Um buraquinho para nos enfiarmos por favor?
Já aqui havia falado da fraca memória do Nuno, mas a história que costumo contar em tom de brincadeira – que um dia ao acordar não se vai lembrar quem é a pessoa que dorme ao seu lado – pode estar bem mais próxima de acontecer do que se possa imaginar.
O Pedro veio com o braço estendido para o aperto de mão no encontro (que afinal era um reencontro) marcado em frente à estátua do Mao na Praça das Pessoas. Segundo o Nuno o Pedro era um rapaz que andava seguir a nossa viagem e com o qual havia trocado e-mails. Estava de momento na China, em Chengdu, e a coincidência mais do que justificava o encontro.
– Olá, viva Nuno! Que bom rever-te! Já lá vão uns aninhos!
O Nuno olhou-o com um ar surpreso e perguntou de forma tão inocente como as suas ausências de memória – Já nos conhecemos?!
– Sim pá, não te lembras? Encontrámo-nos em Coihaique, no sul do Chile, quase no final da outra viagem que fizeste em bicicleta. Fui-te bater à porta do quarto lá no hostal onde estavas e depois até cozinhamos jantar e comemos juntos com uma boa vinhaça…
-Ah, sim, claro! Agora lembro-me perfeitamente…desculpa lá a falha pá.
Em sua defesa o Nuno podia dizer que o Pedro estava diferente…mas realmente ter o cabelo ligeiramente mais comprido não amonta a grande diferença. O facto é puro e simples – o rapaz tem mesmo muito má memória e quanto a isto não há nada a fazer. O Pedro da sua parte, como boa pessoa que é, não pareceu ficar ofendido nem chateado e pudemos sair do buraco onde momentaneamente nos queríamos enfiar.
Por falar em amor…e coincidências
O Pedro é um homem do Norte de melena loura e olhos claros. Viajante inveterado, bom vivã, homem dos mil ofícios e estudos, em busca da ilha com o mar perfeito. Leva já mais de 70 carimbos no passaporte e as suas histórias de viagem são possivelmente das mais cómicas que ouvimos nos últimos tempos, incluindo uma recente, na sua lua-de-mel, onde foi vítima de um ataque feroz por uns símios indonésios que pareciam querer tatuar-lhe o corpo com as garras.
O amor bateu-lhe à porta numa viagem de avião de regresso a Portugal, no mesmo voo que ia Yuan, uma rapariga chinesa muito bonita de cabelos longos, negros, olhar de terra (onde compreensivelmente o Pedro se perdeu) e voz doce e musical como uma melodia ” chill out”. Yuan estudou língua portuguesa (que fala na perfeição) em Macau e, coincidência das coincidências – Leiria, onde agora é professora de língua e estudos chineses, na mesma escola onde eu estudei – o Instituto Politécnico de Leiria.
Claro que já ninguém ficará surpreendido se a estas coincidências acrescentarmos o facto de que quando o Pedro e a Yuan vieram até à China celebrar o seu casamento, na imensidão que é este país, ela ser de Chengdu e que a celebração e estadia aconteceram precisamente na mesma altura em que nós nos encontrávamos na cidade a tratar da extensão dos nossos vistos. Dá-nos a sensação que o mundo está a encolher.
Na companhia de ambos não foi difícil encontrar distração durante as quase duas semanas que acabámos por ali ficar. Ver a China através dos olhos de Yuan foi como abrir a janela para uma realidade ligeiramente diferente daquela que víamos na superficialidade dos nossos olhares passageiros e das nossa papilas gustativas, inadvertidamente em busca de sabores mais familiares. A Yuan e o Pedro levaram-nos a provar os verdadeiros sabores de Sichuan, província famosa pelos aromas picantes que destilam dos seus pratos, como o da caçarola quente – uma espécie de fondue à chinesa – num caldo tão quente quanto picante onde se cozem os ingredientes, alguns bizarros como veias, e outros não tão bizarros, como estômago e orelha de porco, cabeça de peixe, vegetais variados, numa ordem que é um ritual que parece atender às propriedades regenerativas e medicinais que os chineses acreditam que cada ingrediente possui.
Chengdu, a cidade onde nos casámos…
Numa brincadeira feita de uma necessidade prática – o facto de nos irmos embrenhar no mundo muçulmano – comprámos umas alianças baratuchas de prata (faz de conta que são de ouro branco) e o Pedro e a Yuan foram os padrinhos do nossa união para mouro ver.
Se as alianças nos deram a ilusão de uma união ainda mais unida (uma sensação algo abstrata quando se passam 24 horas sobre 24 horas com a mesma pessoa), as indecisões que se sucederam após o “casamento” pareceram por tudo em plano de divórcio. Será que estávamos a ser vítimas da “maldição dos anéis”?
