As indecisões afinal são mera obra do destino
Quando se viaja os impasses e as indecisões são frequentes. Ficamos ou vamos? Comemos aqui ou ali? Vemos isto ou aquilo? Mas há vezes, não são muitas, em que os impasses nos fazem ganhar tempo, como se algo tivesse para acontecer, e se pudessem assim criar as condições necessárias para o tornar possível.
Chegámos a Thakek no final da manhã, era ainda cedo para terminar um dia de ciclismo. Como a cidade nos pareceu agradável, mas não querendo usar esse facto para desculpar um dia curto, combinámos que se encontrássemos alojamento barato, ficaríamos. Se não, avançávamos. Não encontrámos o que buscávamos e íamos já estrada fora quando vimos uma placa a indicar mais um hostal.
Dissemos um para o outro– “ok, só mais este, se não, seguimos”. O sítio era simpático mas os preços acima do que desejávamos pagar. Já decididos a partir, parámos para dar uma vista de olhos nuns cadernos com informação da área deixada por outros viajantes, quando um viajante se aproximou e começou a partilhar as suas experiências connosco em Inglês. Empenhado que estava nas descrições dos seus percalços, tinha caído na motoreta alugada e as marcas na sua mão e joelho eram bem gráficas, tivemos que aguardar com ansiedade que terminasse de contar a sua peripécia para o interromper e perguntar de onde era. O seu sotaque soava-nos estranhamente familiar. E pudera -era mais um andarilho luso.
Tanto Mundo para o Jorge
Conversa agora na língua certa, ficámos a conhecer o Jorge Montez. Um homem rapaz que leva consigo um brilho no olhar e um ar tão gaiato, que não fossem alguns cabelos brancos e umas linhas de expressão, era fácil imaginar que os seus vinte anos não tivessem sido há muito tempo.
E talvez seja esse o segredo, o de saber que nunca é tarde para realizar os sonhos, que no seu caso é fazer o que não teve oportunidade de fazer quando era mais novo – ter viajado mais. “ Há tanto mundo que quero ver!”. As coisas em Portugal também não estão propriamente brilhantes, por isso, em vez de se comiserar decidiu fazer-se à estrada, deixando para trás a Fátima, a mulher, e o Miguel, o filho, dos quais fala com muito amor e saudade. Mas deixar não é a palavra certa, aqueles a quem se ama, vêem e viajam connosco também. A distância encurta-se diariamente, ao toque de um telefonema.
Nesta etapa, do que é agora a sua vida como viajante, está unir dois pontos opostos, o Cabo da Roca a Vladivostock – o ponto mais ocidental e a cidade mais oriental da Eurásia. É curioso que nestas andanças de viajantes sintamos o desejo de unir extremos opostos do mundo, como se ao fazê-lo uníssemos os nossos antagonismos, ou pelo menos chegássemos até eles, e os aceitássemos como parte do nosso mapa pessoal.
Jornalista de profissão, esta vida proporciona-lhe também o prazer de contar histórias, e sobretudo, de as viver na primeira pessoa. São histórias que o mundo lhe vai revelando ao ritmo das pessoas que vai conhecendo, das coisas únicas e banais que vão surgindo, dos países cujos carimbos vão ficando marcados no seu passaporte, mas sobretudo na sua memoria. E as suas palavras tocam pela humanidade e sensibilidade. As horas pareceram-nos minutos na sua companhia.
– Acho que é melhor vermos se ainda temos quarto, interrompeu o Nuno, já a luz do dia nos indicava que dali já não iríamos a lado nenhum.
Havia quarto e mesmo que o seu custo fosse acima do que queríamos pagar, pareceu-nos um detalhe supérfluo, sobretudo quando terminávamos o dia em tão boa companhia. Partilhámos as cervejas, o jantar de rua, um fim de tarde alaranjado nas margens do grande rio companheiro e mais umas horas de conversa que se estenderam pela noite.
Na manhã seguinte, partilhámos também o pequeno- almoço e a promessa de que nos voltaríamos a encontrar, no Vietnam certamente. Mal sabíamos nós que, por vias de mais um feliz acaso, o reencontro seria bem mais cedo do que o esperado.
