Ser contorcionista para andar de autocarro
A minha cabeça ia agachada nos sovacos do Nuno, eu ia agarrada ao que conseguia encontrar, umas vezes o tecto, outras a cadeira, e outras, sem querer, a cabeça de alguém. O meu torso ia oblíquo e as minhas pernas iam entre as pernas de um rapaz que estava sentado à minha frente no banco de trás e a quem sem intenção devo ter entalado os “respectivos” nalgum solavanco porque ele depois seguiu o resto da viagem muito direito e com as pernas fechadas.
O Nuno ia de braços abertos, tal Cristo Rei, tentando encontrar apoio nas partes laterais do veículo no meio das travagens bruscas e das curvas apertadas. Mas era um Cristo Rei de cabeça dobrada porque o autocarro – “biscota” -, era demasiado baixa e ele, coitado, não tinha onde pôr a cabeça.
Aos seus pés ia sentada uma velhinha pequenita a quem só se via o cabelo atado num carrapito e a blusa muito bonita com um padrão de flores verdes e cor de laranja. Entre ela e a porta da carrinha que ia aberta, estava uma criança que ali se manteve de pé, quase imóvel, durante o tempo que durou a viagem.
O chão não se via, era uma amálgama de pés e bagagem.
Da janela traseira, pendurados, viam-se as pernas, pés, caras e partes das nossas bicicletas. Da porta, agarrados ao que fosse possível, iam 4 homens de idades diferentes, pareciam mexilhões precariamente presos às rochas durante a maré cheia. E não vou descrever a cobóiada que foi convencer o condutor a levar-nos as bicicletas e os nossos 8 alforges e, do que foi negociar o preço do nosso transporte com ele e mais umas 5 pessoas que decidiram fazer de intermediárias. Ou da logística para acomodar as nossas bikes os 8 alforges no tejadilho do veículo que já ia cheio com mercadoria suficiente para abrir um supermercado.
Jogar ao “Twister” é a melhor forma de descrever o que é viajar de autocarro em Timor Leste – o veículo enche até não haver mais espaço – por dentro e por fora – e os passageiros que se arrumem como melhor lhes aprouver. Depois é ver pés, mãos, cabeças, braços, pescoços e o que mais houver, que parecem ter perdido o dono. E aqui está também um excelente exemplo pelo qual preferimos as bicicletas aos ditos transportes públicos, só que como já tínhamos feito a estrada de Dili a Baucau, não nos apeteceu voltar a pedalar estes 120 kms. Facto do qual bem nos viémos a arrepender. Mas pronto, às vezes também é importante sentir na pele outros aspectos da realidade local.
Donos e senhores do tempo
Em Viqueque, íamos já preparados para arrancar, depois de termos terminado de fazer a actualização do site na internet da igreja, quando o padre Dionisio, um homem alto e jovem, meteu conversa connosco e, conversa vai, conversa vem, acabámos por ficar mais uma noite num dos quartos que o padre alugava ao lado da igreja. Esta é a beleza de sermos donos do nosso tempo e não estarmos escravos de grandes compromissos a não ser os da nossa própria vontade.
A estrada de Viqueque a Same estava num estado razoável, pelo menos para os nossos standards de outras estradas em Timor, conseguimos avançar a bom ritmo. Como sabíamos de antemão que não íamos encontrar alojamento e que preferíamos não fazer do nosso jantar o espectáculo de entretenimento da aldeia onde parássemos para dormir, optámos por comer algures num pedaço de praia onde não parecia haver ninguém, mas calculámos mal o tempo e anoiteceu.
Depois de uns quilómetros a pedalar na evitámos milagrosamente os muitos buracos e outros obstáculos presentes no caminho, encontrámos um senhor que seguia estrada fora no meio da escuridão. Aproveitámos para lhe perguntar se sabia onde era seguro acampar e o senhor, de seu nome Joaquim da Costa Fernandes, apontou-nos para uma barraca de palha e disse que podíamos dormir ali que era seguro e fazia parte da casa dele, outra barraca ao lado.
Assim fizemos. O nosso sono foi interrompido nas primeiras horas por vozes que bichanavam algo que incluía a palavra “malai” e com as luzes das suas lanternas a apontar para a nossa tenda. A notícia da nossa chegada deve ter-se espalhado como um fogo de verão e, ainda foram várias as visitas não anunciadas. Eventualmente como não havia muita gente na povoação as luzes das lanternas dos curiosos foi substituída pela luz da lua em quarto crescente e podemos finalmente dormir descansados.
Seguimos na manhã seguinte depois dos primeiros raios de sol e feitas as devidas despedidas e agradecimentos à família Fernandes.
Ao fim da manhã chegámos a Same.
Era domingo e dia de mercado, as ruas da transbordavam de vida, sons e cor, decidimos fazer um dia curto e explorar o mercado local e a pequena povoação.
No topo do mundo
Na manhã seguinte, depois de um “mata-bicho” reforçado seguimos caminho. Ia ser um dia duro, mais de 1600 metros de subida acumulada em menos de 30 quilómetros e, como quem constrói as estradas timorenses parece preferir deixar o pior para o final, acabámos por fazer as partes mais inclinadas da subida no fim da mesma. Os nossos conta-quilómetros assinalaram em partes mais de 20 por cento de inclinação e, as nossas pernas, coitadas, pareciam gelatina no final do dia.
Da estrada principal seguimos por um caminho tortuoso de 18 kilómetros até à aldeia de Hotubuilico na base do monte Ramelau, a montanha mais alta do país a 2995 metros de altitude e que pretendíamos subir. Parecia também que ao entrarmos nessa estrada entrávamos numa realidade paralela.
Deixámos as bikes na polícia e continuámos montanha acima. Acampámos a meio da subida e na manhã seguinte, terminámos a nossa ascensão para ir ver o sol nascer. Regressámos à aldeia para ir buscar as burras e seguimos em direcção a Dili onde chegámos depois de dois dias de muito sobe e desce.
Completa-se assim o círculo: terminámos o nosso “tour de Timor”, as nossas andanças ciclo turísticas pelo país, pelo menos por uns tempos. Entretanto encontrei um projecto que promove alternativas sustentáveis numa comunidade rural em Baucau e, decidi dedicar o tempo que me resta no meu visto (cerca de dois meses) a este projecto. Vou ficar em Baucau durante cerca de um mês a fazer trabalho voluntário. O Nuno vai ficar por aqui uns dias e depois far-se-á à estrada.
Marcamos encontro para continuar as nossas pedaladas juntos, em Bali já na Indonésia.