Nem todos os mercados são o que parecem
Nem todos os mercados são o que parecem
Estávamos com fome e tínhamos dado como concluído mais um dia de ciclismo. Deixámos as coisas num hotel com cheiro a mofo e com a mobília a cair aos bocados, os seus dias de glória já idos há umas boas dezenas de anos, e fizemo-nos às ruas da cidade de Samut Sonkhram. Uma cidade satélite que marcava a o inicío da nossa travessia de Bangkok no dia seguinte.
Entrámos pelo mercado dentro em busca de algo para comer. À parte de umas bancas um pouco claustrofóbicas, sobre o que parecia uma linha de ferro em desuso e uns toldos para proteger da luz forte do sol, era idêntico a qualquer outro mercado. Como não encontrávamos nada cozinhado – o que se via eram sobretudo os ingredientes por cozinhar – acabámos por ir aliviar a fome a um tasco de rua que servia carne de pato caramelizado com arroz branco e sopa de noodles.
Quando saímos, já saciados, começámos a ouvir apitos e uma grande comoção de gente perto da zona do mercado. Aproximámo-nos para ver o que se passava e nem queríamos acreditar. Onde havia mercado, toldos, frutas, vegetais, era agora um espaço aberto por onde ia passar…um comboio! Depois de muitos apitos, muitos gritos das senhoras do mercado que barafustavam aos muitos turistas para saírem do caminho, o grande veículo passou. E não sei o que é que nos surpreendeu mais, se ver um comboio a passar pelo meio das bancadas de um mercado em plena actividade, se foi ver esse mesmo mercado a voltar a ser o que era numa questão de segundos. Os toldos voltaram à sua função, os vegetais regressaram ao chão, quer por meio de uns gavetões engenhosos que os feirantes tinham improvisado, quer por processo manual. E tudo voltou a ser como era. Teríamos sonhado? Teríamos apanhado muito sol na cabeça?-Não. Passados 30 minutos voltou a passar outro comboio!
Ficámos a saber que as actividades mercantis desta cidade eram interrompidas pelo menos 8 vezes ao dia. E a questão que logicamente colocámos foi se não seria mais fácil mudar o mercado de sítio? – Não temos resposta para esta pergunta mas o que parece ser óbvio é que parte do encanto dos países como a Tailândia, mesmo com todo o desenvolvimento e modernidade, são as coisa fascinantes e inesperadas que aqui acontecem e o mercado de Samut Sonkhram é bom um exemplo disso.
O país vive em paz com o seu passado e parece não haver muita pressa em mudar certas coisas, a tradição ainda importa. Por aqui felizmente também não chegou a ASAE, ou outros mecanismos de regulamentação e inspecção, que a única utilidade que servem é a de retirar o lado único e divertido das coisas e tratar as pessoas como criancinhas idiotas incapazes de pensar por si próprias.
Ano novo desafio novo!
Nos últimos meses da nossa viagem com tanta mudança de meio de transporte, que se deveu sobretudo ao facto de geograficamente andarmos a viajar em zonas onde nos era impossível fazê-lo de bicicleta, como quando nos deparamos com o mar, ou por limitações do vistos, estávamos saudosos por voltar a viajar a tempo inteiro nas nossas amigas fieis – leia-se bikes.
Regressámos a Koh Tarutao – o parque nacional ilha, na ponta sul da Tailândia, perto da fronteira com a Malásia – onde tínhamos deixado as bicicletas para um interregno de três semanas a viajar com a mochila às costas na companhia da minha mãe, determinados a pedalar a Tailândia até à fronteira com o Camboja nos cerca de 1700 quilómetros que nos separavam desse país. Tínhamos menos de um mês para fazê-lo e uma cidade com mais de 8 milhões de habitantes para atravessar. Será que estaríamos à altura do desafio?
Vida boa esta a de cicloturista!
