Serenadas na praia
Um grupo de crianças começou a cantar em frente à varanda do nosso alojamento, tentando coordenar uma coreografia provavelmente vista na televisão, que lhes saía alegremente descoordenada. Depois riam-se muito e cantavam outra música. Quando se lhes acabou o reportório, que incluía uma ou duas canções portuguesas, foram buscar conchas para nos oferecer. Depois, quando já tínhamos metade das conchas da praia de Com no parapeito da nossa varanda, pediram-nos para lhe tirar fotos, que quando visualizadas despoletavam mais uma cacofonia de gargalhadas.
Soprava uma brisa refrescante. Nas rochas expostas da maré baixa andavam adultos, crianças, porcos e cães em busca de peixe e marisco escondido entre as pedras: Eram silhuetas sobre o azul cobalto do mar num fim de tarde que nos parecia representar a perfeição da nossa vida de viajantes.
Na manhã seguinte, quando fomos ler os nossos livros para a varanda, desfrutando mais um amanhecer lento na praia de Com, as crianças voltaram a aparecer com o mesmo reportório musical e com mais uma série de conchas. Mas depois de duas ou três músicas, decidiram pedir dinheiro e, doces e, biscoitos e, cadernos e, lapiseiras…
A realidade menos prosaica é que, quer queiramos quer não, como brancos e, como viajantes em países em vias de desenvolvimento, somos inevitavelmente vistos pelos locais como cifrões sobre duas pernas a quem tem a todo custo que se extrair alguma coisa.
O apercebermo-nos desta realidade tem um sabor inevitavelmente amargo e, causa-nos tristeza porque sentimos que mesmo viajando de forma simples e tentando fazer o mais possível parte do que nos rodeia, seremos sempre um “malai”, o estrangeiro, o ricalhaço. Com dólares a saírem-lhe pelos olhos.
Chegar, porque se merece
O ciclismo na costa Norte de Timor foi fácil. As estradas de Baucau a Com eram geralmente alcatroadas, surpreendentemente planas e, sem grande trânsito.
Com é uma aldeia de pescadores com uma praia de postal onde ficámos quatro noites simplesmente a viver e a sentir o ritmo lento da vida. Partimos, por saber que se ficássemos mais tempo talvez ficássemos para sempre.
Rumámos a Valu, a praia na ponta Este em frente à qual se encontra o ilhéu do Jaco. Nesta área existe também o único parque natural do país – o Nino Konis Santana.
Os 8kms de Tutuala a Valu deram-nos um sabor das estradas que estavam para vir – íamos a caminho do paraíso por uma estrada dos infernos. Ficámos três noites na praia de Valu e visitámos o ilhéu de Jaco, que tem possivelmente a praia mais perfeita onde alguma vez estivemos mas onde não se pode pernoitar por ser considerado um local sagrado.
Para lá chegar vai-se num barco de pescadores e depois combina-se a hora do regresso, custa cerca de 6 dólares.
Depois de duas noites ruidosas, proporcionadas pelos meninos ricos de Dili que decidiram vir passar o fim de semana à praia – fizémo-nos à estrada.
De Valu seguimos para Tutuala e daí para Los Palos ao encontro do David e da Linoi, um casal muito porreiro que tínhamos conhecido no Valu e, que nos havia convidado a ficar em sua casa.
Conversa puxa conversa e as horas passaram sem darmos conta. David, um espanhol filósofo que andava a viajar pelo mundo. Dizia que estava à espera que o chamassem de Espanha para dar aulas, já lá iam seis anos . O que lhe vale é que ainda tem muito mundo para explorar.
A sua companheira, Linoi, uma rapariga chinesa por quem se tinha apaixonado quando andava a viajar pela China, também andava a viajar com ele. Estavam em Timor há já mais de um ano e tinham terminado recentemente as suas funções como voluntários para as Nações Unidas. Agora ponderavam o próximo destinoe o que fazer.
Melhor não fazer planos…
A estrada de Los Palos a Viqueque era uma incógnita. Segundo as pessoas com quem falámos estava boa, mas estar boa num contexto Timorense pode querer apenas dizer que existe, ou pelo menos esta é a única explicação para explicar o que encontrámos.
Tínhamos planeado levar dois dias de Los Palos a Viqueque. Era uma distância de apenas de 120 kms, mas ao final do primeiro dia, com apenas com 36 kms no mostrador e, depois de termos passado parte dos mesmos a empurrar as burras nas subidas e, nas descidas – Viqueque era uma miragem distante.
Ao cair da tarde, completamente exaustos, suados e cheios de pó por tudo quanto era poro, chegámos a Cadaibo, uma aldeia no meio das montanhas.
