Sobreviver nos extremos
I can see clearly now the rain has gone, I can see all obstacles in my way…look all around there´s nothing but blue skies…
Fui para a praia ao fim do dia a assobiar a música do Johnny Nash com uma chávena de chá a aquecer-me as mãos. Tinha a sensação de estar no velho anúncio da Nescafé dos anos oitenta onde a rapariga chegava a uma praia deserta no seu carocha e preparava uma chávena do líquido negro e a bebia a olhar o horizonte cheio de promessas. O Nuno montou a tenda e depois juntou-se a mim. Percorremos a praia deserta marcando as nossas passadas na areia com o por de sol alaranjando que augurava mais um dia de sol e a continuação de pedaladas secas e produtivas. Quando acampámos na praia da Baía de Tauranga, perto do Cabo Foulwind, que significa em português o “cabo do vento horroroso” assim baptizado pelo Capitão Cook em 1769 quando o navio em que viajava, o Endeavour foi afastado da sua rota ao largo da costa, por ventos fortes.
A costa Oeste – a West Coast , que é conhecida como a wet coast , uma brincadeira local com as palavras alusiva à chuva que aqui cai a maior parte do ano, é uma área isolada e selvagem com povoações esparsas. Não é difícil de entender porquê – até há pouco tempo não estava ligada por estrada e os que se aventuravam tinham que lidar não só com o isolamento mas também com o mau tempo e os poucos recursos. Os primeiros colonos chegaram aliciados pelo ouro, outros, pela pesca da baleia e outros ainda, pela exploração da madeira. Formaram comunidades isoladas onde o acesso só era possível por mar e quando o tempo o permitia. Abundam histórias de naufrágios um pouco por toda a costa. À medida que estas formas de subsistência foram declinando, muitos partiram, os que ficaram encontraram outras formas de se manterem e de dominar esta terra selvagem com a criação de gado, agricultura e recentemente – o turismo.
O espírito de auto-suficiência continua bem presente. Moana, uma mulher de sorriso largo e feições Maori que conhecemos quando nos desviámos da estrada principal para provarmos outra versão de tosta de whitebait a delicacia local, contou-nos que era da ilha do Norte mas que se havia apaixonado pelo homem que agora era seu marido e pelas praias remotas da Costa Oeste. Na casa onde habitava com o marido e o filho de oito anos à beira da praia não havia electricidade e por isso usavam painéis solares como fonte de energia, a pesca e venda dos peixes pequeninos eram a sua forma de subsistência . Não trocava aquela forma simples de vida por outra , disse-me com um brilho nos olhos. Explicou-me também que o seu nome queria dizer mar e quando lhe perguntei se tinha nascido perto do mar, disse-me que não. Rimo-nos com a ironia do destino.
Lagos serenos, cenário de filmes épicos
Para chegarmos a Queenstown de Te Anau tivemos que percorrer cerca de 30 quilómetros na mesma estrada que havíamos pedalado para lá chegar. Continuámos por uma estrada de terra batida, ladeada por colinas ponteadas de ovelhas, com destino aos lagos Mavora, dois lagos serenos que reflectiam nas suas águas as montanhas amareladas, a floresta verde das suas margens e quem se assomasse nas suas margens. Acampámos à beira do lago Sul e, de manhã, quando despertámos e saímos da tenda não havia vento. O silêncio reinava. Sentimos que estávamos dentro de uma fotografia infinita, uma imagem parada no tempo e no espaço, um cenário em desuso de um filme.
A tranquilidade destes lagos foi temporariamente interrompida em 2000. Camiões de equipamento, equipas de filmagem e actores famosos ocuparam este lugar mágico para filmar algumas cenas da trilogia do Senhor dos Anéis, produzido pelo Novo Zelandês Peter Jackson.
Continuámos pela estrada de terra batida que seguia por um vale amplo com montanhas de cores secas, o azul do céu e o isolamento fizeram-nos lembrar as paisagens do altiplano Boliviano.
Tão distraídos íamos com a paisagem e a tirar fotografias que não olhámos as horas, um vento de frente levantou-se e conseguimos apenas apanhar o TSS Earnslaw, um barco a vapor, que nos levaria para a outra margem do lago Wakatipu onde se encontra Queenstown, na sua última travessia do dia já o sol se escondia por trás das montanhas. Depois de dois silvos aparatosos, com as chaminés a fumegarem, juntámo-nos com as bicicletas aos turistas que cheiravam a lavado e tinham roupas limpas e passadas a ferro. O barco centenário seguiu a todo vapor lago fora ao som de um pianista que tocava músicas antigas da época dos pioneiros europeus.
Queenstown, a adrenalina está nos sentidos
Com o sol já no outro lado do planeta, as luzes da cidade e as estrelas eram os únicos pontos no meio da escuridão. Chegámos a Queenstown já tarde, os bares estavam cheios de gente buliçosa com copos de cerveja na mão que falava e ria alto animando as ruas. Dos restaurantes sofisticados à beira do porto vinham cheiros de comida tentadores. Havia, como em nenhuma outra cidade onde houvéssemos estado na Nova Zelândia, vida nas ruas.
