A nossa tenda é um “reality-show”
Acordámos com o titilar dos badalos, o som abundante das patas a trotar o chão, o crepitar da erva a ser ruminada, o resfolegar e a respiração dos animais na intermitência entre o mastigar e o engolir do pasto e duas vozes que sussurravam numa língua que não era a chinesa. O Nuno abriu os fechos e ao afastar as duas membranas de nylon do nosso casulo móvel, entraram tenda adentro as cores do amanhecer e os sorrisos de dois olhares atentos.
Os animais, que eram uma manada de yaks, subiram monte acima, onde o pasto era verde e o sol da manhã já aquecia as encostas do vale, mas os olhares permaneceram pregados a nós como se no meio da montanha estivesse montado um ecrã panorâmico a transmitir em direto o “reality-show” da vida de dois ciclo vagabundos.
Dissemos os nossos “nihaus”, que foram devolvidos, e sorrimos, mas os dois seres atentos não se moveram. O enrolar e o arrumar dos sacos de cama para o saco pequeno onde viajam, o tirar de ar dos colchões insufláveis e a sua arrumação em mais dois sacos pequenos, as nossas coisas que foram enfiadas nas malas funcionais que são os nossos alforges, o limpar atabalhoado com toalhetes de bebé e o espalhar do rosto com protetor solar, o esfregar dos sovacos com desodorizante, pareceu ter o mesmo efeito que o pêndulo de um hipnotizador. Saímos finalmente da tenda e o feitiço pareceu quebrar-se por momentos – os olhares afastaram-se assim como os espetadores – mas a curiosidade levou a melhor e, enquanto fazíamos o café e aquecíamos as papas de feijão enlatado (uma especialidade chinesa bastante conveniente para os nossos pequenos almoços), os pastores nómadas voltaram para nos observarem mais uma vez. Quisemos partilhar os comes e bebes mas a oferta foi declinada gentilmente. Era observar-nos imperturbados que realmente desejavam e nós deixámo-los entregues ao transe que a nossa presença e os nossos movimentos pareciam estar a causar.
De observados a observadores
O Nuno aproveitou a manhã de sol e a curta quilometragem do dia para fazer umas afinadelas nas bicicletas. Os nómadas tinham já ido para um canto na beira da encosta, não muito longe de onde tínhamos acampado e, sentados no chão de pernas cruzadas, preparavam algo em redor de uma fogueira fumarenta feita com pequenos ramos ainda cobertos de orvalho. Pus-me a olhar de relance, a que a inibição disfarçada de supostas boas maneiras ocidentais me obrigava, mas na troca dos meus olhares curiosos recebi um aceno em forma de convite que aceitei sem hesitar.
De pernas cruzadas, sentada de frente para a fogueira, com uma chávena de água quente misturada com leite ordenhado essa manhã que me foi oferecido, fiquei a saber que os dois nómadas eram pai e filha, que a filha tinha dois filhos e que tinha quarenta e dois anos. Estavam num yurt ali perto e tinham vindo pastar os seus animais. Como informação requisitada devolvi que o Nuno era o meu marido (não é, mas nestas situações, para não criar embaraços da circunstância, passou a ser), que não tinha filhos (que julgo ter de vir a ter – leia-se inventar – em conversas futuras precisamente para evitar os tais embaraços de circunstância e os silêncios onde se percebe que não ter filhos na casa dos trinta é uma grave anomalia).
E era eu agora que caía sobre o efeito hipnotizante das suas vozes que falavam talvez das tarefas do dia, ou de algum mexerico local. Vozes também da reza que o pai nómada dirigiu à água que fervia na chaleira negra e amolgada e da oração tibetana proferida entredentes enquanto as contas grossas e redondas da sua pulseira passavam pelas almofadas dos seus dedos. Os seus olhares profundos transbordavam beleza rústica, generosidade e curiosidade despertada também pelo anel que trago na mão esquerda e que quiseram ambos experimentar. Com os corpos deles próximos reparei como as suas mãos estavam calejadas e pareciam raízes de árvores, castanhas do sol, endurecidas pelo vento, como extensões da crosta terrestre que trabalham e da qual dependem, sujeitas aos rigores do tempo. Reparei também no cheiro adocicado a fumo, a manteiga, a yak e a montanha que emanava dos seus corpos.
Encheram-me a chávena vezes sem conta, mas o sol já ia alto e cada qual tinha que fazer: nós seguir os 20 e poucos quilómetros que faltavam até Litang e eles, continuar as tarefas diárias de pastores nómadas. Acenámos as despedidas e cada qual foi à sua vida montanha acima – eles para os pastos verdejantes e nós para a estrada poeirenta.
Nas esquinas opostas da vida em que nos encontrávamos era fácil perceber o fascínio mútuo: éramos nómadas, diferentes apenas no sentido de vida. Mas ser nómada é uma necessidade – os nómadas das pastagens das montanhas, das grandes manadas de yaks – que têm de ir onde o pasto é verde e abundante antes que cheguem as neves redutoras. E os nómadas urbanos – como nós – para quem o nomadismo vem da necessidade de ir onde nos enchamos de mundo, buscando alimento para a alma e simplicidade no corpo que nos sirva de motivação para enfrentar o inverno da rotina, da intensidade urbana e da vida algo mais estática que nos aguarda no regresso.
