Algumas coisas são boas assim mesmo, sem mudar
É engraçado como se dá tanta importância à mudança. No entanto há muita coisa que é boa assim mesmo – sem mudar. Há três anos atrás, numas férias, no intervalo das nossas ciclovagabundagens pelo mundo, quando, como gente crescida, tínhamos trabalhos, contas para pagar e uma rotina, agarrámos nas mochilas e fomos três semanas para a Malásia.
Georgetown, na ilha Estado de Penang ficou-nos na memória como um sitio com um pouco de tudo que faz a Ásia ser a Ásia – a Ásia colonial; a Ásia chinesa; a Ásia Indiana.; a Ásia Muçulmana; a Ásia Budista; a Ásia Cristã, a Ásia Hindu e com um outro tanto da Ásia da comida dos sabores exóticos, das pessoas de toda a parte, dos vendedores ambulantes, da comida de rua, dos riqueshaws, dos turistas…
Chegámos ao aeroporto de Kota Kinabalu, a capital do Bornéu da Malásia, montados nas bikes às seis da manhã. Íamos metê-las no avião assim mesmo, sem caixa, sem protecção, sem nada. O Nuno dizia que a companhia (a Air Asia) deixava e que era melhor porque quem a transportasse veria que eram bicicletas e teria mais cuidado. Eu dizia que está bem mas vão-se estragar na mesma, vais ver, sem protecção é sempre pior. Começo a odiar andar com a minha bike em qualquer forma de transporte público.
Na primeira subida, já chegados a Penang, trac, trac, trac, trac, as mudanças mais leves não entraram, tive que subir com a mudança mais pesada. Desta vez foi o desviador que levou uma pancada e estava tudo desafinado na orquestra da minha pedaleira. Depois do cansaço proporcionado por um voo madrugador, a bicicleta desafinada e cheia de ruídos novos, as vias rápidas e os condutores impacientes, nas cidades grandes todos têm pressa e ninguém cede a vez, estava assumidamente, e com direito, rabugenta.
Não nos lembrávamos que Georgetown fosse tão grande e tão desenvolvida. Como as coisas mudam em tão pouco tempo. Não, não mudam. Nós é que nos esquecemos que o centro histórico estava …no centro, que por sua vez estava rodeado por prédios altos, centros comerciais e estradas congestionadas. Atravessada esta barreira, a “nossa” Georgetown, tal e qual como a tínhamos deixado há três anos atrás, reapareceu. Aliás, melhor até do que a imagem com que a tínhamos na memória. O plano de passar dois dias, os dias de fazer o visto para a Tailândia, esticou-se como um elástico. Ficámos cinco.
Viajar no tempo e nas memórias
Chegar ao centro histórico da cidade com as bicicletas carregadas em vez de uma mochila às costas e percorrer as ruelas dos templos chineses, dos mercados de rua, das lojas desarrumadas que servem de casa e montra, das bancadas de comida, dos rickshaws, da arquitectura colonial, da arquitectura chinesa, das casas de madeira, teve outra pinta. É inegável que os sítios nos “sabem” sempre melhor quando os conquistamos com o esforço dos nossos glúteos, parece que lhes temos mais direito, que fazemos mais parte deles. É estranho explicar.
Encontrámos uma autêntica pérola de hotel de arquitectura colonial pertencente a uma família chinesa – o Ai Goh, num beco tranquilo, mesmo no centro da cidade antiga .
Assim que entrei fui automaticamente transportada à casa da minha avó Maria, e tudo o que me transporta à casa da minha avó Maria, como o cheiro a madeira antiga encerada, as tábuas do chão a ranger, o conjunto de chá de porcelana chinesa e copos de vidro antigo dentro da cristaleira, a luz das janelas que iluminam detalhes de uma certa forma e obscurecem outros, é-me impossível resistir sobretudo porque a casa e a minha avó já cá não estão.
O Nuno também gostou do allure decadente do sítio e ficámos. Era perfeito para o descanso dos nossos corpos, perfeito para o nosso orçamento limitado, perfeito para explorar o centro da cidade que voltámos a calcorrear com entusiamo infantil.
– Xi, lembras-te daquela casa? – Sim, está igualzinha. – Olha aquele templo, e os riqueshaws, e aquela loja…e aquele vendedor ambulante, olha o hostal onde ficámos da outra vez; Era tudo o mesmo mas era como se sentíssemos tudo pela primeira vez.
Volta ao mundo dos sabores, com regresso a casa incluído
Mas o ponto alto de Georgetown foi o de poder voltar a dar a volta ao mundo através dos sabores da comida dos vendedores de rua e dos mercados. Esta cidade parece viver em função de um dos actos mais intrínsecos à condição humana, o de comer. E já dizia o ditado que quando em Roma… Encontra-se um pouco de tudo, comida de todas as partes em versão original ou reinventada e invariavelmente deliciosa. O desafio é ter espaço na barriga para conseguir enfiar tanto mundo lá dentro. Mas com tanta comida o que não contávamos nesta “volta ao mundo” foi regressar a casa.