Para acompanhar as aventuras do Jorge:
tsf.pt/blogs/viagemdecomboio
tantomundo.com
justabackpacker.com
De Tad Lo a Savannaket – por estradas menos viajadas
No dia em que deixámos Tad Lo a chuva apareceu nas primeiras horas da manhã fazendo tentador a hipótese de ficarmos mais um dia. Mas já lá iam três e ficar mais era pura preguiça. Decidimos seguir, quanto mais não fosse porque assim o calor nos daria uma trégua e as nossas pedaladas seriam, mesmo que molhadas, bem mais toleráveis.
Queríamos regressar à estrada principal a EN13, sem termos que regressar a Paksé e depois de algumas tentativas falhadas, onde os locais nos apontaram para os cruzamentos errados, mais para se verem livres de nós na incapacidade mútua da comunicação, do que propriamente para nos enganarem, lá demos com o corte.
Já na estrada certa, que mais não era do que uma linha de lama com mais de 20 quilómetros, os carros e as motos, alguns atolados, tentavam seguir vagarosamente. Pareciam patinadores numa dança descoordenada. Juntámo-nos ao bailado avançando lentamente e muitas vezes a empurrar, tendo que parar com frequência para tirar a lama que se entranhava nas bikes e que se transformava em travão indesejado. Acabámos o dia em Muang Klong Xedon, já em alcatrão firme, numa oficina de limpeza a jacto, uma das muitas que proliferavam na aldeia.
Mais uma cidade nas margens do Mekong
De Muang Klong Xedon a Savannakete foram dois dias e 164 quilómetros de pedaladas ao longo da estrada principal a EN13, que se revelou algo monótona na sua longa linha de alcatrão e povoações de beira de estrada.
Savannakete é uma cidade agradável e genuína – no nosso português, genuíno quer dizer não muito alterada pelo turismo. No seu centro existe uma praça rodeada por edifícios coloniais franceses, alguns restaurados, outros decrépitos. Lojas-casa chinesas, onde é difícil definir onde acaba o espaço comum, que é a loja, e o espaço privado, que é a casa. Há também uma igreja, testemunho de uma crença que por aqui é menos comum. A combinação, mesmo que pouco usual, resultava. À noite, quando por lá passámos, os pequenos restaurantes de rua afloraram vindos do nada libertando odores a carnes cozidas em caldos aromáticos e a frutas para batidos revigorantes. As famílias percorriam as ruelas estreitas de encontro à praceta, embaladas pelas aragens mais temperadas do fim da tarde, um segundo sopro de vida no decorrer do dia.
Nas margens do rio Mekong a já usual proliferação de esplanadas improvisadas onde o mote do final do dia é uma Beerlao fresquinha.
De Savannakete a Thakek – pela estrada do rio
De Savannakete optámos por seguir uma estrada secundária nas margens do Mekong. Os camiões e os carros, que não são muitos mesmo na estrada principal, desapareceram quase por completo e na sua ausência, pedalámos por uma estrada ondulante semi deserta e tranquila. Os arrozais intercalavam com as plantações de árvore de borracha, onde ao início da tarde pendurámos as redes para deixar a moleza tomar conta dos nossos corpos por um par de horas.
Já as brisas do meio da tarde se faziam sentir quando regressámos à estrada. Parámos para comprar uma papaia, uns feijões-verdes e duas curgetes a três raparigas sentadas à beira do caminho. As margens do Mekong são fonte de vida, delas brotam campos férteis de cultivo e pequenas povoações e as probabilidades de encontrar um lugar tranquilo para montar a tenda eram pouco prováveis, na ausência de turistas, alojamento também não parecia existir.
Passámos por um templo simples, sinal de que as donações ali não seriam as mais generosas, e pedimos autorização a um monge velhote que fumava um cigarro a seguir ao outro e que não falava inglês, se podíamos ali pernoitar. No seu assentimento montámos a tenda na parte de trás do templo, onde havia uma grande árvore sagrada. Ali cozinhámos e comemos, observando o Mekong a tilintar no dourado do sol poente. Despertámos ao toque dos primeiros gongos da alvorada e depois do pequeno-almoço de Nestum com papaia, seguimos os restantes 52 quilómetros até Thakek.
Em Thakek daríamos início a uma das etapas mais espectaculares do Laos que nos iria levar e às nossas bicicletas até às entranhas deste país – o circuito de Thakeke.
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