Konglor – viagem ao centro da terra
E o mundo desapareceu. Ou nós desaparecemos, engolidos pelo mundo. A grande boca de montanha que regurgitava um rio, recebia a luz seca do dia que lhe iluminava o interior, revelando as entranhas esverdeadas e cinzentas – a cor das rochas que a revestia. Mas depois da primeira curva, tudo se fez escuro, e não fosse a luz fraca dos frontais do rapaz no leme-motor que ia na parte de trás da embarcação e do seu ajudante que ia à frente como farol, o que se via era o nada da escuridão iluminado momentaneamente por faixas de luz ténues que revelavam formações calcárias que mudavam de forma com o bruxulear das luzes. Mesmo na escuridão, nas possibilidades do que não víamos, aquilo era opulento – um rio que atravessa uma montanha percorrendo sete quilómetros nas suas vísceras – a Natureza é esmagadora e as suas criações derradeiras!
A gruta de Konglor é a mais impressionante em que alguma vez entrámos. Ambos tivemos esta sensação assim que a sua escuridão nos abraçou e os sentidos se fixaram no silêncio apenas interrompido pelo cintilar da água debaixo do pequeno barco que nos levava, do seu motor e dos ecos. Quando voltámos a ver a luz do dia sob os penhascos vertiginosos forrados a selva que havia do outro lado, as palavras ainda não haviam encontrado a rota das nossas sensações. Emitimos apenas um incompleto – Uau! Depois voltámos a entrar terra adentro, de regresso, e a sensação, mesmo já sabendo o que nos esperava, voltou a ser pungente. Acho que podíamos fazer aquele percurso mais de mil vezes e a mesmerização seria igual.
Outras viagens no circuito de Thakeke
O circuito de Thakeke foi-nos recomendado por um ciclista Inglês que conhecemos nos últimos dias no Camboja, o Ian, que já havia pedalado o país de “lés-a-lés”. Para seguir esta rota há que fazer um desvio da estrada principal, em Thakeke, daí o nome, e rumar para Noroeste por uma estrada que nos transporta para uma área remota, pontilhada por formações cársicas, montanhas e povoações distantes. Foram 369 quilómetros que na sua breve dimensão revelaram mais do que a beleza óbvia da paisagem. Foi como se inadvertidamente entrássemos teatro adentro, subíssemos ao palco, e conscientemente fossemos espreitar o que se passava atrás do cenário, construindo uma visão mais completa da peça que estava em cena.
Nos primeiros quilómetros tem-se a ilusão de que se está num sonho, o ar coberto por uma bruma constante que dá a sensação que aquele não é um plano real, a realidade tem mais definição, mais nitidez, e depois há a simplicidade da vida humana, ilusória, e a complexidade do mundo natural (embora a realidade seja ao contrário). Parece que as pessoas vivem com o contentamento da parte que lhes toca da vida, sobretudo do que se tira à terra, um ou outro conforto, mas sobretudo dos laços que se forjam com a família e os vizinhos. O tempo depois do tempo que os campos requerem passa-se em celebrações. Celebram-se casamentos e outras alegrias que a cerveja e o Laolao (aguardente de arroz local) são baratos e abundantes e as terras descansam no calor da época seca.
Das reentrâncias da terra, fazem-se altares íntimos: grutas onde se veneram budas e seres grotescos. Bandeiras coloridas esbracejam ao vento, o fumo estreito do incenso rodopia, e pendura-se dinheiro em apetrechos decorativos dourados. Venera-se a vida como ela é entendida e aceite e projectam-se desejos e ambições. Se há boa sorte ou não, para os olhares desprevenidos, é fácil acreditar que sim. Os rios seguem livres, neles lavam-se os suores do dia e renova-se a alma nas águas cálidas. As crianças sorriem e vêem às portas dizer adeus. Tudo é perfeição na terra onde os penhascos verdejantes recortam os céus. Ou quase.
Nos bastidores do Laos
Algo muda na paisagem que readquire nitidez e clareza, até a bruma parece desaparecer. Atravessa-se uma ponte onde começa um gradeamento de arame que se estende por vários quilómetros e que interdita o acesso a um grande reservatório de água em que se transformou o rio livre ao lado do qual pedalávamos. Três búfalos olham incrédulos o grande lago que têm diante de si, o qual não podem aceder. Em seu redor, nada existe onde possam ir matar a sede e refrescar os seus corpos volumosos. A água das redondezas, sobretudo agora que é época seca, está enclausurada naquele reservatório inacessível.
Avança-se por uma estrada recentemente atapetada com uma camada fina de alcatrão e chega-se a uma barragem – a Nam Theum 2. Porque há mais. Neste complexo hidroeléctrico vêem-se inscrições em caracteres chineses. Mas aqui não se trata de um fenómeno local de poliglotismo. Bem pelo contrário. A barragem foi construída pelos chineses, companheiros de políticas e ideais comunistas. E é a grande China com desígnios disfarçados de altruísmo que envia para aqui trabalhadores,
engenheiros e empresas nacionais de construção. Tudo em prol do progresso, da modernidade, da melhoria dos meios de comunicação. De que país, é que é algo debatível.
