A Caracórum
Falar da Estrada de Caracórum é falar da estrada que liga a China ao Paquistão. É falar de 1300 quilómetros da que é considerada a estrada internacional pavimentada mais alta do mundo – no passe de Khunjerahb a 4693 metros acima do nível do mar – embora esta distinção, como qualquer distinção deste tipo, seja questionável, neste caso porque aparentemente alcatrão é coisa que não abunda muito no lado paquistanês. É falar no desafio de engenharia que envolveu a construção de uma via metida nas encostas verticais de três cordilheiras colossais – os Himalaias, o Hindukush e a Caracórum. É falar das mais de mil pessoas que padeceram entre 1959 a 1979 (entre trabalhadores paquistaneses e chineses) para que a estrada pudesse existir. É falar de como a China investe milhares de yuans para que a estrada continue a ser uma via de interligação entre os bens que têm para vender ao mundo, o gás natural e outros recursos naturais que precisam para saciar a sua sede de energia, e a presença que lhes é essencial marcar na região. Para nós, falar da Caracórum é tão simplesmente falar de uma estrada mítica e simbólica que nos embrenharia numa paisagem de cumes brancos, aldeias perdidas no tempo e acima de tudo – uma estrada ideal para percorrer sobre duas rodas.
Pedalar a Caracórum na sua totalidade fazia parte dos nossos esboços de iniciais de viagem. Mas o desenho final traçou uma pintura um pouco diferente, condicionada por factores como o inverno que nos apanharia nos Himalaias, caso seguíssemos pelo Paquistão até ao norte da Indía, e o ter que recorrer de novo a transportes para ultrapassar alguma passagem menos segura pelo Paquistão. A opção de seguir pela Ásia Central era o traço lógico, pelo menos para ver se era desta que finalmente conseguíamos ultrapassar as barreiras logistícas e assentar as rodas das nossas bikes na estrada, de uma vez por todas, até chegarmos a casa.
Estávamos em Kashgar, a cidade chinesa onde a Caracórum começa (ou termina) e com uns quantos dias suficientes no visto para seguir até à fronteira do Paquistão e regressar . Era uma forma incompleta de fazer este percurso mas concordámos sem grandes hesitações que era melhor fazer pouco do que não fazer nada, mesmo tendo que regressar pelo mesmo caminho.
De bicicleta na Caracórum
Depois de quatro dias em Kashgar seguimos nas nossas bikes rumo a sul, rumo ao Paquistão, o país para onde não iríamos.
Kashgar é uma espécie de oásis urbano no meio do deserto amarelo que o rodeia. Nos primeiros noventa quilómetros de Kashgar, ao longo do rio Ghez e dos engenhosos sistemas de irrigação que o acompanham e que são um linha de vida de onde brotam álamos que alinham a estrada e a estampam com a sombra das suas braças verticais, escondendo por detrás de si as outras árvores que carregam nas suas ramas as frutas doces e arómaticas pelas quais a região é conhecida e também os recintos íntimos, metidos entre os muros das casas cuja arquitectura nos fala da Ásia Central Uigur e não da China Han.
A estrada nestes primeiros quilómetros é quase plana, e as pernas ao pedalar esquecem-se de que estão a subir. Os companheiros de alcatrão são os muitos burros e as gentes que viajam nas suas carroças carregadas com hastes secas de milho, palha, fruta…o que sai da terra e lhes dá sustento. Um ou outro carro, que passa por nós como se o condutor se tivesse esquecido do pé no acelerador. Os incontáveis camiões – uns carregando terra de um lado para o outro, como se tornou visão comum na China, outros com bens mais materiais, rumo a algum destino onde serão vendidos nos muitos bazares que ligam, tal como os camelos e os mercadores da antiga rota da seda dos tempos doutrora.
No final da primeira noite as montanhas já se avistavam entre a bruma arenosa que tingia o ar. No meio de umas protuberâncias rochosas que encontrámos para esconder a nossa tenda à beira do rio Ghez, montámos acampamento. Nessa noite, quando a própria noite era ainda pouco mais do que escuridão insípida, ao borbulhar do rio veio juntar-se o som e a luz recortada de um trovoada intensa que se aproximou do acampamento. Depois de uma história que a minha avó me contou quando eu era ainda pequena, de um relâmpago que entrou pela casa adentro – que tenho pavor a trovoadas, sobretudo quando me vejo acampada no meio do nada sem que ao meu redor exista algo metálico que que possa retrair as intenções de um raio desabar nas nossas cabeças, que não seja a tenda ou as bicicletas. Mas passou e no seu rasto amanheceu um dia claro e límpido revelando na distância as montanhas nevadas para onde nos levaria a nossa estrada, a G314, como a Caracórum é abreviada para caber nos marcos da estrada chinesas.
O vale do rio Ghez estreita e as suas cores como que apertadas na falta de espaço tornam-se num vermelho rosado que gritava em voz alta com o azul do céu, como que a fazer questão em delinear as diferenças e dizer que é feito de matéria diferente. E estreita, estreita, de tal maneira que a determinado ponto a estrada mais não é do que uma varanda esculpida nas faces da montanha rochosa, à qual olhando para cima não se vislumbra o fim e para baixo, o precipício do rio que segue cinzento dos detritos que nele são depositados pelas muitas explorações mineiras.
