Sabadee – o cumprimento mais bonito
A fronteira separa. A natureza une. E não fosse o facto de termos sido obrigados a parar para cumprir os deveres burocráticos de mais um posto fronteiriço, o oitavo, era fácil pensar que pedalávamos ainda no Camboja, nas suas planícies secas e cálidas, ao lado do Mekong.
Assim que cruzámos a linha imaginária que os homens usam para dividir a terra, os “hellos” foram substituídos pelos “sabadees”, que quer dizer bom dia. Saba, significa dia, e dee, bom. Música para os nossos ouvidos, o enrolar do s e o prolongar dos ees. Proferidos com tanto entusiasmo, por pequenos e graúdos, que sentíamos que mais do que curiosidade, esta gente estava contente de nos ter no seu país. Nunca nos cansaremos destes cumprimentos, deste não ser ignorado, esta vontade de gritar bons dias, que tem o efeito de um mantra – de tanto se repetir, acaba por acontecer. Os nossos dias no Laos iriam ser como nos desejavam: essencialmente bons.
Khon Phapheng, as cascatas com maior volume de água do Sudoeste Asiático, estavam a cerca de 5 quilómetros da fronteira, por isso fizemos um desvio para as ir ver. Uma falha no relevo que interrompe o Mekong e o obriga a despenhar-se ruidosamente por entre ilhas, rochas e declives, revelando a sua faceta de rio turbulento. E falha nossa, o facto de termos entrado no país sem moeda local, termos gasto os nossos últimos riels, a moeda do Camboja, e a impossibilidade de adquirir ou trocar dinheiro na fronteira de Dom Kralor que deve ter sido das mais tranquilas que atravessámos recentemente. Com a visita às cataratas quase impossibilitada, valeu a persistência do Nuno que obrigou literalmente, depois de muitas explicações e desculpas, o rapaz da bilheteira a deixar-nos entrar sem pagar. Por dez breves minutos.
As quatro mil ilhas do Mekong
– Tem quarto?
– Sim.
– Quanto custa?
– 60 mil kips.
– Podemos ver?
Aguardámos pela resposta, ou que a senhora se levantasse para nos vir mostrar o quarto, mas a pausa na conversa começava a tornar-se desconfortável. Por isso voltámos a perguntar – e podemos ir ver?
A nossa interlocutora, uma mulher bonita de meia idade, estava deitada numa cama ao ar livre à sombra do telheiro da sua casa, mal se tinha mexido quando, como potenciais clientes, ali parámos à procura de alojamento.
Aliás, a cama deve de ser a peça de mobiliário mais prezada nas casas do Laos, está em proeminência, assim mesmo sem colchão, que isso só faz calor e ganha maus cheiros. Aqui o sofá é raridade. E sofás para quê quando se pode ir directamente ao assunto. Passar à posição horizontal quando o calor começa a apertar.
Mas a senhora continuava num estado semi comatoso, sem dar sinais de recuperação, por isso voltámos a esperar uns segundos, os quais nos deram tempo para considerar mentalmente que se calhar era melhor averiguar outro sítio, quando finalmente, com um movimento ínfimo do torso, um acenar de braço e um berro, chamou uma rapariga novita, que devia ser empregada, ou filha, que deixou o que estava a fazer, para ir mostrar o quarto aos “falang”.
Ficámos. Um bungalow em madeira, rústico e simples, com uma varanda e duas redes com vistas para a vida no Mekong nas suas diferentes facetas ao longo do dia, e uma janela traseira que enquadrava a vida insular, os seus campos secos, as stupas da família, as vacas vagarosas e as crianças catitas que por ali passavam de manhã com o uniforme escolar, à tarde com as roupas rotas e descalças – o uniforme da brincadeira. Não havia como não ficar. A seis euros por noite, o bungalow do Mr Phao´s era um pequeno luxo que, dadas as circunstâncias, podíamos suportar.