A costa do mar de Andaman, no Sudoeste do país, é tudo aquilo que os postais das praias de sonho ilustram – mar azul ora meio turquesa, ora meio verde-esmeralda, e invariavelmente calmo. Areias finas e brancas. Formações rochosas calcárias tais esculturas abstractas abismais no meio do oceano, perfeitas para o enquadramento fotográfico. E, apesar de ser uma costa turística, a recompensa de poder “depenicar” cada praia ao sabor das nossas pedaladas ofereceu-nos muitos recantos praticamente a título exclusivo.
Quando não havia praias quase desertas onde esticávamos as nossas redes e dormíamos a sesta, chegávamos a praias visitadas por turistas locais, cheias de vida e azáfama, tal Nazaré em pleno agosto, como a praia de Pak Meng . Aqui a ordem do final do dia era sentarmo-nos à beira mar a beber umas Leos fresquinhas, saboreando as especialidades culinárias de marisco que os diferentes vendedores ambulantes apregoavam praia fora.
Observar as crianças a brincar felizes e as suas famílias numerosas sentadas debaixo das sombras das casuarinas. As motoretas carregadas com bóias, praia acima, praia abaixo, na esperança de atrair um ou outro comprador. Os barcos a chegar da faina ao final do dia. A vida em ecrã panorâmico de três dimensões e cinco sentidos.
De Pak Bara a Ranong os quilómetros fizeram-se a bom ritmo. A meio caminho, quando chegámos a Krabi, decidimos tirar dois dias de folga para visitar a península de Railay, só acessível de barco. Nesta baía, uma Meca para o pessoal da escalada, fizemos a nossa escalada gratuita que consistiu em subir ao penhasco central da península por umas cordas meio precárias e apreciar as vistas privilegiadas sobre a baía tropical e verdejante. Depois decidimos continuar e descer com o auxílio de mais cordas até ao pequeno lago interior que existia dentro do penhasco.
Antes de apanhar um barco de regresso a Krabi, fomos averiguar a praia que o Lonely Planet considera uma das mais bonitas do planeta – Hat Pra Nang. Gostos não se discutem é certo, mas quando uma praia parece ter mais gente do que grãos de areia a beleza física por si só, acaba por ficar um pouco aquém das expectativas.
Seguimos rumo a norte, afastando-nos da costa e do mega centro turístico que é Phuket. Este desvio proporcionou-nos a possibilidade de ver um pouco da vida rural, das comunidades maioritariamente muçulmanas e, de alguns parques naturais onde pernoitámos como o de Si Pha Nga e a reserva de vida selvagem de Klong Na Ka. Estes parques são o que vai restando do que era outrora um tapete de árvores e selvas milenares e onde os poucos tigres e elefantes selvagens procuram refúgio numa tentativa quase inglória de sobrevivência.
Na costa do Golfo da Tailândia
A nossa chegada a Ranong, perto da fronteira com a Birmânia, marcou o fim das nossas pedaladas na costa paradisíaca do mar de Andaman. Não fazíamos a menor ideia do que esperar na costa do Golfo mas suspeitávamos que se tinham acabado as praias tranquilas e as estradas alternativas. Levámos dois dias a chegar ao outro lado da península com cerca de 147 metros de subida – a única digna do nome que pedalámos no país e, mesmo assim, pouco digna. Chumphon, a cidade do outro lado não nos despertou a vontade de ficar e como chegámos cedo decidimos avançar até à próxima praia –Thung Wua Laen.
A primeira coisa que notámos é que fazia um vento forte que nos dificultava as pedaladas – mais tarde viemos a perceber que esse vento correspondia aos efeitos da monção anual que naquela zona se manifesta sobretudo com ventos fortes vindos de noroeste – por consequência era a época baixa nesta costa e as praias estavam semi-desertas – olha a nossa sorte!