Montámos a tenda num parque de campismo caro e de aspecto industrial e adormecemos exaustos ao som das gargalhadas, da música alta e dos estalidos de latas de cerveja a serem abertos pelos nossos vizinhos. Queríamos partir na manhã seguinte, mas não o fizémos. Depois de percorrermos a cidade e de a sentirmos com a luz do dia decidimos ficar.
Queenstown é a Meca daqueles que procuram actividades que aumentam os níveis de adrenalina o suficiente para causar ataques cardíacos e, o menu é variado: bunjy jumping, speed boating, rafting em rápidos de classificação 5, sky diving, canyoning , a lista é longa para os que têm coragem e orçamento. Nós deixámos a capital da aventura depois de três noites com os nossos níveis de adrenalina bastante estáveis, não tanto pela falta de coragem mas sobretudo pela falta de orçamento.
O mais excitante que fizemos constou em actualizar o site, já há muito devido, passear pelo parque à beira do lago, uma das poucas coisas que se pode fazer gratuitamente na cidade e, cozinhar uns simples mas deliciosos jantares aos quais adicionamos algum picante para induzir o aumento das batidas cardíacas. Penso que acampar rodeados de autocaravanas conduzidas por adolescentes ressacados e esperar que não fizessem marcha atrás para cima da nossa tenda, tenha sido o mais perto que estivemos de ter algum aumento nos nossos níveis de adrenalina enquanto estivemos em Queenstown.
Todas as estradas têm história
Depois de lerem este parágrafo fechem os olhos e imaginem uma ilha. Nessa ilha existem montanhas, muitas altas e escarpadas, que tocam os céus até perto dos quatro mil metros; no topo dessas montanhas existe neve todo o ano e, nas suas encostas florestas densas onde do solo até ao topo existe vegetação quase impenetrável. Pelas encostas das montanhas serpenteiam rios com águas glaciares que fluem velozes por vales íngremes que se juntam ao mar em caudais abundantes. Na linha que define a fronteira entre água e terra existem precipícios até aos quais chega a vegetação sem quase se poder definir onde acaba a floresta e começa o precipício. Existem também baías de areia, onde as ondas altas e brancas de água salgada vêem morrer e depositar detritos trazidos pelos rios e pelas correntes marinhas.
Agora imaginem os primeiros homens que atravessaram em canoas de madeira, vindos da Polinésia, com pouco mais do que as estrelas como ponto de orientação, um mar traiçoeiro e ventoso do qual conheceriam talvez a direcção das correntes e, que povoaram a ilha onde a chuva e o vento são abundantes – os Maori, os primeiros povoadores. Estes foram-se adaptando ao longo dos séculos às vicissitudes da terra numa existência quase nómada e isolada percorrendo o território em busca de alimentos e da pedra sagrada – o Pounamou (jade) por mar e por alguns sendeiros pelo meio das florestas.
Mais tarde vieram os primeiros Europeus e com eles a procura de minerais preciosos e de formas de extrair bens de valor económico da terra e do mar. Acampamentos esquálidos foram erguidos à beira dos rios e nas praias de águas traiçoeiras e infestadas de mosquitos. Imaginem por fim, os enormes desafios que se apresentaram quando os pequenos acampamentos se foram transformando em pequenas vilas e cidades que eventualmente tiveram que se interligar por estradas. Grandes projectos rodoviários tiveram início na época da Grande Depressão dos anos 30 como forma de proporcionar emprego e desenvolvimento económico, mas muitas não foram terminadas até finais dos anos 90 num esforço contínuo entre gerações.
A estrada que liga Arrowtown a Wanaka – Crown Range Road, é uma dessas estradas, que até há dois anos não estava completamente alcatroada, na realidade a estrada não está completamente alcatroada porque existem trabalhos constantes de manutenção devido às condições extremas do clima. É uma estrada panorâmica e cénica, que leva turistas às estações de ski, ou a via alternativa para as centenas de auto- caravanas que se aventuram nas suas muitas curvas e contra curvas. Em tempos passados, quando ainda era só um conjunto de carreiros lamacentos por onde passavam carroças e cavalos, dava acesso a Cardrona, uma antiga vila mineira que conserva ainda alguns edifícios dos tempos da exploração do ouro, parece uma cidade do faroeste Americano.
Esta estrada é também a estrada que atravessa o passe alcatroado mais alto da Nova Zelândia aos 1076 metros. Teria sido útil ter tido conhecimento deste facto antes de chegar ao topo, onde exaustos depois de 3 horas e 20 quilómetros a subir pendentes íngremes, alguns com mais de 15 por cento de inclinação, lemos a placa alusiva à construção da dita estrada e do seu estatuto como sendo a estrada pavimentada mais alta do país.