Regresso às bicicletas
Depois do nosso regresso de Macau e Hong Kong, com o alívio que foi chegar à Jane´s guest-house em Qiatou no desfiladeiro do Salto do Tigre, depois de três dias enfiados numa miríade de transportes e ver que as nossas bicicletas e bagagem estavam intactas, seguimos rumo ao nosso primeiro passe acima dos três mil metros e à cidade perdida e reencontrada de Shangri-la, onde chegámos ao segundo dia de pedaladas com os rabos e as pernas doridos – a recompensa de quase um mês de pausa.
A Shangri-la está longe de ser o vale harmonioso, o paraíso na terra, a utopia dos Himalaias que James Hilton descreveu no seu livro Horizontes Perdidos. Mas o ministério de turismo chinês achou que sim, que o tal paraíso era ali, e em 2001 mudou o nome da cidade de Zhongdian para Shangri-la e os turistas começaram a chegar. Pouco do que seria a remota povoação parece ter sobrevivido ao entusiasmo do cimento e da reconstrução mas o charme da cidade, sobretudo do seu centro antigo e do mosteiro altivo recentemente construído, parecem ter conseguido dar à cidade um ar afável embrenhado na tradição tibetana, mesmo com todas as lojas de souvenirs, os hotéis “boutique” e os outros de aspeto mais industrial e deslavado, os cafés e as casas de chá para a clientela “cool” e os inúmeros turistas que ali vão atraídos pela possibilidade no novo nome e pela proximidade com o Tibete.
Pela frente tínhamos três semanas de ciclismo bordeando a grande região autónoma do Tibete, os passes mais altos da nossa viagem (bem perto dos 5000 metros), entraríamos numa nova província – Sichuan, e teríamos que pedalar os cerca de 600 quilómetros por estradas de estado imprevisto a tempo e a horas de chegar a Litang para renovar o nosso visto.
Montanhas em flor
Nunca tanto na minha vida desejei ter um livro que me ensinasse o nome das flores. Com as chuvas e os dias de temperaturas amenas, antes da solidez do inverno, parecia que a Primavera tinha mudado para as montanhas do sul de Sichuan e saber o nome dos seus presentes de vida parecia-me a única forma de agraciar aquela beleza frágil e fugaz que nos adocicava os olhos e distraia do esforço dos glúteos e quadríceps. Eram pontos do arco iris, pontos pequenos que na sua união combatiam o verde que se estendia pelos vales e planícies, dando cor e delicadeza a uma paisagem que de outra forma era dura e intensa, feita de rochedos, paredes escarpadas, pinheiros alpinos e altitudes.
E assim os dias de ciclismo árduo e duro, muitas vezes entremeados com dias de chuva, ganharam um outro sentido, o sentido que se sente quando se tem acesso a paragens remotas à conta do esforço físico. A estrada que seguiu com um tapete de alcatrão à saída de Shangri-la rumo ao Norte até ao primeiro passe que nos levou dois dias a pedalar, foi depois substituída por uma faixa de estrada incongruente, que alternava entre o tapete de pedras e o tapete de lama, muitas vezes obrigando ao desmontar das “burras” e a empurrar as teimosas subida acima. A estrada, linha encrustada nas serras infindáveis, à beira das quais instalávamos casa no final do dia, e onde finalmente imóveis podíamos descansar os músculos e saborear a dimensão do que nos rodeava antes que a escuridão da noite e o frio ou a chuva nos mandassem para dentro do casulo.
Os “tios camiones” e outros Tibetes
Os nossos companheiros de viagem pela China têm sido os camiões eternos – os “tios camiones” – como carinhosamente os alcunhámos, mesmo quando por nós passavam envolvendo-nos numa poeira irrespirável, apitando o seu grito de passo ensurdecedor. A bandeira da China é feita de estrelas mas devia ser feita de camiões. É que um dia, escrevam o que vamos dizer, não vai haver montanhas neste país porque a terra que as constrói terá sido levada para outro lado onde possam forrar estradas, preencher edifícios, desobstruir minas, amuralhar rios. E no dia em que não houver montanhas também não vão haver camiões, nem na estrada mais remota. Talvez então se possa compreender melhor as estrelas da bandeira Chinesa como estrelas de mérito à destruição e ao progresso.
Nos 400 kms entre Shangri-la e Litang havia apenas uma cidade: Xiaocheng. Cidade, cidade, aquilo não era propriamente – não para standards chineses de qualquer das maneiras. Uma rua longa com mais duas ou três ruas paralelas, uma praça e um projeto de templo em construção a fazer mimica moderna ao de Potala – o verdadeiro de Lhasa.