Depois da subida longa, sempre metidos no intervalo apertado das montanhas, os braços do vale abrem e já nas altitudes por cima dos três mil metros o espaço volta a ter espaço e junto com os céus, une-se a um lago artificial rodeado por dunas de areia enrugadas pelos sopros do vento onde acampamos mais uma noite. A estrada, sempre ondulante, seguiu até nos levar no dia seguinte a outro lago – o Karakul. Aqui a vida dos pastores nómadas, como é vivida no país vizinho – o Quirgistão, desenrolava-se alheia a fronteiras.
Dores de barriga e outros desconfortos na estrada
Era claro que o que quer que estivesse a afectar o Nuno, obrigando-o a paragens constantes na beira da estrada para se ir aliviar, não me estava a afectar a mim – já lá iam quatro dias. Mas quando uma dor de barriga forte e uma vontade tremenda de ir à casa de banho me assaltou a meio da noite, obrigando-me a desenlaçar-me dos meus dois sacos de cama que carrego para me precaver quando as temperaturas nocturnas descem (algo que a maioria dos cicloturistas considera pura excentricidade), a abrir os fechos da tenda à pressa e procurar no frio e escuro da noite um sítio para aliviar os meus intestinos, soube que afinal também tinha sido vítima da “maldição” de Kashgar, que parece afectar a maioria dos recém-chegados à zona.
Fosse lá pelos shish-kebabs vendidos nas ruas, preparados sob os mais altos standards de falta de higiene, ou a restante comida de rua que arriscámos comer nas bancadas do mercado, na curiosidade natural de experimentar os gostos locais na ilusão de que os nossos estômagos já tinham tido tempo de se aclimatizar às intempéries gastronómica às quais por vezes os expúnhamos, o facto é que errámos rotundamente e acabámos por pagar pelo descuido com uma indisposição que durou vários dias e que relutantemente deixou os nossos corpos só depois de um tratamento a antibióticos.
O mais embaraçoso é que andávamos a viajar há já dois dias com o Tim e a Rebecca, um casal de ingleses, recém-casados a pedalar da Croácia até à China – que tínhamos conhecido em Kashgar e que acabámos por reencontrar na estrada e seguido juntos Caracórum acima. Mas por alguma infeliz coincidência, nessa noite, tinham decido montar a tenda tão próxima da nossa (mesmo com todo o espaço proporcionado pelas margens amplas e cénicas do lago Karakul) que quase conseguíamos ouvir a sua respiração.
Na manhã seguinte, com a cabeça a sair da tenda e o ar de quem ainda lhe apetecia dormir mais umas horitas, as primeiras palavras do Tim foram: “o que é que vos aconteceu ontem à noite? Pensei que a vossa tenda se estava a rasgar com a força do vento. Não percebia se eram os fechos, ou vocês a reparar a tenda com fita cola…”
– “Não Tim, é a “maldição” de Kashgar, parece que agora é a vez da Joana”. Respondeu o Nuno enquanto dava à bomba do fogão para começar a preparar o pequeno almoço.
-“Ah!Estou a ver…que chatice”.
Sem dúvida, mas estas coisas acontecem e passar um dia a recuperar energias e a compostura intestinal acampados à beira de um lago espelho, pintado com os reflexos dos glaciares colossais à sua volta e as manadas de yaks nas suas deambulações ruminantes não muito longe da tenda, não é a pior coisa que nos poderia acontecer. Mas continuar de bicicleta até Tasqurgan, a aldeia chinesa onde a maioria dos seus habitantes é tadjique, a cerca de 60 quilómetros a sul,e até à qual é permitido aos estrangeiros seguirem sem a necessidade de visto para o Paquistão, foi abandonada.
O casal de ingleses deixou-nos essa manhã para regressar a Kashgar (provavelmente com desejos de não passar mais uma noite sob a banda sonora de fechos a abrir e a fechar e outras sonoridades do foro gasoso) e nós aproveitámos para tirar o dia de folga para respirar e desfrutar aquela paisagem de silêncios e reflexos aquáticos e recuperar forças para o regresso de 200 quilómetros, estrada abaixo.
Kashgar, encontro de cicloturistas
Há sítios que são como funis – Kashgar é um deles – um centro de confluência de viajantes vindos da Ásia Central rumando à China ( e alguns para o Paquistão) e vice-versa, como no nosso caso.
E é também uma cidade de importância histórica por onde no passado passavam as caravanas carregadas com mercadorias, provenientes do ocidente, da Ásia Central e da China, unindo o Ocidente e o Oriente, através de uma teia de estradas às quais damos o nome da Rota da Seda. Aqui é fácil imaginar a co-existência de gentes vindas de toda a Eurásia, contando histórias de terras distantes, peripécias de viagem…
A fumaceira do hostel – o Pamir Loge, proveniente do grelhador do restaurante da rua em baixo, não parecia demover os viajantes que se congregavam no telhado-varanda e que servia também de sala de convívio. Mesmo no meio da fumaçada e do cheiro a carne de carneiro grelhada, que depois nos ficava entranhada nos forros polares e nas t-shirts sintéticas de material respirável, a vontade de compartir aventuras e desventuras de viagem e histórias de vida parecia ser bem maior do que o desconforto de respirar o ar pouco respirável.