Segue-se uma subida curta e árdua, onde os nossos corpos se transformaram em torneiras de onde sai suor a jorros. No final, chegamos a mais uma aldeias onde comemos uma sopa de noodles. Sim, estamos nos bastidores de uma peça teatral que decorre ao ritmo das nossas pedaladas. Uma peça não encenada e nunca repetida – a da vida real deste país.
Laos: segundo acto
Do meu lado esquerdo existe uma selva pristina, das primeiras que vemos no país, interrompida por uma estrada poeirenta, branca e ondulante que trabalhadores preparam para alcatroar. Pedalamos, curva e contra curva, e do nosso lado direito, no topo do que é agora um grande planalto, surge um lago imenso, do qual não vislumbramos as margens opostas. Dentro dele ergue-se uma floresta semi submersa, fantasmagórica, onde o reflexo das águas repete como um eco indesejado, a tristeza do que se vê – a selva que na impossibilidade de escapar, ficou ali presa, morrendo uma morte lenta. É mais um reservatório de uma barragem, a Nam Theum 1. A selva viva desaparece eventualmente e tudo o que nos rodeia é aquele lago gótico de águas serenas assombradas por árvores esqueleto. É algo morbidamente belo – o silêncio, a ausência de som, de vida, de cor.
A estrada vai deteriorando. Por ela passam maquinaria e muitos camiões com troncos enormes avermelhados. Um está atolado impossibilitado de avançar. Outro, despistou-se e há troncos espalhados pela encosta da montanha, como se a natureza pudesse jogar ainda algumas cartadas neste jogo disléxico, onde parece estar a perder…
O quilómetro 20
Deixámos o planalto por uma descida precária chegando a meio da tarde à cidade de Laksao. Este emaranhado de construções de cimento, azáfama e poeira, brotado do meio remoto das montanhas, explica-se de forma simples e com duas palavras: ganância e corrupção. Laksao significa quilómetro vinte. Esta cidade relâmpago, onde até o próprio nome foi escolhido à pressa, nasceu do sangramento da selva que a circunda, para o país vizinho, o Vietnam. Os que fizeram fortunas desta forma nem sequer eram dali. Políticos da capital, diz que. Por isso, agora que não há tantas árvores para cortar, a gente, que na maioria continua essencialmente na mesma, na sua pobreza e na sua simplicidade, já se deve ter conformado com o facto da bonança não ser um direito de todos. E como “não vale a pena chorar sobre o leite derramado” e a vida continua, faz-se isso mesmo – continuar a viver.
Em Laksao fomos ao mercado comprar provisões para o jantar dessa noite. Em poucos sítios se experiencia a vida local com tanto realismo e vivacidade. Mesmo sendo só uma das facetas da vida destas gentes, é uma faceta primordial. As bancadas, que se transformam em camas bem chegando o meio-dia e em a clientela começando a escassear, depois da sesta, renascem. Os produtos parecem ganhar nova cor, e até as moscas regressam com intensidade renovada.
Aos produtos convencionais e familiares para os nossos olhos europeus, juntam-se animais ainda vivos ou em estados distintos de mortandade, frutos e vegetais estranhos, que não sabemos se são frutos ou vegetais. Os cheiros são tão intensos e díspares que em fracções de segundos tanto se abrem os apetites, quer seja com uma espetada de carne suculenta a assar na brasa, uma fruta exótica de cheiros adocicados, como se tem vontade de deitar o almoço borda fora, com os odores do lixo que apodrece no chão, do peixe decomposto, e até de alguns produtos bizarros e disformes que se encontram à venda.
E as pessoas são de todas as idades. Novas, velhas, homens e mulheres, mas sobretudo mulheres. Mãos que agarram fruta, cortam carne, escamam peixe, agarram dinheiro, entregam sacos de plástico com os ingredientes de refeições futuras. Bocas que falam línguas distantes, dialectos íntimos, sorriem, aprovam, desaprovam. Olhares que falam também na pele rasgada que lhes enquadra os olhos – é o universo da troca. Da troca de risos, de palavras, de sons, de olhares, de produtos, de dinheiro.
Nessa noite pendurámos as redes numa construção de palha afastada da estrada, onde os campos secos descasavam. Cozinhámos os vegetais que comprámos no mercado com arroz. Adormecemos sob o olhar abstracto das estrelas e fomos acordados às quatro e meia da manhã pelo som surreal das colunas de um vizinho invisível, que bombavam à potencia máxima – e era muita, as batidas do “Gagnam Style”, claramente a banda sonora oficial da nossa passagem pela ásia. Pelo menos o vizinho invisível desligou as colunas quando saiu de casa para mais um dia de trabalho e podemos voltar a adormecer embrulhados na bruma fresca da manhã.
Uma guerra secreta
Despertámos de manhã bem cedo e seguimos nas nossas bicicletas, montanha acima, montanha abaixo. Ao fim da manhã atravessámos uma ponte de mais uma aldeia bucólica nas margens do rio Nam Theum e parámos para observar os barcos atracados nas margens – na estranheza e familiaridade da sua forma. Uma inspecção mais próxima revelou algo bizarro: são feitos com o casco de bombas, das 260 milhões que os Americanos deixaram cair na sua guerra secreta contra o país.