E nunca foi difícil encontrar um bungalow barato para descansar o corpo, ou um Seven Eleven – uma cadeia de lojas de conveniência americana que prolifera por toda a Tailândia, e que garante aos ciclovagabundos e afins, que uma bebida fresca, uma tosta mista ou uns chocolates de emergência, nunca estão a mais de 50 quilómetros de distância entre si. Parece que íamos continuar com ventos auspiciosos neste país, mesmo os que vinham de frente.
A “gincana”
Por conta dos mapas ultra detalhados que tínhamos no GPS para a Tailândia – cortesia do amigo Paulo Mourão e, salvo as vezes em que acabámos em estradas sem saída no quintal de alguém ou a atravessar rios por carreiros arenosos, percorremos o pais numa espécie de “gincana” que nos levou quase sempre a bom porto, permitindo-nos ver esta parte da Tailândia com outra proximidade e sobretudo ajudando-nos a evitar a N4, uma estrada de quatro vias, com uma quantidade de veículos motorizados a justificar as suas dimensões.
A paisagem nesta costa mudou bastante. Do verde abundante passámos ao verde escasso pontuado por coqueiros. Nas planícies arenosas planta-se o que se pode e o resto deixa-se invadir pelas águas do mar para formar salinas. Um ou outro parque natural, como o de Kao Sam Roi Yot, guardavam as poucas formações rochosas calcárias que existiam por ali e a vegetação rasteira que as circundava. O resto eram praias com sabor a praia de inverno, povoações piscatórias de fragatas multi-coloridas e a tranquilidade da vida rural tailandesa.
Atravessar Bangkok em bicicleta – uma experiência para não repetir!
Deixámos a cidade do “mercado comboio” – Samut Sonkhram com previsões vindas do nosso GPS de que evitaríamos a estrada N4 percorrendo uns caminhos de terra batida por terrenos alagadiços. Mas o GPS não estava muito inspirado porque nos levou a um beco sem saída no meio do nada e cheio de cães pouco felizes de nos verem por ali. Voltámos para trás e enfrentámos o inevitável – a N4.
Depois de cerca de 20 quilómetros, o aparelho voltou a dar sinais de vida, sugerindo-nos outro desvio, desta vez por pântanos, que felizmente estavam secos e, ao longo da linha de comboio – o mesmo comboio do mercado – e que eventualmente fomos obrigados a percorrer em cima da linha, porque o caminho tinha terminado. A coisa estava a animar e com tantas voltas seguindo a linha do comboio, ou andando sobre ela arrastando as bikes, não foi de surpreender que voltámos a passar por outro mercado instalado nas linhas férreas.
Deve haver alguma vantagem, que nos passa totalmente ao lado, em montar bancadas de vegetais em cima dos carris. Deve ser o vento na passagem do comboio que ajuda a arejar a fruta. Vá-se lá saber. Mas dois ciclistas em cima da linha não causam aragem suficiente para apartar os vegetais por isso seguimos sem a glória do comboio na sua passagem linha fora, até o gps nos mandar para outro lado.
À mercê daquela maquineta – o GPS – chegámos ao final do dia já bem embrenhados nos subúrbios de Bangkok, evitando as principais vias rápidas, e com quase cem quilómetros nas pernas. Umas vezes as suas indicações resultavam em estradas onde avançávamos, noutras, que não íamos a lado nenhum, como um condomínio luxuoso, completamente amuralhado e sem saída, que nos obrigou a retroceder uns bons quilómetros. Mas espingardear contra o aparelho era inútil. Por isso espingardeia-se com o Nuno, que pelo menos sempre se obtém resposta.
Encontrámos, já era noite cerrada, uma espelunca onde os quartos se alugavam à hora, numa zona que mesmo na escuridão nos parecia pouco salubre. Tentar explicar ao dono da dita espelunca, que não falava nem uma palavra de inglês, que iriamos demorar mais do que uma hora – íamos demorar uma noite e, quanto é que tínhamos que pagar pelo privilégio, resultou no pior e mais caro quarto da Tailândia, mas estávamos tão cansados e tão perdidos que pagámos, calámos e fomos dormir, na esperança de que a luz do dia nos ajudassem a perceber onde é que raio estávamos.