Perder o folêgo. Ganhar vida. Os primeiros 1000 kms
Seguimos rumo ao Norte pelas montanhas e em direcção á Costa Oeste para fazer mais um passe – o Haast – este modesto em comparação, não só na altitude como na dureza, mas o downhill que nos levou ao longo do rio que dá o nome ao passe, de águas glaciares de cores azul-turquesa , até ao seu encontro caudaloso com o mar, oferece paisagens que são tudo menos modestas.
Aqui pedalámos alguns dos quilómetros mais bonitos da viagem. Da estrada principal havia pequenos trilhos que nos iam distraindo da nossa rota principal. Deixávamos as bicicletas encostadas a umas árvores e percorríamos a pé os percursos que nos levavam até cascatas que se despenhavam pelas encostas alcantiladas criando piscinas de azul. As florestas tinham árvores milenares e semitropicais. De volta às bicicletas, partes da estrada eram apenas um fio de alcatrão, onde no lado direito o rio Haast ia ganhando volume e à esquerda uma parede de pedra ao qual se vislumbrava o cume. Chegámos ao fim do dia a Haast Town com os nossos primeiros 1000 kms completos.
Na costa Oeste. Entre a terra e o mar
Nesse dia chegámos também ao que é considerada uma das zonas mais remotas do país – a Costa Oeste. No entanto, nos dias que correm é difícil ter a sensação de que se está num local remoto já que as estradas e as pequenas localidades estão repletas de caravanas e carros de aluguer, os meios de transporte mais utilizados pelos turistas seguido pelas bicicletas. Cruzávamos uma média de seis ou oito cicloturistas por dia. O que na América do Sul proporcionava encontros que mereciam pelo menos uma paragem para a troca de informação e experiências e, invariavelmente terminava com a partilha de um almoço ou, até, de um acampamento, tornou-se num mero olá apático dito á pressa sem tirar os olhos da estrada.
E a Highway 6, ou a estrada que percorre a Costa Oeste por mais de 500 kms até voltar a meter-se pelas montanhas a dentro, revela cenários de uma beleza única. Não é surpreendente que seja património da humanidade e seja invadida por milhares de turistas, mesmo com a promessa quase garantida de que vão experienciar vento e chuva.
E é impossível não soar a um panfleto turístico, mas não devem existir muitos locais no mundo onde geograficamente se encontrem tão próximas paisagens tão distintas como glaciares, praias desertas, cumes nevados e florestas semitropicais. Apesar de existirem algumas populações e algumas cidades, esta área tem pelo menos 3 parques Naturais e várias reservas, grande parte do que se vê é o que os primeiros Maori viram antes de atracarem as suas canoas e montar acampamento há novecentos anos atrás.
Esta parte do país é um verdeiro museu vivo ao planeta e á criatividade inigualável da Natureza. Nas paragens que fizemos ao longo da nossa rota tivemos oportunidade de fazer um percurso pedestre de 12 kms, o Robert´s View Point, que nos levou a um ponto onde podíamos ver o glaciar Franz Joseph e observar os pequenos pontos negros dos grupos de turistas que o percorriam com as suas botas de gelo atrás dos seus guias.
Amigos e kayaks. O fim das pedaladas na costa Oeste
Em Hokitika, uma pequena cidade, em tempos com um porto importante de onde partiam barcos carregados com madeira, ouro e outros bens explorados na zona e por onde chegavam novos colonos vindos do velho mundo, é agora uma pequena cidade simpática onde fomos recebidos por Kevin. Cabelo branco, olhar atento um aperto de mão forte e um sentido de humor seco, Kevin recebeu-nos na sua casa onde vive sozinho e na qual nos fez sentir como se estivéssemos na nossa própria.
Depois do jantar o Kevin partilhou as suas histórias de alpinista veterano. Falou-nos também do seu amor pelas montanhas e pela Natureza. Na manhã seguinte levou-nos até ao lago Kaniere que atravessamos à vez no seu kayak numa espécie de triatlo que juntou às remadas, uma caminhada revigorante e umas pedaladas.
Deixámos a sua casa para percorrer os últimos quilómetros junto à costa com vontade de ter lá ficado mais tempo, mas os quilómetros que se seguiram foram dos mais bonitos da costa – de Hokitika até Wesport, antes da a Highway 6 seguir de novo para o interior. O sol e a ausência de vento ajudaram e os últimos 110 quilómetros continuaram junto ao mar, ora sobre precipícios ou bordeando pequenas baías rochosas ou de areias cinzentas, nas duas últimas noites descobrimos praias quase desertas e acampámos nelas adormecendo cansados pelo som renovador das ondas.
A dois dias da nossa saída da Costa Oeste ainda tivemos a oportunidade de ver uma colónia de focas perto do Cabo Foulwind, e o por do sol no meio de umas formações rochosas calcárias em forma de panquecas gigantescas por entre as quais o mar ia escavando tuneis e onde as ondas fortes deixavam no seu embalo repuxos água salgada que subia aos céus criando pequenos arco iris, não éramos no entanto os únicos, pois o segredo de um local tão único já há muito se havia espalhado pelos quatro cantos do mundo.