Somos mais ou menos bons a planear as nossas vidas quando estas se fazem sobre as bicicletas. O Nuno é – melhor dizendo. O rapaz pode ter má memória, mas para logísticas é bastante dotado. Mas a coisa complica-se quando os planos se alteram e nos vemos obrigados a reavaliar as nossas opções “em cima do joelho”.
Nos dias que estivemos em Chengdu, começou uma odisseia de indecisões que nos fizeram mergulhar num mar de tantas possibilidades e hesitações que parecia que nos afagávamos. Não estender o visto; apanhar um voo direto para a Ásia Central (como quem bate o pé, se não podemos fazer todo o ciclismo que queremos na China então vamo-nos embora daqui), este comboio ou aquele?; e as bicicletas? Vão connosco ou têm de ser enviadas?; esquecemo-nos de perguntar o horário; o preço do voo já está mais caro; já não há lugar no comboio para as datas que queríamos; a culpa é tua que não decides; não, a culpa é tua que contestas as minhas decisões… E as discussões surgiram como se discutir fosse a única coisa concreta no marasmo das incertezas. E quem nos visse e ouvisse pensaria: “olha que dois maçaricos acabadinhos de sair de casa, incapazes de decidir se ir para a direita ou para esquerda”.
Mas os dias foram passando, as decisões necessárias foram sendo tomadas e com a distração das nossas novas amizades ultrapassávamos o nosso primeiro desafio na nossa vida de “casados”. Afinal parece que estar juntinhos só com o embalo do amor, sem anilhas metálicas pelo meio é bem melhor! Isso e andar de bicicleta!
“Nuestros hermanos”
Fomos encontrar a Maria e o Zigor a empacotar, não uma, não duas – mas quatro bicicletas no espaço entre os quartos e as casas de banho do hostel onde estávamos todos alojados – o simpático Traficc Inn. A coisa era bem mais grave do que a mera excentricidade aparente de empacotar quatro bikes quando só se tem dois pares de pernas. No quarto, que parecia um armazém, haviam também cerca de 200 quilos de bagagem, numa espécie de fila de empacotamento e envio. Se a nós nos parecia azar o nosso predicamento com os vistos chineses, o que dizer do casal amigo com quem a Maria e Zigor viajavam que, como nós, tinham ido a Hong Kong para obter um visto novo para a China e este lhes foi recusado? E que dizer do facto das suas bicicletas e bagagens terem ficado para trás num país onde agora não podiam entrar? Valeu-lhes o facto do novo visto não ter sido negado à Maria e ao Zigor que se viram no dever de atravessar o país até onde as coisas tinham ficado e organizar a transferência daquela tralha toda para ser enviada num voo para a Malásia, onde decidiram continuar as suas pedaladas rumo a parte incerta, nas suas deambulações ciclonómadas mundo fora sem data marcada para o regresso.
E como há um ano atrás estes vizinhos ibéricos tinham desancorado da sua terra natal, seguindo uma rota possivelmente semelhante à rota das nossas intenções, sobretudo na Ásia Central, os serões encheram-se de passeios pela cidade e de “Portunhol” trocando relatos de viagem, sugestões e dicas para vistos.
Que bem que se está entre amigos! E amigos com genética ibérica e sobre duas rodas – “pues aun mejor”!
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Choques inevitáveis na chegada a Kashgar
Não estávamos preparados. Nunca estaríamos a menos que ali chegássemos de bicicleta. Que era no meio do deserto – já sabíamos. Que a maioria das gentes eram muçulmanas – também. Mas nada disso evitou o choque e a sensação de que estávamos no destino errado. Chegámos à Ásia Central e os quatro dias que passámos enfiados dentro do comboio de Chengdu a Kashgar tinham sido inúteis como auxiliares na transição. A China tinha ficado para trás sem que tivéssemos tido a oportunidade de fazer as despedidas merecidas.
Mas a cidade óasis foi-nos conquistando assim como a poeira das suas ruas, as carroças puxadas por burros, o cheiro a carne grelhada, as carcaças de ovelha penduradas ao sol a servir de feira da gastronomia às moscas, o bazar a transbordar de cor, as gentes com caras familiares que podiam ser as caras dos homens e das mulheres portuguesas há 30 anos atrás, quando os bigodes estavam na moda e as permanentes das senhoras de família se protegiam com lenços coloridos. Os apitos utilizados em vez do travão, as casas cor de lama saídas das descrições bíblicas. Um mundo à parte bem mais próximo do mundo Árabe do que do mundo Han.
Os próximos dias, que seriam também os últimos na China, levar-nos-iam a pela estrada de Caracórum (e de regresso), uma das mais míticas estradas de montanha do mundo; ensinar que os dias de descontração alimentar tinham de ser reconsiderados; e proporcionar mais encontros com aventureiros sobre duas rodas ao ponto de parecer que nos tínhamos juntado a uma convenção de cicloturistas, já o ditado dizia – “não há fome que não dê em fartura”.