As imagens do dia seguinte, que começou a toque de chuva, baralham-se um pouco na memória – algumas travessias de ferry , mais umas quantas travessias suicidas de vias rápidas que se contavam na casa das dezenas – 18 a dada altura, muita poeira, fumo de escape, apitos de camiões, áreas urbanas intermináveis…Mas fomos progredindo lentamente para longe dos tentáculos do polvo que é aquela cidade gigantesca. E ao final do dia podemos relaxar quando as placas que indicavam Bangkok começaram a aparecer na direcção oposta à qual nos dirigíamos e as vias rápidas começaram a reduzir em número e movimento.
Vai uma salada de papaia verde?
Se em Bangkok tudo é possível, o que dizer dos seus arredores?
No segundo dia, do que ficou conhecido como a nossa travessia de Bangkok, andávamos à procura de um Seven Eleven para atacar uma dose dupla de tostas mistas com leitinho fresco e um café, mas não estávamos a ter muito sucesso na nossa busca.
Decidimos parar para almoçar num banca ambulante, das milhares que existem por toda a Tailândia. Vejo uma que vendia salada de papaia verde.
Este prato apesar do nome inócuo, é servido com uma concentração de chilis tal que desafia o grau de tolerância ao picante dos mais destemidos, mas por alguma razão que desconheço, fiquei totalmente viciada no sabor adocicado e ácido da combinação dos ingredientes e dos temperos e, na roleta russa que era pedir uma sem picante – porque vinha sempre com muito picante. Aqui o interessante era cronometrar quando é que me começavam a cair lágrimas dos olhos. Um pouco masoquista na verdade.
E ia para pedir uma quando o Nuno me diz:
– Acho que vais mudar de ideias. Vira-te para trás e vê o que é que o senhor está a fazer.
Assim fiz. E como descrever a cena? – O senhor, que estava com senhora a servir a salada e outros comes no carrinho ambulante, estava a tirar o pelo a uma grande ratazana cinzenta – lá carninha aquilo tinha com fartura – e a prepará-la para o tacho. Grande jantarada. Mas imaginar a nossa comida tocada pelas mesmas mãos que despelam ratazana urbanas fez-nos perceber que afinal não tínhamos assim tanta fome. Seguimos de barriga vazia até ao próximo Seven Eleven.
Corrida contra o tempo ganha. Ou quase…
Chegámos a Aranyapratet, a cidade que faz fronteira com o Camboja, no dia 30 de Janeiro, no dia exacto em que o nosso visto no país expirava. Sucesso! Missão cumprida! 1872 quilómetros em 27 dias de ciclismo…ou quase.
O Nuno tinha lido algures que havia flexibilidade de um dia e que, por isso, podíamos passar uma última noite no país sem multa. Culpa minha que não verifiquei a veracidade desta informação e, como se veio a comprovar na manhã seguinte por um oficial mais preocupado com a brilhantina do cabelo e a madeixa que lhe caia para os olhos, do que em dois cicloturistas que tinham ultrapassado a sua estadia, a leniência de um dia só se constata quando se deixa o país de avião. Não era claramente o nosso caso, apesar de acharmos que as nossas bikes nos fazem voar. A brincadeira custou-nos 500 bahts a cada um (12 Euros), ou seja, mais do que gastamos entre os dois num dia de viagem.
Contas pagas e balanço feito, tinha valido a pena. Tínhamos visto, sentido e saboreado o suficiente – praias, ilhas, gente, templos, comida picante até dizer basta, estradas com bermas largas, bom alojamento e barato e, sempre ao virar da esquina…mas faltava algo, faltava aventura. Será que a encontraríamos no Camboja?