O sorriso
Poucas coisas são mais bonitas do que um sorriso. O sorriso é como uma tatuagem. Quem o criva ao rosto acaba com o corpo marcado pela força da linha que deixa nos lábios. Contagia o olhar como se o brilho que lhe causa auxiliasse a combustão das estrelas. Aligeira o ser, como se fosse feito de essências imateriais e não de carne e osso. Um sorriso é como um par de braços abertos – para a vida e para os outros.
Assim é Nuzhet. E assim é o seu sorriso.
Chegámos a sua casa com vistas para o oceano azul de Mersin às 5.35 da tarde num dia ventoso de Abril. Um dos seus estudantes, Mesut, veio esperar-nos a uma intersecção para que encontrássemos o caminho junto ao mar ao longo do paredão. Fomos distraídos na conversa e o mar ali ao lado – que não víamos há quase um ano – teve que esperar.
O cabelo curto cortado à rapaz, contornava a nuca de Nuzhet com linhas quase brancas. No dia em que nos abriu as portas da sua casa vestia umas calças pantalonas elegantes com um top branco justo. Era um conjunto que lhe alongava o corpo pequeno. No pescoço esguio, um colar em forma de espiral, onde parecia confluir alguma energia secreta do mundo… e o sorriso, tão aberto e tão sincero que cabia lá dentro a sensação de estarmos com alguém que conhecíamos há muito.
O apartamento grande e espaçoso fez-se nosso. Banho tomado e roupa a lavar, foi tempo de nos familiarizarmos ao sabor de um copo frutado de vinho branco e preparar a janta a várias mãos.
Nuzhet tinha 50 anos. 50 anos de muitas histórias – alicerces da vida interessante que era a sua. Filha de pai turco e mãe alemã, o seu ser estava dividido entre o sentido prático e determinado germânico e o calor e afabilidade das gentes turcas. Casou nova, mas, depois de ter a filha – Deniz, decidiu continuar os estudos e fazer carreira académica. O então marido, aos comandos da mãe advogada a exercer, queria que se tornasse – ironicamente, numa dona de casa passiva. Nunca aconteceu. Nuzhet continuou a sua carreira académica e o divórcio foi inevitável.
Nuzhet…mulher grande
O pé e a vida fincou-os bem(e finca ainda) nas coisas em que acredita e que quer. Chegou ao que é hoje – responsável pelo departamento de Engenharia Alimentar da Universidade de Mersin à custa de muita teimosia, determinação e de não se deixar intimidar no mundo machista que é o nosso e, no seu caso particular, o académico turco.
Já fez casa do Quirguistão, aproveitando uma oferta de emprego numa universidade deste país da Ásia Central. Com o dinheiro que lá juntou e a vida simples que lá fazia, pode pagar os estudos universitários à filha. Por lá se deixou apaixonar pela vida ao ar livre e pelas viagens por sítios remotos como a China, mesmo ali ao lado.
É mulher dos mil projectos. À sua volta tudo resulta em algo, como se não houvesse desperdício de energia humana. Em Mersin, criou um clube de ciclismo na universidade. Os membros são sobretudo homens, que a seguem como cordeiros nas actividades e encontros que coordena. Mais uns tantos projectos relacionados com as comunidades nas montanhas locais, e outros tantos na área da sensibilização ambiental –área por explorar no contexto do país. As suas horas livres não são muitas, mas as que são, ficam preenchidas na leitura, na preparação de novas aventuras e em passeios de bicicleta.
A nós incumbiu-nos uma apresentação ao núcleo de ciclistas e aspirantes da universidade. Deu-nos uma manhã de aviso. Muita correria e power-point enferrujado, improvisámos o que pudemos…Com o alívio da apresentação findada, vieram as perguntas e os sorrisos, entre os soluços da tradução do inglês para o turco feita pela Nuzhet – ficou a sensação que dentro das limitações, a apresentação tinha corrido bem.