E eis alguns factos interessantes sobre o Laos que depois de vermos estas bombas atracadas inocentemente nas margens serena do rio nos levou a descobrir alguns factos que aqui partilhamos sem grandes devaneios, porque são desnecessários.
– O Laos foi o país do mundo mais bombardeado.
– Entre 1964 e 1973, as bombas que lá caíram fazem com que em média um B-52 descarrega-se a sua carga nefasta sobre a paisagem a cada oito minutos.
– O Laos não estava em guerra e não havia declarado guerra a nenhuma nação. Fazia fronteira com a China e o Vietname, e sob o receio de que os ideais comunistas se alastrassem, os Estados Unidos decidiram embarcar numa guerra secreta contra este país.
– Estima-se que um terço das bombas estejam ainda por explodir, que 37 por cento da terra arável esteja ainda contaminada, e que quatro quintos da população viva desta – da terra.
– Mais de 20,000 pessoas já morreram como consequência de munições que não explodiram, depois dos bombardeamentos terem terminado, sem falar nas que não morreram mas às quais faltam braços, pernas e sobretudo, esperança.
– Os Estados Unidos gastaram tantos fundos em três dias de bombardeamentos nos Laos, como o que gastaram nos últimos 16 anos na limpeza das munições por explodir.
– E só a título de remate: depois de os Estados Unidos saírem derrotados contra o Vietname, o Laos tornou-se num país comunista. Ainda o é até aos dias de hoje.
E por aqui nos ficamos, de regresso às paisagens pristinas, aos penhascos de calcário, às subidas dolorosas, às grutas enigmáticas e silenciosas, um bom local para lavar a alma e reciclar pensamentos, voltando à ilusão de que tudo é perfeito. Tem que ser, as pessoas afinal ainda não se esqueceram de sorrir. Chegámos à gruta de Konglor que nos levou às entranhas da terra. Ao silêncio e à paz, restauradoras.
Para os que ficaram com curiosidade de saber mais sobre a guerra secreta dos Estados Unidos no Laos recomendo que dêem uma vista de olhos nestes links:
http://legaciesofwar.org/about-laos/secret-war-laos/
http://www.guardian.co.uk/world/2008/dec/03/laos-cluster-bombs-uxo-deaths
Chegada à capital mais tranquila do Sudoeste Asiático – Vientiane
Parecia que a cidade estava de férias. Parecia Paris em Agosto, quando os parisienses debandam e vão em viagem deixando a cidade entregue aos turistas. Mas ali nem mesmo os turistas eram muitos. O trânsito era ordeiro e os carros e as motos aparentavam não vir equipados com apitos. Mas é assim em Vientiane, a capital tranquila e pacata do Laos. Uma cidade que parece não pertencer ao país à qual preside, nas suas grandes avenidas, que relembram os boulevards da velha Europa, com canteiros arranjados, grandes rotundas, como pontos finais das rectas que são as ruas principais.
Aqui chegámos com uma missão, cujo sucesso, determinaria a rota das nossas pedaladas – conseguir visto para o Vietnam e para a China. Foi sobretudo uma missão cara e morosa: ao todo só em vistos e extensões gastámos mais de 120 euros cada um – o preço do sucesso.
Mas a semana que ali passámos à espera dos vistos, mesmo que pegajosamente quente, passou a correr. O Jorge, o nosso amigo e viajante português, que tínhamos conhecido em Thakeke antes de fazer o circuito, juntou-se a nós, também com a missão de obter o visto para a China. E a “guest-house” onde ficámos, a Syri 1, com a sua atmosfera vintage-colonial, foi o poiso perfeito para os nossos “tête-à-tête”. Até uma feijoada ali cozinhámos, que eu infelizmente estraguei com a adição de folhas de “lima-kefir” por achar que podiam fazer as vezes de umas folhitas de louro. O resultado foi uma espécie de guisado oriental, muito próximo dos sabores que pretendíamos precisamente evitar. Enfim, valeu a garrafa de vinho chileno que o Jorge comprou e da felicidade de estarmos de novo entre amigos em terra alheia a partilhar a língua mãe.
Para quem sente que ainda não viu templos budistas suficientes, Vientiane é o sítio perfeito, são mais de cem. Mas existem outros atractivos: Patuxai – um arco do triunfo, versão oriental, feito com o cimento que os Americanos deixaram para trás com a intenção falhada da construção de um novo aeroporto. E existe a cidade em si. Outra, nas margens do Mekong, que se enche de “Jane Fondas” a queimar calorias, com paços aeróbicos coordenados ao som da batida de música de “carrinhos de choque” – possivelmente dos poucos sítios no país onde chegámos a ponderar que a Beerlao da ordem, talvez não fosse a opção mais saudável.
Seguiríamos rumo a norte, rumo às montanhas e rumo à nossa saída do país. Com muito ainda para descobrir e pedalar.