Don Det, uma das quatro mil ilhas do Mekong, é um pequeno éden de vida rural, recentemente redescoberto e reinventado como destino relaxado para mochileiros. Quando se chega, num dos barcos estreitos de madeira e a motor, desembarca-se numa praia fluvial pequeníssima onde os viajantes congregam tentando manter o bronze ganho nas praias da Tailândia. O primeiro quilómetro é uma rua estreita estapafúrdia e apertada, contornada por barracos que passam ora por hostéis, ora por restaurantes de colchões e almofadas a servirem de assento, com elementos sugestivos no menu tais como “happy pizzas” e “happy shakes”. Com ou sem aditivos, a vida ali é feliz e dada a tranquilidades. Para além de passear de bicicleta, ir visitar as outras ilhas, descer o rio em câmaras de ar, andar de barco, ir à pesca, ver a vida passar com uma Beerlao na mão, não há muito mais para fazer. E é perfeito assim.
Depois de quatro dias, partimos relutantemente. Tão relutantemente que decidimos avançar apenas 22 quilómetros, atravessar um “ferry” que mais não era do que duas canoas com umas madeiras a servir de união, e ir ver a vida de mais uma ilha, Don Kong. E como são quatro mil as ilhas, poder-se- ia dizer que são ilhas para todos os gostos. Se Don Det se adequa a um turista mais despreocupado e festeiro, já Don Khong, com o alojamento mais pretensioso e restaurantes carotes, se destina ao viajante para o qual uma casa de banho com água quente, e um quarto sem gretas na parede são essenciais. Partimos na manhã seguinte bem cedo, percorrendo a ilha até à sua ponta norte por onde a deixámos em mais um ferry com ar de canoa geminada.
Wat Pho Champasak – as mais importantes ruínas do país quase a título exclusivo
Wat Pho pode não ter a monumentalidade dos seus rivais no Camboja, mas ainda assim vale bem a visita não só porque é o local arqueológico mais importante do país mas também pela ausência de turistas.
Metido na encosta de uma montanha, parte da primeira cordilheira que víamos em quase dois meses, com vistas para os campos de cultivo e as casas de madeira e bambu das povoações em redor. As escadarias íngremes, que pareciam peças de lego que um gigante apertou e tirou do sítio, eram ladeadas por filas de árvores de frangipani, cujo as flores brancas de pétalas redondas atapetavam o chão e perfumavam o ar.
Depois de visitarmos as ruínas de Wat Pho em Champasak, construídas num período pré-khmer e posteriormente alteradas para o estilo que imortalizou Angkor Wat, seguimos até Paksé.
Paksé é a terceira cidade mais populosa do país. Um aglomerado de edifícios de cimento com aspirações pomposas ao estilo neo-clássico-greco-romano-francófono, ou coisa parecida, na confluência dos rios Se Don e Mekong. Quando passámos estava “à pinha” e foi tarefa morosa e sem grande sucesso encontrar alojamento em conta. Esta cidade serve de ponto de distribuição de viajantes para o país vizinho, o Vietname, para as quatro mil ilhas, de onde tínhamos vindo, para o Norte do país,e também para o planalto de Bolaven, para onde íamos. Por esse motivo sobretudo, mesmo não oferecendo grandes razões para justificar a visita, turistas, viajantes e afins é o que não faltam nesta cidade.
Café em flor no Planalto de Bolaven
Ao longo da estrada, que subia suavemente sem causar cansaço nas pernas, não era tanto a paisagem circundante que animava os sentidos, na realidade sendo bastante povoada e algo descaracterizada esta era a parte menos interessante. Os aromas que se revelavam à medida que íamos avançando eram tão intensos que peculiarmente desejei poder ter a capacidade de pedalar a montanha de olhos vendados para ser transportada para as paisagens madrigalescas, algo distantes da realidade, que me traziam o cheiro dos cafezais em flor, um aroma que nunca havia experienciado antes. Eram paisagens de campos cobertos de jasmim, laranjeiras em flor, árvores de fruta madura. Odores tão frescos e frutados que quase contrabalançavam o calor que se fazia sentir e pigmentavam a paisagem amarelada, mesmo que imaginariamente.
