O Irão que não estava preparada para encontrar
Estávamos ainda em Duchambe na capital do Tajiquistão, quando a Lisa com os seus olhos azuis cristalinos de rio glaciar suíço, parodiou à mesa do bar irlandês onde fomos beber umas cervejas e ouvir uma banda de “expats”, a forma como as mulheres iranianas usam o lenço que trazem à cabeça – para cumprir a “hijab”- o código islâmico imposto no país, que dita, entre outras coisas, modéstia no vestir. Pôs o cachecol, acessório da noite que já se fazia fria, na parte mais alta da nuca de forma a que o tecido ficasse preso apenas por uma tira e deixando que a melena amarelo seara ficasse a descoberto. “Assim. É assim que as mulheres usam o lenço no Irão”. Rimo-nos. Entre mais um gole na “pint” e uns “blues”, fomos trocando ideias sobre o país onde chegaríamos dentro de alguns meses e outros que a Lisa e o namorado – o Darragh, nossos anfitriões, tinham amealhado nas suas consideráveis deambulações no planisfério.
Deixei a imagem da indumentária feminina relaxada , mesmo que sujeita aos rigores da fé islâmica, assentar na chávena que é a minha mente, tal borras de um chá com sabor a Irão, feito das ideias e as imagens soltas que fui coleccionando do país que ainda não conhecia e, sobretudo, de outros países regidos pela mesma fé, pelos quais já havia andado, onde o lenço e onde os trajes mais modestos adornavam o corpo das mulheres.
Nada me preparou para o que encontrei. Se tivesse lido mais sobre a história e os costumes do país talvez o choque tivesse sido menor, mas não tinha tido tempo nos últimos dias e, por vezes, até me sabe bem chegar na obscuridade do que não sei e deixar-me surpreender -faço isso algumas vezes. Gosto da bofetada que levo quando cai por terra a ideia que trago dos lugares antes de os conhecer – aquela amalgama confusa de coisas vistas na televisão, lidas em relatos, imagens recordadas de alguma revista ou jornal, fábulas em primeira mão de alguém que já lá esteve. No entanto, a bofetada que levei com a minha chegada ao Irão, foi grande! Ter entrado no país por uma das zonas mais conservadoras e próximas do grande centro religioso que é Mashad, tão pouco ajudou.
Onde estavam os lenços coloridos revelando madeixas fartas de cabelo? As mulheres desafiantes do sistema? O que via à minha volta era só preto. Preto cerrado, protestando ao amarelo ocre e seco das casas feitas em adobe, do azul dos azulejos das mesquitas e do deserto à sua volta. Da cabeça das mulheres iranianas, como se fossem cabides, mantos negros descaídos, revelando apenas os seus rostos amendoados e tornando evidente que aquela peça de vestuário, ao atender aos preceitos da modéstia , tinha obliterado a função prática – quando uma das mãos não podia segurar o tecido que seguia o intuito das leis da gravidade, os dentes faziam o serviço e, por vezes, parecia haver uma luta entre o pano escorregadio e os braços das mulheres para o manterem no corpo. Como que por contágio senti que também eu vestia um – na alma.
“Chador” significa tenda em persa. Tenda, porque vestido é precisamente o que parece, escondendo as formas do corpo da mulher. O seu uso não é obrigatório, mas atende aos requisitos do código da indumentária feminina islâmica, usado por um grande número de mulheres – quer por livre arbítrio, ou não. Eu só conseguia ver fantasmas. Fantasmas negros. O material leve com que são feitos atribuem uma qualidade quase etérea ao andar de quem o usa. Como se flutuassem sobre o próprio ser. Como se fossem evaporar e desaparecer no ar fino. Viúvas das liberdades que já tiveram e perderam, presas num pedaço de pano que escondem as partes do corpo que se fizeram para que pudessem ser o que são – seres geradores de vida, seres geradores de mulheres e homens – homens que ditam, para bem da moral, da decência, que os corpos de onde saíram, devam andar tapados.