Nem mal parámos as bicicletas para decidir o que fazer já metade da aldeia nos rodeava. Perguntámos à multidão, sabendo de antemão que seguramente ali não haveria alojamento, onde é que se podia acampar. Um jovem respondeu que não havia alojamento mas que podíamos montar a tenda na sua casa. Apontou para o que era a única construção de cimento da aldeia. Ficámos agradecidos e perguntámos onde podíamos pôr a tenda, o jovem disse que em frente da casa. Sim sem dúvida era melhor do que nada, mas íamos ser o espectáculo ao vivo e a cores da aldeia inteira. Depois de uma jornada esgotante, servir de entretenimento a dezenas de olhares curiosos era a forma de rematar o dia nos sonhos de qualquer um.
O rapaz desapareceu por momentos e quando já levávamos, resignados, as bicicletas para a frente da sua casa, com o resto aldeia atrás, o rapaz disse que tinha falado com a família e que afinal podíamos ficar dentro da casa.
Entrámos. Nós, as bicicletas e o resto da aldeia, incluindo os cães e, quando parecia que já não cabia nem mais um feijão na sala que se encheu num ápice, veio um senhor com um cinto dobrado a dar vergastadas tentando enxotar aqueles que não eram da família. Deve ter-se enganado algumas vezes no meio da confusão porque de vez em quando lá se via uma ou outra cara surpreendida, que parecia dizer – “então pá estás-te a passar, também sou da família” e que depois acabava por ficar.
Ao todo, depois das portas fechadas e dos não familiares escorraçados, ficaram umas trinta pessoas. Estes à sua vez, foram-se retirando à medida que escurecia lá fora e que deixávamos de ser novidade.
No final ficou um grupo mais pequeno composto pelo João, o Belo o jovem que nos tinha convidado, a Opi, mais uns quantos irmãos e o avô – o Sr. Martim Pinto, a quem pertencia a casa e o qual parecia ali viver sozinho.
Preparámos o nosso jantar, de dar água na boca composto por arroz branco misturado com noodles instantâneos, no centro da sala, em cima do chão de cimento, rodeados pela família sentada à nossa volta. Oferecemos o que tínhamos cozinhado, aliás até fizemos a mais, mas a oferta foi recusada, não tanto por simpatia mas porque era francamente um jantar pouco apetecível. Infelizmente não tínhamos melhor para oferecer.
Durante a nossa conversa foi interessante compreender as expectativas destes Timorenses e da sua visão da vida, geralmente positiva e coerente e, com um conhecimento da história e dos eventos que nos deixaram surpreendidos.
Partimos cedo na manhã seguinte montanha acima escoltados por dezenas de crianças até à saída da aldeia.
E por aqui onde é que se pode dormir?
À hora de almoço com menos de 15 kms feitos, com dores nos braços de tanto empurrar as bicicletas era bem claro que não chegaríamos a Viqueque. Entre subidas e descidas o estado da estrada alternava entre o mau e o ainda pior e, muitas foram as vezes que nos vimos obrigados a empurrar as bicicletas à vez.
Com o aproximar de mais um final de dia, voltámos a debater-nos com o mesmo dilema – não estando perto de nenhuma povoação maior, onde é que dormiríamos? É que mesmo estando numa parte remota do país anda sempre gente por todo lado e tinham-nos desaconselhado fazer campismo selvagem. Contaram-nos histórias, vividas na primeira pessoa, de quem tinha acordado a mio da noite com um chuva de pedra, não queríamos desafiar a sorte. Mas mesmo que quiséssemos não havia poiso discreto para montar acampamento.
Chegámos a mais uma povoação – Uato Carbau e íamos à procura da esquadra da polícia, que nos haviam sugerido como sitio onde talvez pudéssemos dormir, quando paramos para perguntar a um senhor se íamos na direcção certa ou se ele sabia de sítio onde se pudesse dormir. Ele apresentou-se, disse-nos que se chamava Clementino, que era professor, que falava Português, que talvez soubesse de um sítio onde pudéssemos ficar e para irmos com ele até à sua casa enquanto ele mandava uma das filhas averiguar.
Mais tarde percebemos que o Sr. Clementino tinha enviado a filha dizer à mãe, a Dona Domingas que se preparasse porque iam ter visitas para a noite – nós! Temos a certeza de que alguém ficou sem cama para que pudéssemos dormir. A forma como fomos recebidos em casa da família Silva de Uato Carbau ficará para sempre gravada nas nossas memórias e nos nossos corações.
Da incerteza de não sabermos onde íamos passar a noite a terem-nos acolhido – a nós que éramos estranhos, oferecendo-nos não só cama, mas comida e amizade. Começávamos finalmente a ver e a sentir o lado espontâneo e generoso do povo timorense.
Na manhã seguinte, depois do pequeno-almoço, ou do mata-bicho, como aqui se chama, partimos rumo a Viqueque, tristes por deixarmos um novo amigo e com o desejo sincero de um dia ter a oportunidade de retribuir a generosidade que recebemos.