Na primeira noite fomos ao Red Garden Night Food Market ansiosos por voltar a por os dentes no melhor e mais barato sushi que possivelmente se encontra neste lado do mundo. O Red Garden é um mercado frequentado por turistas, tem um palco com entretenimento e tudo, com um senhor asiático com chapéu àcowboy a tocar órgão e várias moças de género sexual bipolar a revezarem entre si para cantar os hits da Adele, do Gagnam style e outras músicas que não sei se são hits ou não, mas que são aqui das Ásias.
Já com a segunda garrafa de Tiger aviada e no segundo prato de sashimi, olho na direcção oposta e parece-me conseguir distinguir as cores da bandeira de Portugal no logotipo de um dos tascos do mercado. Pergunto ao Nuno se ele consegue ver, o que foi estúpido da minha parte, já que ele usa óculos e vê pior ao longe do que eu. Levantei-me intrigada e fui averiguar. E não é que era mesmo. Pito’s a servir frango no churrasco, bifanas, espetadas e outras iguarias Lusas. Fantástico!
O pessoal que estava sentado em frente do tasco viu que eu tinha pinta de tuga e meteram conversa. Eram os donos. Conversa vai, conversa vem, que afinal não se encontram conterrâneos por estas paragens com frequência, marcámos encontro para o jantar da noite seguinte. Duas ou três cervejas e um frango grelhado depois já parecia que conhecíamos o Ricardo (um dos donos), o Rodolfo (o jovem filho do dono), o Luís (o cozinheiro) e a Vicky (a outra dona, sócia e companheira de Ricardo) há uns bons tempos.
Estavam por aquelas paragens, que há uns seculos atrás recebeu outro tipo de empreendedores Portugueses: os navegadores e os comerciantes, com outros projectos, mas que trazer os sabores lusitanos, que reflectem algo da nossa cultura, era algo que queriam explorar e, dependendo do sucesso do Pito’s, quem sabe, um restaurante de luxo com fado e tudo. Esperemos que sim e, se algum dia regressarmos a Penang, fica o reencontro marcado no Pito´s – o melhor frango Piripiri de Georgetown.
Vistos para a Tailândia nas mãos, barriga cheia, enfiamo-nos a nós e às bikes num barco rápido que mais parecia uma arca congeladora com o ar condicionado no máximo e rumámos a Langkawi, uma ilha no mar de Andaman ainda pertencente à Malásia. Langkawi é uma espécie de Algarve onde as melhores praias ou estão cheias de gente a passear em bananas de borracha amarela, ou em motos de água ruidosas, ou simplesmente a pontear o amarelo dos areais com as cores dos seus fatos de banho ou dos seus hijabs, conforme a crença e o pudor; ou pertencem a cadeias de hotéis de luxo internacionais de uso exclusivo.
Dar a volta à ilha – Langkawi
Vistos para a Tailândia nas mãos, barriga cheia, enfiamo-nos a nós e às bikes num barco rápido que mais parecia uma arca congeladora com o ar condicionado no máximo e rumámos a Langkawi, uma ilha no mar de Andaman ainda pertencente à Malásia.
Langkawi é uma espécie de Algarve onde as melhores praias ou estão cheias de gente a passear em bananas de borracha amarela, ou em motos de água ruidosas, ou simplesmente a pontear o amarelo dos areais com as cores dos seus fatos de banho ou dos seus hijabs, conforme a crença e o pudor.
Ainda assim nos 87 kms que pedalámos na ilha conseguimos acesso a uma das praias de um resort, que estava vazia. Da serenidade e do estado quase deserto das suas areias avistámos os penhascos de calcário, os guardiães do Andaman que se vêem por toda a parte nestes mares.
À noite acampámos gratuitamente numa outra praia – Pasir Tengkorak – habitada por macacos estúpidos que nos furaram o saco Ortlieb que usamos para carregar água, parecia um fontanário.
Na tentativa de competirmos com a localização idílica dos bungalows dos resorts de luxo, pusemos a tenda na areia enquadrada por uma árvore torcida e o mar em frente. Acordámos a meio da noite com a tenda a menos de um palmo das ondas e tivemos que mudar acampamento às quatro e meia da manhã.
O que é que nos faltaria acontecer para completar a nossa estadia de luxo naquela praia exclusiva? Ser acordados por uma família numerosa e ruidosa às seis e meia da manhã? Ou um altifalante de um grupo matinal de desportistas? Pois, a facilidades com que os desejos se tornam realidade. Foi exactamente o que nos aconteceu. Em ilha cheia, não há descanço.
Estava a volta dada à ilha, sentimos que tínhamos visto o que tínhamos para ver. Deixávamos a Malásia para trás. Mais um país, ou no nosso caso…menos um, para pedalar.
Rumo à Tailândia
Partimos em mais um barco, rumo à Tailândia. Duas horas e meia depois chegámos a Satun, no Sul, onde o oficial da emigração nos desejou uma boa estadia. Isto começava bem .
Depois do primeiro dia a pedalar e perceber que as bermas largas das estradas estavam para ficar, que as pessoas eram simpáticas e a comida boa, as dificuldades do cicloturismo pareciam coisas distantes do passado que tinham ocorrido noutra vida!
Rumámos a Koh Tarutao, uma ilha, Parque Natural, onde deixámos as bicicletas, para três semanas de férias com a mãe e sogra Elizabete. De mochila às costas íamos ver outra Tailândia, ter um Natal tropical em família, ou quase e, depois, regressar às bikes para atravessar o país e seguir. Rumo lento a Portugal.