Viaja-se para compreender. Viaja-se para reflectir. Viaja-se para confortar os nossos dogmas e as nossas certezas…
Acima de tudo, a liberdade
Vieram-me à memória, de forma contrastante e constrangedora, as imagens dos “clips” que vi no bar de uma cidade qualquer, já nesta viagem, onde fomos aproveitar o “wi-fi” gratuito para actualizar o site e dar sinais de vida à família e amigos. Dos écrans do tal bar, a Britney Spears, que a última vez que soube alguma coisa dela andava com uma mini-saia e umas meias brancas à pipi das meias altas a pedir que o seu “baby” lhe batesse mais uma vez, na sua canção “Hit me baby one more time”, agora metamorfoseada em mulher adulta e da vida (ela, e mais umas companheiras), encenando a sua persona “S&M”, vestida, ou despida – dependendo do ponto de vista e da ordem das coisas-, com um soutien, umas cuecas e mais uns quantos acessórios necessários às práticas da sua personagem. Pus-me a pensar: será normal que uma cantora cujo público deva contar com, entre outros menos susceptíveis, milhares de “teenagers”, ande a cantar – “trabalha cabra”! “Work bitch!”, o nome da sua nova canção? – o Quim Barreiros seria mais subtil, creio eu.
No videoclip seguinte estava outra rapariga que nunca tinha visto mais gorda (provavelmente porque nunca o foi) sentada nua em cima de uma bola demolidora balançando no cenário e a lamber a cabeça de um martelo de forma sugestiva. Um martelo – pasme-se! Não prestei atenção ao teor do que cantava, talvez porque a melodia fosse deslavada e porque me distraí de novo, agora a ver se encontrava o símbolo do canal da “Playboy”, ou coisa semelhante, em algum canto da televisão. Mas não – tratava-se apenas e somente de um canal de vídeos de música. Ao ver estas manifestações visuais da música “pop” actual, concluo que não haverá prova mais contundente de que o aquecimento global é uma realidade inquestionável. Haja calor, porque justificar este exibicionismo pseudo-erótico gratuito todo – dá trabalho.
Onde quero chegar é ao ponto de equilíbrio. Não sei muito bem onde encontrá-lo no exemplo destes extremos. Por um lado uma gaiola que nos esconde o corpo, por outro, uma gaiola que nos expõem como se fossemos carne crua no escaparate de um talho. Nós mulheres, sobretudo nós, andamos de um extremo ao outro sem parecer conseguir encontrar o dito ponto, mesmo com o que já lutámos pelos nossos direitos e liberdades. Era bom acreditar que uma mulher informada e com a liberdade para escolher não queira andar vestida nem com chadores e burcas ou apenas com duas tiras de tecido a tapar falsos pudores. Mas não tenho tantas certezas – as coisas nunca são tão simples ou tão lineares. O zelo religioso e chauvinista asfixiante veio para ficar, a nudez gratuita de fortes conotações sexuais (e proxenetas) da cultura “mainstream”, também. O que vejo em comum na dimensão destes valores antagónicos deixa-me triste: a falta de algo essencial chamado liberdade. A liberdade de escolher o que vestir (ou despir) sem ter que fazê-lo por pressões sociais, religiosas, políticas ou económicas.
Irão – finalmente a recompensa
Atravessar a fronteira não mudou nada nos céus. O cinzento tinha vindo para ficar.
Chamaram-nos ao gabinete médico fronteiriço onde me dirigi com o Nuno, a coxear. Queriam saber se tínhamos doenças, de uma longa lista que nos foi enumerada e das quais não padecíamos. Seguiu-se depois outro interrogatório sobre as nossas intenções no país como alojamento, rotas e outros propósitos, sem ter ficado muito claro se nos interrogavam por mera curiosidade ou porque estavam a cumprir deveres. Levámos mais de uma hora entre as perguntas e a espera silenciosa que antecipou a reentrega dos nossos passaportes carimbados, num terminal fronteiriço vazio. Era uma vitória com trago semi-amargo esta: ter cumprido a missão quase impossível de atravessar o Turquemenistão em bicicleta em cinco dias, mesmo contra todas as probabilidades e, agora, esta espera frívola, quando o único que queríamos para celebrar a nossa vitória pessoal era um duche quente, jantar e cama.
À cabeça de uma rotunda já nas várzeas das cidade de Sarraks, contígua à vizinha Saraghs no outro lado da linha, no Turquemenistão, ficava o hotel Doosty, poiso passageiro, a contar pelos registos do livro de visitas, dos que atravessam a Eurásia nas mais diversas formas de transporte, mas sobretudo em bicicleta. Assinámos uma página, acrescentando à lista de outros portugueses que já por ali tinham passado como o Tiago e o Alexandre dos Oemissões, a Tanya e o Rafael dos 2numundo e o João Leitão, do João Leitão Viagens – foi bom de ver o nosso cantinho de mundo tão bem representado, sobretudo pelos que se fazem à estrada sob duas rodas.
