Napier, a cidade onde a Arte Decco se perde nos letreiros
Napier aparecia nas brochuras turísticas como uma das cidades mais interessantes da Nova Zelândia. No início do século tinha sofrido um tremor de terra onde parte dos edifícios do centro da cidade tinham ficado destruídos. Os autarcas da época aproveitaram para reconstruir a cidade no estilo da moda – Arte Decco.
Com ou sem Arte Decco, Napier não nos impressionou, pareceu-nos outra cidade do “mundo novo” na fase pubescente a sofrer de problemas de identidade. É que se as fachadas são Arte Decco, os letreiros dos negócios que as alojavam, são bem contemporâneos e, grandes. Pouco ou nada se via das traça característica do estilo.E eram apenas dois ou três quarteirões, o resto da cidade era composta pela já usual combinação de casas de subúrbio e áreas comerciais tipo industrial. A beira-mar e o longo paredão sacabam por ser a parte mais agradável da cidade.
Chuva, chuva e, mais chuva…
Entretanto tínhamos recebido notícias do Alvaro, o biciclown, e como íamos na mesma direcção combinámos um reencontro. A estrada que liga Napier a Wairoa, a N2, descreve-se da seguinte forma: sem bermas, com curvas, subidas e bastante, eu repito, bastante, trânsito de pesados. Em dias bons, ou seja, em que o vento está na direcção certa, faz-se bem, não é um passeio agradável mas faz-se. Mas quando o vento sopra no sentido errado, isso já é outro nível de ciclismo – o nível suicida!
Chegámos ao lago Tutira, o ponto de encontro marcado, ao fim da tarde um pouco tensos. Relaxámos quase de imediato com a tranquilidade do lugar e com a alegria de ver um amigo de pedaladas. Nessa noite o Álvaro partilhou uns bifes de veado que lhe tinham oferecido e nós, uma garrafa de vinho barata que tínhamos comprado para celebrar a ocasião. Seguimos juntos no dia seguinte em direcção a Wairoa, uma cidade meio desolada já com grande presença Maori. Acampámos num promontório com vistas privilegiadas sobre o Oceano Pacifico, mas o acampamento ficou conhecido como o acampamento das cucarachas porque havia baratas gigantescas por todo o lado e que se infiltraram nos nossos alforges.
O Álvaro queria fazer um desvio até ao Parque Natural do Lago Waikaremoana, eram 80 quilómetros que depois tínhamos que voltar a fazer pelo mesmo caminho. Evitávamos porém a N2 e por isso decidimos acompanhar o Álvaro – nós e a chuva.
Nessa noite acampámos sobre a relva verde e molhada da estação hidroeléctrica de Pipiraua e choveu dia e noite, praticamente sem parar.
No dia seguinte chegámos ao grande lago Waikaremoana. O sol regressou por um dia e, a preguiça, disfarçada de pretexto de secar o equipamento, atacou de tal forma que a única coisa que fizemos foi decidir não fazer muito (o equipamento secou). Depois de umas caminhadas á volta do lago, regressámos em direcção a Gisborne onde voltámos a acampar mais uma vez na estação hidroeléctrica.
A chuva regressou e, desta vez, para ficar durante quatro longos dias.
Os nossos caminhos separavam-se mais uma vez – o Álvaro seguia rumo a Gisborne pela N2 e nós optávamos por apanhar uma estrada rural, a SH36, bem menos movimentada, mas mais montanhosa e mais interessante.
Depois de dois dias de ciclismo miserável e molhado chegávamos a Gisborne onde iríamos parar e aguardar que a chuva abrandasse e para preparar as próximas pedaladas rumo ao Cabo Este.
O Cabo Este, o último reduto Maori
Seguir a estrada do Cabo Este, foi a rota recomendada por toda a gente, até por quem nunca lá tinha estado. Segundo os autores dos dois guias que tínhamos para a Nova Zelândia, o Peddaler’s Paradise -North Island e o Cycling New Zealand do Lonely Planet, a Pacific Coast Highway (SH35) de Gisborne a Opotiki oferecia um dos itinerários à beira mar mais espectaculares para ciclismo – não só da Nova Zelândia como do mundo. Fazer este percurso apresentava-se assim, não tanto como uma opção mas como, uma obrigação.