Ficámos num hotel, o Xiang Bala, um edifício estapafúrdio. Quem quer que o tenha decorado estaria seguramente sob a influência de uma droga alucinogénia tibetana – aquilo sim é que foi atingir o Nirvana usando a palete a transbordar de tintas e cores e a escarrapachá-las na parede e nos móveis. O veado embalsamado à entrada dava-nos as boas vindas com o nariz esmurrado que o embalsamador não quis (ou não soube) emendar e os seus olhos de azeitona, ao contrário dos da Mona Lisa, não pareciam olhar para lado nenhum. O autoclismo, depois da passagem de algum hóspede que não conseguia que a sanita devorasse algum detrito mais sólido e o usou com a força indevida, era propulsionado com um fio e uma escova de dentes.
Os níveis desceram visivelmente desde as nossas estadias nos hotéis do Yunnan e, os preços, irónica e ilogicamente, aumentaram. Com tanta espiritualidade e súbito interesse em tudo o que é tibetano parece que há muito boa gente a aproveitar-se do facto e a encher os bolsos. Ir para o Tibete, ou no nosso caso, para o Tibete da China a imaginar o “shangri-la”, é ficar um pouco dececionado com a orquestra de escarros constante que acompanha a presença humana chinesa, mas ainda mais audível nestes lados, o surro e a porcaria frutos do descuido geral (ao utilizar uma casa de banho pública nestes lados são necessários alguns dias para se recuperar do trauma) e o chauvinismo aparente e evidente, tão distintos da imagem do budismo das igualdades que irradia o Dalai Lama. Que esta é uma China que não é China – é Tibete, mesmo dentro das suas fronteiras, é bem óbvio. Que devesse ser outro país?-Não nos cabe julgar, nem entendemos o suficiente de geopolítica para opiniões informadas, mas as diferenças são gritantes.
E que este não é um povo de brandos costumes, isso não é. Por traz da história dos monges benevolentes das imagens que nos chegam a ocidente está a história de monges guerreiros que no vínculo da história lutaram pelo grande pedaço de terra que é o seu, e que para mal dos seus santos pecados está recheado de metais e recursos valiosos, dos quais os chineses não abdicarão e onde antevejo a presença de muitos e muitos “tios camiones”.
Mas fora das cidades, que em prol da verdade não são muitas, esta China do Tibete, é um lugar mágico de aldeias pequenas onde cada vale, num ímpeto criativo, desenvolveu arquitetura própria, as pessoas mesmo na dureza que se espelha na vida que levam e na rijeza da sua pele curtida pelo sol, o vento, a chuva e a neve em igual medida, são bondosas e simpáticas, algumas sentadas na beira da estrada no parapeito gigante que é aquela varanda improvisada e preparados com acenos e sorrisos, para quem ali passa e que também não serão muitos.
Litang – adeus Tibete!
A chegada a Litang, mais uma cidade cunhada de Tibete, depois do nosso encontro matinal com os pastores nómadas e de mais de 90 quilómetros respirados a poeira de uma estrada em construção, foi feita no meio da cacofonia da escarradeira, os apitos dos veículos (que se usam aqui como um código morse sonoro de uso obrigatório de condução) e do bando incontável de cicloturistas chineses na sua conquista do Tibete, rumo a Lhasa, montados nas suas Meridas e vestidos até aos dentes até não haver mais pele a descoberto nos seus corpos, como se fossem enfrentar um ataque nuclear, ou algum “check- point” controlado por extremistas islâmicos e a ira dos seus pudores religiosos, quando na verdade tentam evitar apenas os elementos e os seus efeitos nocivos para as suas peles delicadas, frugais em rugas.
Mas Litang cresceu em nós depois da impressão inicial que foi a de chegar a outra cidade vila, que é Tibete mas que é obrigada a ser China. E os sítios são as pessoas e as desta cidade não só nos pareceram diferentes como fascinantes – as mulheres altas de vestidos forrados a peles sintéticas, de tranças a lembrar as tranças das mulheres andinas, os monges homens bem alimentados a carne de yak com os seus chapéus tipo pá, os homens corpulentos e cheios de vigor, os verdadeiros cowboys destas latitudes e os mais velhos com as suas pulseiras de missangas de pedra e rodas de oração, tal brinquedos de criança, girando indeterminadamente sob o movimentar dos seus pulsos e as suas orações sussurradas ao vento.
Mas tivemos que deixar aquela cidade disseminada num grande planalto entre pastagens e yurts porque a extensão dos visto já não se fazia ali. Nós e as bicicletas seguimos enfiados num autocarro durante 12 horas até Kanding, no que nos pareceu não uma viagem mas a incursão dentro de uma máquina de lavar roupa num programa de centrifugação. Chegados a Kanding e mal preparados que íamos (precisávamos de apresentar recibos de alojamento que não tínhamos) não nos restou outra alternativa se não enfiar-mo-nos e às bikes noutro autocarro, desta vez num “programa de lavagem” mais suave e ir tentar a nossa sorte na capital de província – Chengdu, onde tínhamos pensado chegar nas burras. A ver se resolvíamos a história da extensão do visto de uma vez por todas ou então teríamos de deixar o país, e a correr.
As próximas histórias da estrada vêm da grande cidade onde o tempo de espera e impasse nos proporcionou novos encontros, e claro, como já vem sendo hábito: reencontros inesperados.