No jantar lanche à beira-mar que Nuzhet nos quis oferecer – uma mezze, tão variada como deliciosa, de humus, quentes e frios, pastas de beringela e, guizados suculentos de carnes tenras e bem condimentadas que barrámos em pães caseiros – estaladiços na côdea e macios no interior. Para rematar um momento que prescindia de melhores remates, as baclavas recheadas com pistáchio, uma espécie queijo doce derretido em fios, também com pistáchio triturado e, um licorzinho local com sabor a anis – lá manda a tradição. Passámos um final de dia à beira mar que apreciámos com o dobrar dos segundos e com a companhia, vendo o sol a afundar mar adentro, levando consigo a luz do dia e trazendo o lembrete das horas bem passadas.
Deixámos Nuzhet e o conforto do seu apartamento na manhã seguinte. Íamos acompanhar a linha azul que o mar mediterrâneo desenhava, separando-o dos vales e montes que se faziam terra. Ao avançar sobre o piso cinzento do alcatrão que nos levaria ao longo daquele mar, remanescemos os últimos dias que nos tinham levado até lá. Os últimos dias de terras de searas e castelos perdidos no centro da grande Anatólia…
E quase tudo o vento levava
Quando deixámos o nosso acampamento nas margens do Eufrates as pedaladas continuaram pela primavera que se sentia. Seguimos na direcção das flores que salpicavam os campos de cor; em direcção do calor ameno dos dias; em direcção do chilrear dos pássaros e dos seus voos nervosos de ramo em ramo. Para estes deambulares não é necessário calendário. As estações vêem quando têm de vir, as suas marcas não obedecem ao quadriculado numérico de um papel que o homem pendura na parede para se governar. E, com as nossas pedaladas e esta nossa vida nómada, vai acontecendo o mesmo.
Ao deixarmos os vales por entre os quais o Eufrates se contorcia, fomos dar a planícies onde o vento deambulava de forma livre, sem nunca nos auxiliar as pedaladas. Acabámos o dia, já sem sol (parecia ele também afastado para o outro hemisfério pelas rajadas) à porta de uma pequena aldeia que não vinha no mapa. Já sem forças para buscar um sítio abrigado do vento, ou longe das vistas, improvisámos assento na beira da estrada, entre duas árvores noduloso de ramadas longas que desfraldavam aos ventos. Mentes mais visadas olhariam às ramas portentes no cimo das nossas cabeças e às probabilidades de uma queda certeira, mas o nosso sentido de urgência não nos deu para tanto. A noite foi passada com despertares violentos, onde nos víamos obrigados a agarrar a membrana frágil de material de polyurestano – a nossa tenda, a única barreira entre nós e o vendaval enraivecido que nos abanava os alicerces da casa e do descanso.
Na manhã seguinte fizemos espera dentro da tenda por um vento ido. Mas o vento não se foi e sem coragem de o enfrentar passámos mais um dia enclausurados no nosso cocoon verde, sem muito mais do que fazer que ouvir os galos roucos da aldeia, as sombras do rendilhado móvel das ramas das árvores, o balido de uma ovelha na distância e a tenda a contorcer-se como se uma dor de barriga forte lhe estivesse a tomar conta das entranhas.
Ao segundo dia: tenda imóvel. O sol apartou as nuvens e, as ramas em cima das nossas cabeças, que não chegaram a cair, formavam um recorte verde, estático e sereno. Seguimos montanha acima, para depois a voltarmos a descer numa outra encosta qualquer. O dia feito silêncio. Nem uma brisa como recordação dos últimos dias passados no sopro do vendaval.
Hierapólis e Anavarza – As “nossas” ruínas abandonadas
Os pinheiros, em qualquer parte do mundo, transportam-me até à mata da minha terra – Leiria, terra de mar e pinhais. No écran da minha memória chegam, como um programa pré-formatado, imagens dos meus primeiros acampamentos em família, embalada pelo som suave das ramas ao vento. O tecto verde agulhoso.O cheiro amarelo da resina. Os troncos longos e esguios que convergem no intervalo que o verde das ramas deixa, quando parece que o azul do céu é o único travão ao seu crescimento.