O banho quente lá se materializou, assim como o jantar de frango no churrasco com sopa de vegetais e cevada com um travo ácido, que os iranianos, como viemos a descobrir, não prescindem na sua comida. Os hotéis iranianos no inverno são provavelmente os mais quentes do mundo. Quem alguma vez por lá passou nesta altura, sabe do que estou a falar – calor bom, quase sufocante – que o gás nestas partes é barato. Adormecemos sem preocupações de frio, cães territoriais e retro- escavadoras. Deixá-mo-nos ficar mais três noites a dar descanso ao meu joelho.
Partimos na manhã do quarto dia, debaixo de um céu lusco-fusco, por uma estrada de rectas no sopé de colinas rastreadas por densos rebanhos de ovelhas. Era apenas uma pequena cordilheira que tínhamos de atravessar nos 200 quilómetros entre Sarraks e Mashad, mas ao primeiro esforço ficou claro que o meu joelho não estava bem – nas partes com maior inclinação, que não eram muitas, não tive outro remédio se não seguir a empurrar.
A criatividade dos condutores iranianos
Chegámos a Mashad na apreensão que é chegar de bicicleta a uma cidade com quase 3 milhões de habitantes (a segunda mais populosa do país) numa nação que guarda em beneficio das suas façanhas o invejável rótulo de ter dos condutores mais perigosos do mundo.
Mas há que dar valor ao seu engenho, os Iranianos dominam uma série de manobras criativas, às quais tomei a liberdade de atribuir nomes técnicos. Temos por exemplo a “marcha atrás power”, manobra efectuada sobretudo, mas não exclusivamente, em rotundas, intersecções, avenidas e auto estradas; “galgó-passeio”, aperfeiçoado pelas motas que fazem do espaço reservado a pedestres a suas vias de eleição, nomeadamente na hora de ponta; o “télélé-driving” – gostaria de perguntar a um iraniano se sabe que o carro também anda sem ser preciso falar ao telemóvel?; a “ultrapassagem tripla, ou quadrupla”; o “abalroa peões e o que venha à frente”; “pé no aceleras e deixa ficar”; e, a mais surpreendente de todas, “volante –mesa”, que tive o (des)prazer de assistir com os próprios olhos dentro do veículo – um condutor de autocarro a usar o volante como mesa, onde no centro assentava o ”tupperware” fumegante do repasto que continha, o poiso do chá no lado esquerdo, um pequeno ecran a dar a novela, à sua direita, uma mão com a colher a fazer a viagem entre o recipiente e a boca e, entre o ombro e a cabeça, claro está – o telemóvel ! Ai se o gerente artístico do Grande Circo Cardinali visse este homem em acção… e poderia enumerar mais umas quantas manobras, mas a lista vai longa e não é necessário aborrecer ninguém. Já se fica com a ideia geral. Em tom de remate digo apenas que grande número, se não a esmagadora maioria dos carros, apresentam mossas de diferentes graus, o que em si, atesta a eficácia das manobras acima mencionadas.
Mashad – teologias à parte
O Iman Reza, o oitavo dos doze Imans da fé Xiita, não teve muita sorte em Mashad – foi lá que o assassinaram. Como recompensa, à sua alma santa, foi lá também que o fizeram mártir – decorria o ano de 818 – erguendo um mausoléu contendo os seus restos mortais, que é hoje o local mais sagrado do Irão. Neste complexo religioso existe uma mesquita de cúpula e minaretes dourados, como se o ouro reafirmasse o poder da fé, o mausoléu do Iman (interdito a não crentes), uma biblioteca e quatro seminários, num espaço em visível expansão, rodeado à boa moda dos lugares da fé, por lojas de parafernália temática religiosa.
A forma como lá entrei foi curiosa. O Nuno tinha entrado sozinho e eu como não tinha um chador à mão (nem planeava ter) fiquei à espera na entrada do grande complexo. Não demorou muito que o meu casaco azul turquesa denunciasse a minha presença por entre o mar de fantasmas flutuantes e, antes de me poder afastar algures onde me tornasse mais invisível – o que em Mashad era praticamente impossível, tinha um estranho, na forma de um guarda, a questionar a minha fé e as minhas intenções.
O que estava ali a fazer? – À espera do “marido” que tinha ido ver o templo.
Porque é que eu não entrava também?- Porque não tinha chador.
Não havia problema, o chador podia ser emprestado. Acreditava no profeta? – Encolhi os ombros.
E qual é o teu profeta? – Jesus, suponho.
E quem é Jesus? – Um profeta .
E gostas do nosso profeta?- Não sei, não o conheço.
