As Pamir
Em Outubro de 2013 fizemos uma das etapas mais antecipadas da nossa viagem: as Pamir. Tudo ali prometia ser grande – o tempo, o silêncio, as montanhas, a altitude, o frio, o vento, a aventura…seguíamos nas passadas de Alexandre o Grande, Marco Polo, das caravanas da Rota da Seda, dos aventureiros soviéticos e britânicos quando ali travavam uma espécie de guerra fria delimitando fronteiras e poderes nas montanhas que definiam os seus territórios imperiais nos finais do século XIX.
“O tecto do mundo” – disseram os persas. “O tecto do mundo” – dizemos nós! Com um passe a 4665 metros, e com a denominação de segunda estrada internacional mais alta do mundo, mantendo-se por longos quilómetros acima dos quatro mil metros, pode dizer-se que a estrada que atravessa as Pamir não é uma estrada qualquer. As Pamir também não são umas montanhas quaisquer. São colossos que resultam da união das cordilheiras dos Himalaias, do Hindukush, de Tian Shan, Karakorum e Kunlun que se encontram por sua vez entre as cordilheiras mais altas do planeta. Os seus picos mais altos – Comunismo e o Lenine, tocam os céus aos 7,495 e 7,134 metros respectivamente e o glaciar Fedchenko, com 77 quilómetros de extensão é o mais longo fora da região polar. Sim , “ o tecto do mundo” não é difícil de contextualizar aqui.
Aqui ficam extractos do que apontámos em diário. O relato do que foram os nossos primeiros dias nas Pamir – de Sary Tash, ainda no Quirguistão, até Khorog, no Tajiquistão.
Sary Tash à terra de ninguém
Dia 693 – 3.10.2013
32.8 kms
Acampados a 3,606 msnm

Desperto com um friozinho na barriga, sentindo o peso reconfortante e seguro dos edredons artesanais da cama estreita da casa de hóspedes Eliza. Nos próximos dias pouco saberá tanto a conforto e segurança como esta casa simples por onde entram os raios do dia mas não o frio, ou o vento…
O friozinho da barriga é bom sinal. Afinal, depois de tanto tempo a viajar, os sentidos continuam alerta – desafios novos abraçam-se com entusiasmo infantil, ainda… A luz do dia brilha lá fora como um despertar, uma chamada para a vida. Dou um beijo de bons dias ao Nuno.
– Pronta para o desafio?
– Pronta!
Cargas feitas, pequeno almoço tomado, dois ou três dedos de conversa com o Steve e o Martin, dois ingleses ali alojados – um fotógrafo, o outro, antropólogo, de viagem pela região recolhendo imagens e informação para um livro sobre as fronteiras da antiga União Soviética.
As burras estão carregadas…demasiado carregadas. A frustração é visível nos olhos do Nuno – não importa quando, como, porquê, fazemos sempre o mesmo erro. Os supermercados de Osh estavam tão bem recheados…tão bem. Chocolate em pó, “nutella”, queijo, cereais, café, frutos secos, bolachas em pacote, afinal vão passar-se muitos dias antes de voltarmos a por os olhos e dentes nestes mimos, não é? E mais arroz, batatas, pão, vegetais, frutas , água – coisas essenciais. Estamos tão carregados e temos tanta subida pela frente…que estupidez, nunca mais aprendemos.
O Nuno sente-se recuperado depois da operação em Bisqueque. Eu sinto-me recuperada depois de um desarranjo intestinal –outro, em Osh. Pela frente: as Pamir. Montanhas brancas, uma estrada prateada e o espaço entre elas feito de pastagens vazias, vento suave, o silêncio que a minha cabeça interrompe com a música “Space Oddity” do David Bowie em repeat:
“ground control to Major Tom
take your protein pills and put your helmet on
(ten) ground control (nine) to major Tom (eight)
(seven, six) commencing countdown (five), engines on (four)
(tree, two) check ignition (one) and may gods love be with you (…)
Now it’s time to leave the capsule if you dare”
Sim saímos da cápsula e viajamos no espaço e no tempo em cima de duas bicicletas ultra carregadas…o meu “shuffle” cerebral anda bem sintonizado hoje.
