Sobre a simplicidade da vida
A vida seria bem mais simples se conseguíssemos ver coisas boas onde elas parecem não existir. O termómetro do conta-quilómetros assinalava 42C, não era uma questão de estar calor. Estava. E muito. Também não era uma questão de estar a ser difícil. Estava. Estrada com sobe e desce; estrada sem margens; estrada com muito pouca coisa de interesse para olhar; estrada com camiões carregados de troncos de árvores que um dia cobriam uma das áreas de selva mais vastas do planeta.
Nos primeiros dias, não havia mesmo nada para dar ânimo e motivação ao sobe e desce constante das estradas de Sabah. O ciclismo aqui foi uma luta constante entre as imagens e as ideias pré-concebidas de um destino remoto, da selva impenetrável, de aventura, e o lidar com a decepção de se perceber que na realidade já chegámos tarde, pelo menos no que se observa da varanda do alcatrão. Esse Bornéu remoto de selvas e aventura parece ser apenas acessível aos turistas endinheirados que se podem dar ao luxo de pagar tours exclusivos aos sítios recônditos onde o “progresso” ainda não chegou.
Ao encontro do Tiago e do Duarte
Mas o nosso desvio até ao Bornéu da Malásia proporcionou-nos um reencontro com o Tiago e o Duarte na sua escapada do frio nórdico Finlandês, onde vivem e onde trabalham. Uma chegada ansiada, não tanto por sabermos que as malas deles vinham cheias de encomendas esperadas e prendas inesperadas, mas porque quase depois de um ano de viagem íamos finalmente rever família e amigos família (o Tiago é primo do Nuno e o Duarte é cunhado do Tiago).
Entre as encomendas esperadas, o novíssimo selim em couro Brooks do Nuno, que nunca conseguiu adaptar o traseiro ao que vinha na sua burra, a Marin Muirwoods. A mochila Ortlieb à prova de água. Os mapas da Tailândia.
Quanto aos presentes inesperados que tal umas salsichas de Rena? Ou uma garrafa sublime de vinho alentejano, Marquês de Borba de 2010? Ou um chouriço caseiro espanhol? Ou então um queijo parmesão? E uma garrafa celestial de vinho do Porto vintage? Nada mal para um par de ciclovagabundos que normalmente fazem dieta forçada destes luxos.
Mas o que nos soube mesmo bem foi matar saudades e passar dias preguiçosos, ainda que breves porque foram só quatro, a por a conversa em dia, a debater o estado do mundo e a saber das novidades, sobretudo a de que o Tiago e a Patrícia vão ser pais.
Mabul a ilha que o tempo cristalizou
O encontro tinha ficado marcado em Semporna. De lá decidimos acompanhá-los até Mabul, uma ilha no mar do Bornéu, onde eles iriam fazer um curso PADI de mergulho, para depois mergulhar em Sipadan, supostamente um dos sítios mais espectaculares do mundo para fazer mergulho.
Mergulhar com tartarugas, tubarões e cardumes de peixe numerosos em águas quentes e cristalinas, oferecem algumas pistas do porquê. Mabul é uma ilha a cerca de meia hora da cidade estrambólica que é Semporna, aliás que são todas as cidades no Bornéu da Malásia. Mabul por seu turno é uma ilha bonita, daquelas que vêem nos postais das praias distantes. Uma almofada de areia sobre o oceano azul ponteado por palmeiras com uma povoação colorida de pescadores. Mas nem sempre é fácil desligar do facto de que esta pequena ilha também é um grande destino turístico.
As águas verde topázio, de outra forma irresistíveis para umas nadadelas refrescantes, estão minadas por dejectos flutuantes identificados, acabadinhos de sair das muitas sanitas com vista para o mar – se se olhar para baixo depois de puxar o autoclismo, das muitas guest houses. E se os custos que envolvem ir até à ilha não justificam a viagem ou a ida por si só, sobretudo porque está virada para turismo de mergulho com os hotéis a oferecerem pacotes com tudo incluído.
Uma vez lá é inevitável não reparar em como as comunidades de pescadores e sea gyspsies que ali vivem dão vida e cor àquele pedaço de areal feito ilha. Como se vivessem num universo paralelo quase alheio ao outro universo, o do turismo. Passeando no meio do labirinto que formam as suas casas sobre paliçadas é irresistível não dar espreitadelas curiosas por entre as janelas onde se vêem mães languidas a adormecer os filhotes na brisa quente do calor da tarde. Ou onde os homens jogam às cartas e as crianças brincam, esquecidas do espaço e do tempo. Os barcos que vão e que vêem.
Mabul é intemporal para os que são de lá, o tempo é o das estações do ano, a seca e a das chuvas, mas sempre do calor. É o tempo do mar, tranquilo e rebelde, que isola ou aproxima. É o tempo do sol que nasce e se põe. É o tempo de pescar e o tempo de estar com a família e os amigos. É o tempo lento. É o tempo como ele deveria de ser.
Despedidas feitas, o Tiago e o Duarte seguiram passados alguns dias rumo ao norte.