O guarda olhou-me de alto a baixo e levou-me à bancada dos chadores. Foi com alívio que me vi dispensada de um diálogo teológico descabido que não queria ter. Pus a manta negra de forma desajeitada e segui complexo dentro tropeçando no pano que me chegava até aos pés. Não andei por ali muito tempo – não me senti à vontade.
Não tenho grande fascínio por sítios religiosos. O que me move até ao seu interior é sobretudo a curiosidade e a busca, entre as paredes silenciosas, do vergar da pedra dura ao cinzel humano, o seu rendilhado. Um raio de sol a insinuar-se pela janela iluminando algum detalhe. Uma feição absorta nos apegos da fé. O silêncio e as palavras ditas respeitosamente entre sussuros…
Por muito cliché e lugar comum que possa soar, nada me parece mais sagrado ou talhado à meditação do que a natureza no seu estado puro e impoluto onde o silêncio, o vazio e a dimensão sobejam e nos vemos na nossa verdadeira pequenez. Nunca me senti tão estrangeira e tão fora de sítio como no templo do Iman Reza, sobretudo na abstracção de todas aquelas regras, limitações e proibições… dos grupos de homens que cantavam em uníssono enquanto percorriam o recinto e se auto-flagelavam com chicotes, das mulheres de olhos postos no chão.
Natal recluso em Yazd – melhores dias virão
Precisava não de dias, mas de pelo menos uma a duas semanas sem grandes esforços ou actividade física, o diagnóstico do meu joelho apontava para uma tendinite muscular e, segundo recomendações de uma amiga fisioterapeuta, alongamentos e descanso seriam necessários à recuperação. Era injusto forçar o Nuno a enfiar-se em transportes com a bicicleta e num quarto de hotel , quando podia seguir de bicicleta e pedalar o país, de acordo com os nossos planos iniciais…o mais lógico era que eu fosse adiantando caminho de comboio, rumo ao sul e lá esperasse pela sua chegada enquanto recuperava.
Olhámos ao mapa e ao guia – Yazd, cidade património da UNESCO, com centro histórico de adobe e hotéis tradicionais – parecia ser o poiso ideal para a minha pausa forçada. Depois da tentativa abortada em enfiar a bicicleta num armário do comboio, claramente diminuto para o meu veículo e, de andarem às voltas com ela pela carruagem fora a ver onde é que a podiam levar, o chefe da carruagem decidiu inutilizar uma casa de banho e encavalitar, entre a sanita e o lavatório, a pobre bicha. Pelos menos seguia devolvida à sua graça com aro novo, depois dos cuidados meticulosos de um mecânico que encontrámos em Mashad. Despedi-me do Nuno com um abraço módico, que outras manifestações afectivas mais expansivas, não seriam vistas com bom olhos e, na manhã seguinte despertava na cidade oásis, moldada do barro do deserto e dos céus azuis de sol radiante, dando ânimo aos dias que se avizinhavam.
Há alturas na vida em que por muito que o nosso lado lamecha e de auto-comiseração queira levar a melhor, somos obrigados a estimulá-lo com sentido prático e lógico. Numa viagem tão longa é normal que em alguma altura nos deparemos com um momento mais difícil onde questionemos o propósito do projecto, onde espreitemos a porta aberta para a paisagem de dúvidas. O meu surgiu no Irão, de joelho afanado, com o nascimento do meu primeiro sobrinho – o Pedro, filhote do meu irmão Zé Miguel, sem que pudesse fazer parte física de um momento tão importante da família, o Natal solitário, longe do Nuno, num país onde me estava a custar adaptar e fazer sentido do que me rodeava.
O Natal passou quase sem dar por ele. Passei-o em família, na distância de uma ligação “skype” recortada e recortando a minha paciência. A voz dos familiares, dos amigos, o seu apoio e a sua força enviados à distância, foi tudo o que precisei para saber, mesmo estando a passar por uma fase menos prolifera da viagem, que prosseguir era o caminho certo. O tempo passou ágil – como sempre passa, entre alongamentos, descanso, deambulações generosas na cidade ocre, na escrita e na espera. O Nuno chegou a tempo de celebrarmos o ano novo juntos e a sua irmã, Nela, juntar-se-ia a nós uns dias mais tarde. Na sua companhia deixaríamos as “burricas” em modo pausa e percorreríamos o país de mochila às costas, deixando passar o inverno e em busca do Irão afável, generoso e hospitaleiro dos outros viajantes. Será que o encontraríamos? Mais na próxima história da estrada.