Controle fronteiriço para saída do Quirguistão. Passaportes entregues que desaparecem com o oficial por um edifício dentro. Há um “cocker spaniel” simpático, mas totalmente fora de contexto, que em vez de nos cheirar as malas anda à cata de festas. Faço questão de lhe fazer o favor, não deve receber muitas por estes lados e parece feliz.O guarda regressa com os passaportes, temos que ir a outro edifício. Está bem –vamos. Sigo sozinha porque o Nuno recebe uma chamada da mãe natureza. No outro edifício há um oficial gordo e bonacheirão. Interrompo a sua sessão televisiva, mas não parece aborrecido. – E o marido onde está? Aponto para o canto onde o Nuno se foi aliviar, mas parece não perceber. – O marido onde está? Faço sinal de que foi fazer xixi (tchhhhh com as mãos a parecer que seguro uma pilinha imaginária). Ri-se o senhor oficial, acha piada e olha para mim com um sorriso maroto. O Nuno chega e as simpatias formalizam-se, ainda bem.
– “Ruski,ruski…ruski…” – seja lá o que nos diz, não entendemos “niet”..
– “Rachmat, spaciba, thank you”… e até à próxima – é o que respondemos quando nos devolve os passaportes com o carimbo de saída.
Seguimos estrada fora nos vinte e tal quilómetros em terra de ninguém até ao Tajiquistão.
…mas não chegamos. O sol já não aquecia e o vale e as sombras do final do dia ditaram o momento de assentar arraiais para a noite. Saímos da estrada e metemo-nos pelo nada adentro até nos parecer, para quem passasse na estrada, que nós e a nossa tenda não fossemos mais do que pontos abstractos.
Depois da fronteira tínhamos sido seguidos por dois cães (sim também distribui festas por aqui). Um parece não ter um olho – fica o “Pirata”…a sua companheira, mais arisca, fica a “Quirguiz”. A comida que cozinhamos essa noite sabe-nos mal – arroz com vegetais. Nem os cães lhe acham muita piada e desaparecem, provavelmente de regresso ao posto fronteiriço. Adormecemos embalados pelas estrelas, o frio, o silêncio e um par de barrigas pouco satisfeitas.
Do acampamento na terra de ninguém ao sinal do yak
Dia 694 – 4.10.2013
21.20 kms
Acampados a 4,077 msnm

O sono da noite passada foi leve e pouco regenerador. Acordei várias vezes com dores de cabeça. O Nuno queixou-se do mesmo. O ritmo lento de subida que planeámos para nos aclimatizar não parece estar a fazer grande efeito – é para que não nos esqueçamos que andamos afinal por alturas pouco humanas.
Percebemos também porque nos tinha sabido mal o jantar da noite anterior: a água com que cozinhámos, oriunda de um rio que atravessámos, era amarga . Só nos resta esperar que a água que vamos encontrar pelo resto das Pamir não seja da mesma nascente…
O sol reapareceu. Acampados no sopé de uma montanha a nossa tenda foi o último lugar do vale a receber a luz e o calor dos seus raios. Parecemos folhas de chá antes da água quente lhes libertar o sabor – encolhidos e mirrados. Adiamos até à última ter que por em que seja um centímetro de pele fora da tenda e dos sacos de cama, mas o sol estende finalmente os seus braços e o calor do seu abraço aquece-nos a tenda e os corpos. Saímos para o pequeno almoço e estamos prontos para enfrentar mais um dia.
Olhamos o relógio…11 horas?! O dia não vai render muito.
Hoje a música do shuffle mental é feita aos acordes do “Sobe, sobe, balão sobe” e subimos, mas não como balões. Estamos demasiado pesados e o Nuno, para evitar esforços traseiros, prefere empurrar a bike nas partes mais inclinadas…não são muitas – são as suficientes. A estrada alterna entre alcatrão carcomido e alcatrão inexistente.
Dois pontos na distância materializam-se em dois ciclistas: Emily e Max. Seguem rumo à China. Trocam-se dicas, mapas e desejos de muito vento pelas costas. E continuamos rumo à fronteira que não se avista e o pior (mal sabíamos nós) ainda estava para vir: subida da séria.