Não pudemos montar acampamento nas ruínas perdidas de Hierapólis, mas o pinhal a pouca distância, com o seu chão de caruma seca que acobertava o chão arenoso, escondeu-nos e abrigou-nos o acampamento da noite. Na manhã seguinte regressámos às ruínas romanas semi por escavar, semi por preservar, semi esquecidas. Seguimos pela estrada romana de pedra desalinhada onde cresciam papoilas no intervalo das uniões. O que restava era um conglomerado abstracto de monumentos desmembrados. Um anfiteatro com cenário de searas e oliveiras onde os actores eram os pássaros e as cigarras. No alto, um castelo desmoronado, palco de guerras e fugas, no topo de um rochedo que os cruzados, na sua campanha do medo rumo a terras de Jerusalém, deixaram. E uma tartaruga pequena, lá no alto também, na sua cruzada pela sobrevivência.
Os dias foram passando, divididos apenas pelas estradas incógnitas que trilhavam o centro Este do país e que percorríamos em busca de pedaladas tranquilas e da Turquia que não vinha nos guias. Por obra destes desvios fomos dar a mais um castelo solitário, feito lego desmoronado por uma criança rabugenta, deixado à beira de um precipício, à espera do dia trágico da queda final. Nos seus flancos a Este, jaziam as ruínas de uma cidade romana cujos os restos mais artísticos como campas talhadas, alguma ninfa esculpida, um ou outro painel de mosaicos, serviam de enfeite às casas das gentes da aldeia.
Subimos até ao castelo, suando o esforço no dia quente que se sentia. Por ali andámos perdidos no dia de sol e de ruínas esfareladas. Sem muitos quilómetros para assinalar o final do dia, decidimos ao descer do castelo fantasma, montar acampamento nas ruínas da cidade romana abandonada – Anavarza. Se ali era poiso de rebanhos, também o seria de ciclovagabundos, pelo menos para a noite. E foi uma noite clara de estrelas e luar grande. O amanhecer envolveu-nos no centro do rebanho que regressou ao pasto dando-nes miradas surpreendidas para dentro da tenda antes de seguirem pela cidade ruína levando com elas o som descoordenado da sinfonia dos sinos pendurados no seus pescoços de lã.
Adana – a bicicleta do Nuno diz que “não”
Quando deixámos Anavarza seguimos em direcção a Adana decididos a não passar na grande cidade, tão animados que íamos com as nossas estradas esquecidas.
A bicicleta do Nuno tinha outros planos.
Primeiro vieram os furos – dois. E havia já uns problemazitos de menor monta que o Nuno andava a ignorar (à boa maneira dele)- se a pobre “burra” com o aro da frente meio rachado e a pedaleira no “salta-salta” anda, para quê gastar dinheiro com reparações?
O craque foi redutor. O que quer que tivesse acontecido foi grave porque a burra não avançou. Numa subida mais acentuada o desviador enfiou-se raio dentro e partiu-se. O Nuno improvisou o arranjo possível – desmontou o desviador, encurtou a corrente e seguiu em single speed, sobe e desce fora. Afinal sempre teríamos que ir a Adana, e a Adana chegámos embrenhados pelo manto escuro da noite.
A manhã seguinte foi de arranjos. Na loja de bicicletas onde fomos arranjar a bike – conhecemos Karahan, ciclista nos tempos livres. Queria que ficássemos em sua casa mas como já tínhamos pago a noite na pensão onde estávamos, tivemos que recusar. O jantar com a mulher e o filho, não podemos recusar e, fomos mais uma vez deliciar-nos com as iguarias culinárias turcas, que de outra forma estariam fora do alcance das nossas bolsas e, por consequência, das nossas papilas gustativas.
Arranjos feitos e bicicleta pronta a rolar, fizemos os 40 quilómetros até Tarsus – a terra onde São Paulo nasceu. Em Tarsus fomos recebidos pelo Mustafa e a sua mãe, que nos prepararam um banquete digno de reis. As breves pedaladas seguintes foram embaladas pelo vento, que, como de costume, nos dificultou as pedaladas. Chegámos a Mersin ao início da tarde.
Dois dias depois chegávamos a casa de Nuzhet e seguiríamos com a linha do Mediterrâneo a guiar-nos as pedaladas.
As próxima histórias serão dos encontros inesperados com um caminhante Português e, dos esperados, com uma amiga de longa data, a Stephanie e a Nela, a nossa companheira de viagens mais assídua.