O planalto de Bolaven é afamado por lá se cultivar o melhor café do Laos, e do mundo, segundo alguns. O pior também se lá produz infelizmente. O café que nas palavras de um amigo nosso espanhol que vive na Bolívia, o Daniel, lhe chama “no es café” – Nescafé e com muita razão.
Mas pelo menos no Bolaven só alguém distraído é que acaba com a versão imitada na chávena. Mesmo que seja cada vez mais difícil encontrar o verdadeiro café no resto do país, aqui pelo menos ainda é preparado da forma tradicional com um coador de pano e água bem quente, que depois resulta num líquido negro, espesso e forte servido num copo de vidro, com, ou sem dois dedos de leite condensado.
O sabor é tão intenso que vem geralmente acompanhado por outro copo de chá, como que para dar descanso às papilas gustativas e acalmar os sentidos. Mas para quem gosta de café forte e de sentir o sangue a correr nas veias como se tivesse sofrido um choque eléctrico, a versão laosiana é do melhorzinho que há, e nós, sempre que podemos, não perdemos a oportunidade de o saborear.
Mas nem só de café se vive neste planalto. Quedas de água abundam também. E estas, mesmo no auge da época secas, carregam consigo rios de água refrescante, criando oásis de vida por onde passam, oferecendo a pausa merecida para mergulhos e abrigo ao pior do calor do dia.
Em Tad Lo – Parabéns a você, feito de coisas boas
“Não sei como é que fazes mas parece que as tuas malas estão cada vez mais cheias e mais difíceis de fechar a cada dia que passa”. Observou o Nuno com ar gozão, ao ver-me a empurrar o conteúdo dos meus alforges na tentativa de os fechar quando saímos de Paksé para fazer o desvio para o planalto de Bolaven. Sim estava com dificuldade de fechar os alforges. Tem razão sim senhor. Mas isso é porque sou uma namorada à maneira e porque estou a tentar enfiar lá dentro mais de três quilos e meio de presentes volumosos, para o aniversário de alguém. Posto isto e o facto de que iríamos pedalar a primeira montanha dos últimos três meses, tive que morder a língua para não estragar a supressa e dizer: toma lá, carrega tu meio quilo de Nutella, meio quilo de café, um quilo de farinha, 1 litro de vinho e meio quilo de velas, que não vendiam pacotes mais pequenos.
Em Tad Lo, uma aldeia de casas de madeira sobre palafitas, com uma sucessão de cascatas volumosas – local para mochileiros com poucos mochileiros, pude finalmente ver-me livre do peso que trazia nos alforges para grande surpresa do aniversariante, sobretudo quando viu aparecer do meio das minhas malas vermelhas a garrafa de vinho tinto chileno, um pacote de café do Laos e a embalagem de Nutella.
Ao fim do dia, depois de uns mergulhos, procurámos sítio para celebrar a ocasião. Encontrámo-lo na margem do rio entre cascatas. Pendurámos as redes, as nossas camas para a noite, agarrámos nos presentes, nas colunas, nos ingredientes que tínhamos comprado pelo caminho, encontrámos uma pedra grande na margem do rio que serviu de cozinha e sala de jantar, iluminámos a noite com as velas, pusemos o som da nossa música baixinho para não ofuscar o das cascatas, cozinhámos o jantar, e depois saboreámos e brindámos àquele momento, ao privilégio de o estarmos a viver na companhia um do outro e a mais um aniversário do Nuno na estrada. Na manhã seguinte o pequeno-almoço fez-se de panquecas recheadas com banana e Nutella, e café do Laos para o choque eléctrico do dia.
Nos próximos dias iríamos seguir pedalando rumo a Norte por estradas menos percorridas ao encontro de mais um andarilho luso.