Dou comigo a amaldiçoar os russos e as sua maldita estrada e a minha maldita carga. Malditos, malditos, malditos. Um ziguezague tortuoso, entre calhaus escorregadios e uma inclinação que parece que a bike me vai cair em cima – viva a gravidade. O ar não chega, a cabeça dói, o pingo escorre pelo nariz que por sua vez arde cada vez que lhe entra ar o frio pelas narinas. Malditos russos que não sabem fazer estradas. Maldita carga que pesa como os diabos. Mas o carneiro Marco-Polo gigante em cimento que assinala o passe (e o fim da maldita) a 4280 metros avista-se e de repente já nada é maldito. Faz-se mais um esforço até ao topo e as borboletas, as endorfinas, o fogo de artifício e todas essas coisas estranhas e maravilhosas que acontecem no interior do nosso corpo quando alcançamos algo difícil, libertam-se e soltam-se e tudo são maravilhas – até a estrada feita pelos russos e a carga. Vivam as subidas!
Na descida, mais dois ciclistas: Raz e Julian, ela belga e ele francês. Conheceram-se na estrada. O Julian tinha feito o “upgrade” de “backpacker” para cicloturista e a sua escolha de equipamento era interessante (há que fazer juz ao rapaz – não foi uma questão de escolha, foi o que conseguiu arranjar onde quer que tenha decidido mudar de meio de transporte, algures na Ásia Central) : uma pele de ovelha a fazer de colchão, uma caixa de plástico a servir de mala da frente, a mochila atada ao suporte traseiro e um sorriso de orelha a orelha. A conversa foi curta porque tínhamos que atravessar a fronteira e já o dia se escapava pelas cortinas da noite.
Mais um posto fronteiriço. Este cheio de militares com simpatias demasiado familiares para conforto. Um toca-me na cabeça e quer mexer-me nas pulseiras. Chega pra lá. Depois uma confusão com um carimbo no meu visto que se resolve com uns ” please” e vários encolher de ombros e, cá está, mais um carimbo. Siga, que já se faz tarde, montanha abaixo na trepidação de uma estrada com textura de telhado, o vento corta-nos a respiração e as opções de campismo abrigado. Acampamos no lado protegido de um sinal de cimento, outro, este com um yak gigantesco – parece que a única bicharada que vamos ver por estas paragens é precisamente esta – estátuas que parecem retiradas de um parque de diversão. Acampamos perto da estrada, contra a minha vontade, mas sem grandes alternativas. Noite fria e ventosa. Agora com água decente, a comida sabe-nos infinitamente melhor.
Sinal do Yak ao Lago Karakul
Dia 695 – 5.10.2013
55.20 kms
Acampados a 3,925 msnm

O sol, o sol, o sol…mais um dia de sol glorioso. Hoje não há bandas sonoras. No seu lugar: “bandas” visuais – tudo o que vemos são rectas intermináveis a esquartejar a paisagem curvilínea. Com a ausência do som, vemos tudo em alta definição e em “technicolor”, como um super poder ( hoje, talvez por isso, não exista espaço no meu cérebro para cantigas). E o silêncio! Um silêncio redutor…avassalador que as palavras não descrevem (como é que se descreve o silêncio?). É como se tivéssemos a capacidade de carregar no botão do “pause” e andássemos nesta paisagem cinematográfica onde a única coisa que se move somos nós dois e as nossas bicicletas. Não há nada, nem movimento, só nós. Como saber que isto é real?
O alcatrão regressa e cobre a estrada que ondula como um mar de ondas mansas por onde deslizamos sem grande esforço. A paisagem muda – a neve dos cumes desaparece e na sua ausência surgem montanhas prateadas carregadas com pedras da mesma cor. Depois surge um lago – um espelho de céu e montanhas que voltam a estar cobertas de neve – o Karakul, o mais alto do país e o mais alto daquelas montanhas.