Mesmo sem nada para vender, mesmo não sendo comerciantes ou mercadores, era inevitável reminiscer a tempos idos, naquela mesma cidade, naquelas mesmas ruas, envolvidos numa qualquer outra nuvem de fumo, ali se trocavam histórias, se não semelhantes no seu conteúdo, talvez parecidas no sentimento que as alinha com a descoberta e a aventura, o de se ser viajante e se ter chegado a um ponto importante da viagem – a um ponto seguro.
Abriram-se mapas, mostraram-se fotos, contaram-se histórias, observou-se equipamento, trocaram-se dicas e objectos necessários a uns e desnecessários a outros, analisou-se o pesos dos alforges e da carga, afinou-se uma mudança com a ferramenta de um, apertou-se um travão com os dotes mecânicos de outro e sobretudo improvisou-se uma familía temporária, feita de gente com ideais e linguagem comum. Marica, Rebecca, Tim, Simon, Guillaume, Zolta, Jordi, Kathleen e Paul, cicloturistas e viajantes deste mundo, cada qual com a sua história, cada qual com o seu destino, cada qual com o seu projeto, mas todos unidos pela paixão de viajar propulsionados pela força das suas pernas montados numa bicicleta. Possam as nossas estradas voltar a cruzar-se e muito vento pelas costas a todos!
Sair assim, não vale
Depois do regressarmos da Caracórum voltamos ao Hostel Pamir, à sua nuvem de fumo e ao convívio com outros viajantes e ciclovagabundos. Deixámos passar uns dias porque queríamos ir visitar o mercado de animais no domingo, e recuperar da indisposição intestinal que ainda nos assaltava. Quando decidimos partir, já à saída da cidade, a bicicleta do Nuno decidiu adiar-nos a partida por mais um dia: problemas com o apoio e algo irregular no eixo traseiro. Regressámos ao Pamir Hostel onde fomos recebidos pelo ar espantado do recepcionista que disse quando nos viu de novo na recepção: “vocês outra vez!”
A estrada em direcção ao passe de Irquestão e rumo ao Quirgistão levar-nos ia de novo acima dos 3 mil metros (Kashagar está a 1250 metros), mas podemos fazer apenas os primeiros 90 quilómetros montados nas bicicletas.
A China está a tornar difícil o acesso de viajantes independentes por zonas fronteiriças, e isso é evidente para quem viaja na província de Xijiang. Nesta província, maioritariamente Uigur e consequentemente muçulmana, existe um ressentimento da população Uigur com a ocupação (alguns diriam “colonização”) da população chinesa de origem Han. Tem havido alguns eventos violentos e a solução Chinesa, de restringir movimentos, limitar o acesso, a não circulação livre de informação e a falta de liberdade aplica-se e sente-se nestes lados. É um problema recorrente nas terras deste país, e um problema que afecta minorias étnicas pelo mundo fora e que vamos vendo com tristeza vezes sem conta nas nossas viagens.
Ao chegar a Uluggat , a cidade a 120 quilómetros da fronteira com o Quirgistão onde se carimba o passaporte com o selo de saída e entrada, tivemos que arranjar transporte motorizado até à fronteira, os oficiais não nos deixariam seguir nas bicicletas. Em teoria um dos condutores de um dos muitos camiões levar-nos-ia, mas por meio das burocracias e da proximidade da data de uma grande celebração na China – o festival da lua cheia – os oficiais não nos queriam deixar seguir sob a desculpa esfarrapada de que a fronteira ia fechar. Quis o destino, muito poder de argumentação, muita persistência e 60 euros (que tivemos de pagar a um condutor local apesar de serem muitos os camiões que se deslocavam naquela direcção), que não tivéssemos que esperar quase cinco dias para poder cruzar a fronteira.
Quatro horas mais tarde, vendo passar nas janelas do carro a imagem esborratada das montanhas e aldeias à nossa volta, deixámos a China. E com mais quatro quilómetros, já dignamente montados nas nossas bicicletas, recebíamos a boas vindas ao Quirgistão de um oficial simpático e sorridente que quando percebeu a nossa nacionalidade declarou a a sua admiração pelo Cristiano Ronaldo e pelo Figo.
Foram quatro meses que passámos na China: dois e meio dos quais a pedalar, entre Yunnan, Sichuan e Xinjian. O tempo restante foi passado a tratar de passaportes sem mais espaço para carimbos e à espera de novos vistos para poder prosseguir a nossa travessia daquele país intrigante e intensamente belo que deixávamos com vontade de regressar.
Talvez um dia.
Mas por agora país novo – expectativas e aventuras novas.
Na próxima crónica, mais da nossa breve passagem pelo Quirguistão.