra geral a coisa têm-nos saído e sabido bem. A comida chinesa por estas partes não só é deliciosa como bastante fresca e saudável.
Yunnan – estamos numa missão
Foi com sentido de missão que entrámos na China. Estávamos determinados a pedalar o que segundo as nossas estimativas seriam mais de 4000 quilómetros nas cinco das maiores e mais remotas províncias do país, tínhamos uma média de 1000 quilómetros para pedalar por mês, durante quatro meses, em terreno de montanha e parte dele em altitude, por isso o tempo teria que ser bem gerido e os dias de folga – merecidos. O ritmo relaxado dos últimos seis meses ia fazer parte do passado. Mas como olhar a uma tarefa tão intensa e não desanimar antes mesmo de a começar? Dividir as coisas por partes, determinar objectivos semanais concretos e seguir um dia de cada vez.
Atravessar a província de Yunnan até à fronteira no Norte com Sichuan, perto do Tibet, onde não podemos entrar de forma independente, foi a nossa primeira etapa neste país gigântico, e como só tínhamos um mês de visto, deixaríamos as bikes até onde chegássemos, enfiar-nos-íamos em transportes públicos para fazer mais de dois mil quilómetros até Macau e Hong Kong onde renovaríamos o passaporte do Nuno que estava já sem páginas para mais vistos e estenderíamos o visto por mais três meses.
De Hekou a Nanjian as pedaladas foram seguindo sem percalços. Muito sobe e desce com alguns dias de chuva mas sobretudo muitos dias de sol esturricante, as estradas secundárias que o Nuno encontrava no seu mapa de hieróglifos, levaram-nos a bom ritmo rumo ao Norte, por entre aldeias de adobe, campos de cultivo de perder de vista e cidades esporádicas brotadas do nada. Levaram-nos também para o seio de uma China esquecida, mas bem real, longe das rotas dos tours numerosos que acompanham os sítios turísticos e sem pôr o olho num único estrangeiro durante mais de duas semanas. Com 14 dias, 754 quilómetros pedalados, conseguiríamos alcançar Shangri-la, a meta da nossa primeira etapa a tempo, a mais de 800 quilómetros de distância? A ver o que revelam as nossas próximas histórias da estrada neste país.