E surge também uma aldeia branca caiada, onde regressam os sons e o movimento. A realidade, mas não muita, que por aqueles lados nada parece muito real. Onde andam as gentes? Os cães saboreiam os últimos raios do dia deitados na poeira compacta que é o chão, uma criança aparece montada na sua bicicleta ferrugenta para voltar a desaparecer. Loja, tem que haver uma loja. Precisamos de pão. – Magazine? Magazine? (loja?loja?) os dedos pequeninos das crianças apontam para uma casa fechada. Voltamos a repetir a pergunta, desta vez a uns velhos, e os seus dedos enrugados apontam para o mesmo sítio. Vamos para a casa fechada e ali esperamos até que um senhor com chaves nos abrisse a porta do estabelecimento comercial. Uma prateleira longa, nela, os bens essenciais sem hierarquia funcional: biscoitos, velas, embalagens de detergente para lavar a louça, batatas, rolos de papel higiénico, rebuçados, arroz, pilhas, meias, shampoo…o pão que buscávamos vem de outro lado nas mãos de uma criança que desaparece a correr loja fora e reaparece uns minutos depois loja dentro. Está duro, mas não temos escolha. Levamos também dois rolos de papel higiénico – ou lixa número quatro, a denominação correcta. Esta malta deve ter o rabo mais esfolado da história da humanidade – que brutalidade!
E regressamos à paisagem “tecnicolor em modo pause” para buscar acampamento nas margens do lago Karakul.
Armo-me naquilo que não sou: aventureira de águas frias. Um banho ao cair do dia num lago azul turquesa, sem nada à minha volta. Que ideia tão romântica e… asseada.
– Vai tu – diz o Nuno. Eu fico a montar a tenda.
Chinelos de enfiar no dedo, toalha no ombro e “necessaire”, sigo cheia de confiança e certezas que duram uns meros metros até chegar a uma parte enlameada que me separa do lago e que não tinha percebido estar ali. Enterro os pés na lama (que se afundam bem para lá da linha de conforto, mas ainda assim sigo, quanto mais não seja porque agora tenho que ir lavar os pés). No lago finalmente. A água é fria (parece que tenho navalhas a cortarem-me as pernas) e só consigo avançar até ter água pouco mais do que acima dos joelhos. O sonho do mergulho dissolve-se. Contento-me com uma lavagem à gato. O que não parece dissolver é o sabonete, esfrego, esfrego e nada, a espuma não aparece. Depois de me secar sinto a pele seca – está cheia de salitre. Desgraça. Regresso à tenda com os pés cheios de lama, e o corpo cheio de sal. Mergulhos em lagos pristinos onde se sai de corpo e alma refrescados…é coisa de filmes de sobrevivência e livros de cowboys.
-Então esse banho?
-Uma experiência maravilhosa, nem sabes o que perdeste. O que vai ser o jantar hoje?
Mais fácil comer e dormir e deixar o lago em paz na paisagem. As dores de cabeça desapareceram (coincidência, ou não, ao menos isso).
Do Lago Karakul ao início do passe de Akbaital
Dia 696 – 6.10.2013
49.20 kms
Acampados a 4,238 msnm

Podia ficar viciada nestes despertares: sol, silêncio, acordar ao lado do homem que amo, abrir a tenda e ter lá fora o mundo a espreitar para dentro das nossas vidas a chamar-nos para o calcorrear.
Depois de três dias, parece que temos o ritmo marcado: despertar com os primeiros raios do sol. O Nuno – o corajoso das manhãs frias, é o primeiro a sair da tenda e a por a água a aquecer para o café do pequeno almoço (nesta manhã sentiu-se particularmente predisposto a fazer panquecas, que depois barrámos com “nutella” e bananas – tão bom ter o céu à volta e ter o céu na boca – estar rodeados de céu por todos os lados. Eu, no calor da tenda, arrumo os sacos de cama e os colchões. Depois da barriga cheia, arruma-se a tenda num esforço de equipa. Fazemo-nos à estrada lá por volta das nove da manhã (já conseguimos melhorar as médias de partida consideravelmente e perceber onde montar a tenda para que o sol a aqueça assim que a sua cabeça começa a espreitar deste lado do planeta).
A paisagem repete-se sem nunca ser igual. As estradas feitas linhas seguem rumo ao infinito. Na sua continuidade e nas possibilidades da sua simbologia brincamos aos fotógrafos, pouco mais precisamos de fazer que apertar o botão e a magia captada é quase imediata. Nada como uma estrada que se esvai na linha do horizonte para que as metáforas da estrada da vida e as suas possibilidades nos venham ao pensamento. Metáforas à parte a estrada segue e nós seguimos nela, no nosso lento pedalar…o nosso lento regresso a casa.