Na estrada da selva
Nós continuámos , também rumo a norte mas a um ritmo consideravelmente mais lento, ao ritmo das nossas pedaladas, ao ritmo das nossas pernas.
O nosso primeiro acampamento foi, sem grandes surpresas, no meio de uma plantação de palmeiras, das milhares e milhares que existem por toda a ilha. Sítios estranhos. Florestas assombradas onde os fantasmas são as outras árvores que ali existiram um dia, as árvores da selva que já não é. Um silêncio apenas interrompido pelo chilrear dos pássaros e pelas gotas de chuva a cair na tenda.
Com o céus cinzentos e o ofuscar do dia sentia-se a dimensão da natureza alterada pelo homem, nunca totalmente desfeita de beleza, mas certamente fora de lugar e de contexto.
Ao analisar o mapa do Bornéu as opções de rota ciclística eram duas: seguir em direcção a Sandakan pedalando pelas principais artérias do estado de Sabah e que a ligavam à capital, Kota Kinabalu. Um redondo não, pela certeza de que as estradas estariam cheias de trânsito e de plantações de palmeiras.
Regressar a Tawau onde tínhamos chegado de barco vindos da Indonésia e seguir pela estrada a que chamavam a estrada da selva ou jungle road era a outra opção.
Sobretudo porque iria envolver pedalar cerca de 160 kms dos cerca de 500 kms em estrada de terra batida, usada sobretudo como uma estrada madeireira. Informação sobre o estado da estrada era vaga. Que se tornava impassável na época das chuvas, era o detalhe mais concreto que conseguimos averiguar.
De todas as formas, a possibilidade de pedalar no meio de selva, por pouca que fosse e mesmo que envolvesse empurrar as bikes pela lama era aliciante suficiente para nos fazer optar, quase sem hesitações, por esta estrada.
Como seria de esperar os primeiros 90 kms foram seguidos pelas plantações de palmeiras e os povoados que brotam do seu meio para servir de infra-estrutura aos milhares de trabalhadores.
Estávamos na época das chuvas que caiam em hora incerta mas que milagrosamente fomos driblando, ora numa pausa para o almoço num taipal de uma plantação, ora numa pausa para uma sesta nas bancadas de um campo de futebol meio abandonado, ou numa pausa para uma bebida fresca num boteco de beira de estrada.
Quando o alcatrão acabou, já o verde, que atapeta as selvas e que as faz parecer que estão em chamas esverdeadas, rodeava tudo salvo os céus e a estrada branca. O trânsito cingia-se a umas quantas pick-up que passavam esporadicamente.
A estrada era nossa, longe do trânsito, longe do barulho, longe das aldeias improvisadas, longe das plantações de palmeiras. Nós e a selva que se foi tornando mais densa.
Saboreamos lentamente estes quilómetros, também porque com toda a beleza do que nos rodeava esta não deixava de ser uma estrada dura de sobe e desce incessante.
A estrada era também a estrada de acesso à Maliau Basin, ou o Mundo Perdido de Sabah, como é conhecido. Um parque natural que é um dos últimos redutos de selva virgem, se não o último em Sabah.
Por causa de informação errónea que obtivemos nos fóruns da net não contávamos visitar o parque porque os custos de entrada, de guias, de alojamento estavam muito acima das nossas possibilidades. Para grande surpresa nossa, quando por curiosidade fomos pedir informação já na entrada do parque, concluímos que a entrada não só era acessível como os serviços de guia não eram obrigatórios, podíamos também acampar por um custo nominal.
Ironia das ironias, já não tínhamos comida suficiente para passar os dois ou três dias necessários para poder visitar o parque em autonomia e, sem lojas por perto, perdemos uma oportunidade única.
Final da estrada da selva, regresso à civilização
Já sem mantimentos vimo-nos obrigados a rabiscar comida na casa de uma senhora que nos mostrou a sua despensa a título de mercearia improvisada, na pequena povoação de Batu Pungol. Foi pouco o que conseguimos encontrar: uns ovos, arroz, açúcar e duas cebolas. Vendo que nessa mesma aldeia havia um edifício em madeira com o nome pomposo de “resort “, decidimos averiguar se ainda servia para o fim publicitado.
Correram-se as casas de aldeia e finalmente encontrou-se o responsável. Era um alojamento comunitário que pelo aspecto e a contar pelas teias de aranha não era muito utilizado. As casas de banho eram a dois minutos de caminho por um sendeiro lamacento e o quarto que nos ofereceram tinha tantas caganitas de rato na colcha que decidimos ir para a sala de convívio e montar lá a tenda.
Pelo menos tínhamos o uso exclusivo do espaço e sendo que o dinheiro era para a comunidade não nos custou tanto trocar os nossos acampamentos gratuitos onde adormecíamos embalados pelos sons da selva e despertávamos envoltos pelo manto de nuvens matinais que preguiçosas se dissolviam lentamente com o raiar do sol, pelo desconforto de um sítio um pouco decrépito onde tínhamos que pagar.
Esse dia marcou também o nosso regresso à civilização, às estradas com alcatrão, ao trânsito, à falta de bermas, à paisagem depenada.


