Saímos de Gisborne depois de quatro dias sob um sol auspicioso. A SH35 juntou-se ao mar depois de poucos quilómetros para revelar um azul-cobalto que se perdia até à linha do horizonte, recortado por baías pequeninas que pareciam pedaços de queijo mordiscado com os seus semicírculos de areia clara. Estas apareciam e desapareciam sobre o asfalto que serpenteava as colinas suaves que íamos subindo e descendo.
Nas aldeias isoladas pelas quais passávamos era bem evidente a presença Maori. Esta zona foi uma das primeiras a ser povoada pelos descendentes de guerreiros polinésios que há mais de 900 anos atrás atracaram nestas ilhas.
Já no século dezanove, Apiraua Ngata, um Maori ilustre, lutou para que houvesse uma renascença da cultura e da arte Maoris e, graças a ele, vê-se hoje em dia, um pouco por toda esta zona, maraes, as casas de reunião, e capelas ostensivamente decoradas com intricadas esculturas de madeira com padrões geométricos e figuras humanas, algumas, em poses e expressões guerreiras, outras, apenas com o ar sério e solene característico da arte Maori.
Nesta parte da ilha está ainda bem presente a ligação íntima entre as pessoas, a terra e o mar como a principal fonte de sustento e a vida ainda parece ser vivida a um ritmo tranquilo. Mas a realidade, no entanto, é muitas vezes diferente do que transparece àqueles que, como nós, estão só de passagem. As comunidades Maori, mesmo as mais isoladas são bastante afectadas com problemas de alcoolismo e do consumo de drogas. No fundo, não deve ser fácil fazer sentido de uma sociedade dividida entre a tradição e a modernidade e, sobretudo, viver e ser parte de um país onde se é alvo constante de descriminação.
Os cerca de 650 quilómetros de Gisborne a Opotiki foram duros mas recompensantes. Cada dia cansativo foi recompensado com acampamentos de postal, baías remotas perdidas no meio do nada onde vimos os nascer de sol mais bonitos da viagem – Anaura Bay, Waipiro Bay, Te Araroa, Te Ranghiaru Bay.
Depois de Opotiki, os últimos quilómetros em direcção a Waihi, onde terminámos as nossas pedaladas, foram feitos na segunda estrada principal do país a N2, também conhecida como a estrada suicida. Somando o todo e tendo em conta o contexto do que vimos na Ilha Norte, sem dúvida que o Cabo Oeste foi o ponto alto das nossas pedaladas nesta ilha, mas fosse porque acabámos com grandes espectativas, ou porque de facto a ilha Sul simplesmente ter mais para oferecer, o Cabo Este ficou um pouco aquém das nossas espectativas. É incorrecto comparar. O ideal seria viver sempre como se fosse a primeira vez, como se ainda fossemos crianças a descobrir as coisas e a ver magia em tudo o que nos rodeia.
Auckland. Adeus Nova Zelândia
Um dos sentimentos mais reconfortantes que se pode ter quando se anda longe de casa é precisamente sentirmo-nos em casa. A Liz e o Neville Mackenzie, os pais do Andy, um amigo Novo Zelandês casado com a Sónia, uma grande amiga nossa Portuguesa, fizeram-nos sentir precisamente isso – sentir em casa.
E é este sentimento, viagem após viagem, que nunca deixa de nos surpreender, o de sentir a bondade gratuita de estranhos. Numa cidade tão grande e dispersa como Auckland, teria sido um grande desafio logístico organizar uma série de coisas que necessitávamos organizar antes de partir, coisas como arranjar caixas para as bicicletas, comprar algum equipamento que nos faltava, transportar as bicicletas encaixotadas até ao aeroporto. Os Mackenzie abraçaram cada um dos nossos desafios como desafios próprios e foram incanssáveis na sua missão de se assegurarem que deixávamos Auckland com as nossas tarefas completas. Isso, e uns quilitos a mais porque havia sempre refeições deliciosas à nossa espera.
Partimos da Nova Zelândia num voo com direcção à Austrália passados exactamente três meses depois de lá termos chegado. Com 3295 kms nas nossas pernas, para trás ficavam recordações dos dias que pedalamos à chuva, das muitas subidas, do vento, das milhares de ovelhas a ruminar pelos campos mas, e sobretudo, das paisagens magnificas e dos estranhos que se tornaram amigos. Talvez voltemos um dia, ou talvez não…mas por agora estamos cheios de vontade de explorar um novo país – A grande Austrália!