Mais um rio de águas cristalinas onde enchemos as garrafas e aproveitamos para lavar a roupa interior…as mãos querem sair-nos dos braços de tão fria que a água está.
Os almoços são sempre um momento aguardado nos nossos dias: o momento em que abrimos os alforges e pomos diante de nós as “deliciarias” que tanto nos amargam as pernas nas subidas, e claro, como quem não quer a coisa, o peso é sempre menos depois de mais uma refeição.
Começamos a parte suave da subida até ao passe de Akbaital o mais alto das Pamir a 4665 metros. Nesta parte da estrada vão-se vendo ruínas que relembram a efemeridade do esforço humano numa paisagem onde os elementos a tornam hostil à vida.
O dilema dos acampamentos instala-se também na nossa rotina. O Nuno, que por ele acampava o mais perto da estrada possível, e eu, o mais escondida, mesmo que para isso tenha que andar a puxar a bike montanha acima. Na ausência de montanha que nos esconda, e mesmo na escassez de viaturas e de gente, estou determinada a manter a distância possível e empurro a bike até chegar ao sopé da montanha, sob os resmungos do Nuno que quer recusar acampar tão longe. Mas já se faz noite e eu já escolhi o sitio de pernoita, não há tempo para mais resmunguices.
Os ânimos da noite acalmaram com um arroz delicioso de lulas enlatadas que o Nuno preparou e o manto de noite escura, esburacado pelas estrelas, espalha o seu frio pelas montanhas – a deixa de que é tempo de ir para o saco de cama.
Do início do passe de Akbaital ao planalto de Murgabe
Dia 697 – 7.10.2013
43.60 kms
Acampados a 3,968 msnm

Isto das bandas sonoras tem que se lhe diga. A do dia de hoje começou nem bem tinha acordado. E nesta ocasião confesso que não consigo discernir nenhuma razão aparente – “Pó de arroz” do Carlos Paião?…no meio de uma montanha no Tajiquistão, ao amanhecer? Podia-me dar para pior, muito pior (mas o Nuno acha que estou a ficar doidinha).
Preparo o pequeno almoço – é a minha vez. Decidimos alternar: um dia cozinho eu, outro dia cozinha o Nuno. Mas os pequenos almoços confesso que me são particularmente dolorosos.
Mais um dia de sol. Parece que por aqui não existe outra coisa que não sol pelas manhãs – que assim continue.
Outra maldita! …mas o que é isto? 15%, 20%…o meu conta quilómetros vai doido, mas não tão doido quanto eu que bufo por tudo quanto é poro e já amaldiçoei não sei quantas gerações de engenheiros russos e as suas santas mães – isto não são estradas, são escadarias! E mais a carga maldita que carrego nos alforges – está cada vez mais pesada. Mas quem é o doido que se mete nesta vida? São 3 da tarde e ainda só avançámos 9 quilómetros. Valha-nos o almoço e mais o sol e menos umas gramas.
No passe, mais um bicho de parque de diversão (não tomei nota qual era e agora também não me lembro). E na descida, no glorioso “downhill” uma paisagem lunar – ou será o planeta Marte? O céu de um azul tão intenso que doía só de o olhar. As montanhas com rasgos de ocre e amarelo seco. Vida aqui não existe, só aquela que como nós, está de passagem. Nos primeiros quilómetros neste novo vale começamos a ficar preocupados porque tudo quanto é rio, jaz seco sem ponta de água. Como que por milagre, uns quilómetros depois, brota do leito de um rio, uma nascente de água, que nos acompanha em forma de ribeiro e no qual enchemos as nossas garrafas. Mais pura do que esta será difícil de encontrar.
O drama do acampamento volta a repetir-se, espaço não falta, mas canto que nos esconda sim. Estamos cansados e com pouco oxigénio na cabeça…é hora de mudar o disco, montar a tenda e preparar o jantar!
E depois, para ajudar aos ânimos é a vez dos fogões fazerem birra: o “Primus” dá o berro e o “MSR” decide entupir. Um pouco de carinho e pelo menos o “MSR” regressa, ainda que muito lentamente, às suas funções – temos jantar (hoje, pelo menos)! Batatas, lentilhas, cenouras tudo cozido e depois misturado com tomate, pimento e cebola salteados. De barriga cheia, escondidos pelo escuro da noite as nossas preocupações sobre o acampamento perdem a razão de ser…prontos para mais uma noite debaixo das estrelas.
Do altiplano de Murgabe a Murgabe
Dia 698 – 8.10.2013
49.20 kms
Alojados a 3,891 msnm

Montanhas lunares, que o Nuno compara ao deserto de Wadi Rum na Jordânia. A estrada é plana e o vento empurra – dia de ciclismo perfeito. Mais três ciclistas que passam por nós no sentido contrário – Nicolas, James e Alex que nos recomendam a casa de hóspedes de Mansur Tulfabek, com garantias de que tem chuveiro de água quente (palavras mágicas). A estrada desce suavemente até Murgabe.
Chegamos.
A primeira povoação com mais do que meia dúzia de casas surge por entre as montanhas suaves. A luz da tarde no branco das casas quadradas, algumas com barras de azul pintadas nos rodapés. Das chaminés liberta-se uma linha de fumo e os postes eléctricos, mais altos do que as casas, parecem pilares que seguram o céu caso ele decida desabar… Há um ar de fim de mundo por aqui, mas é o estoicismo destas gentes que ainda vai levando a melhor.
Encontramos a casa de hóspedes recomendada mas ninguém para nos receber. Abrimos o portão azul, deixamos as bicicletas dentro do pátio e vamos a pé até à vila em busca de mantimentos porque planeamos partir na manhã seguinte.
O bazar são contentores, pó e fumo embrenhados na luz do final do dia. Entramos e saímos. Cada contentor parece ter as mesmas coisas, mas com um olhar atento, outras coisas que o anterior não tinha. A nossa lista de compras vai-se riscando…crianças em triciclos, cães a sacudir as pulgas, gente com sacos de compras, cheiro a pão acabado de sair do forno – a beleza nem sempre se encontra nos sítios mais óbvios, sobretudo não num sítio saído de um cenário pós-apocalíptico, mas ela está lá, para quem a quiser ver.
Quando regressamos o senhor Tulfabek, assim como a família, estão de regresso. Recebem-nos com um aperto de mão e simpatia genuínos. A comida que nos preparam é simples mas deliciosa e o chuveiro, aquecido de forma manual, com o Sr Tulfabek a carregar baldes de água quente para uma cisterna no telhado, sabe-nos ainda melhor.
Dormimos finalmente um sono tranquilo e merecido.
Murgabe
Dia 698 – 8.10.2013
Dia de folga

Ficar ou não ficar? Gostamos de Murgabe e gostamos da pensão do Sr Tulfabek. O Nuno faz contas à vida e contas ao tempo. Podemos ficar mais um dia, mas teremos de abdicar ir pelo o vale de Wakham – levar-nos- ia mais tempo porque a estrada está em mau estado e menos um dia pode fazer toda a diferença entre dias de ciclismo relaxados até Dushanbe, ou não. E há roupa para lavar, diário para por em dia, duas ou três coisas para arranjar, pernas a pedir descanso…ficamos.
À tarde o Nuno vai de novo até ao bazar trocar dólares por dinheiro local – soms. Quando regressa, regressa feito milionário: tinham-lhe trocado os 200 dolares em notas de 5 mil soms e o molho que trazia nas mãos era tão volumoso que nos auto-intitulamos vencedores do ” jack-pot”… já sabemos como é boa a sensação de ter uma “pipa de massa” nas mãos, mesmo que ilusória.
O Sr Tulfabek juntou-se a nós depois jantar. É um homem interessante com olhar de mel. Parece gostar tanto da nossa companhia como nós da sua. Conseguimos comunicar, ele no seu inglês quebrado e nós no nosso russo inexistente, da vida no Tajiquistão, da guerra recente, quando não chegava comida até às Pamir e se passava fome e frio…falou-se também da esperança, dos projectos de vida, da beleza da região. Depois, quando as nossas caras pouco mais eram do que contornos nas sombras fomos dormir de alma cheia e com a sensação que viajar, muito mais do que ir, muitas vezes, também é ficar.