Fazendo pouco mais quilómetros do que quando andávamos nas nossas bikes, a diferença é que agora tínhamos tempo para visitar tudo o que queríamos e, fazer desvios para melhor poder disfrutar os miradouros, as quedas de água, as pequenas povoações, as árvores e a bicharada tão diversa e diferente
Contrabandistas
Estava aterrorizada. Primeiro, o papelinho da emigração no avião, a perguntar se viajávamos com produtos animais. Quem fosse apanhando a transgredir, estaria sujeito a pagar multas ou, até mesmo, acabar preso. Pusemos os dois uma cruzinha no quadradinho do “Não”.
Depois à saída do avião, escancarados em todas as paredes do aeroporto, mais uma vez, sinais a informar que era proibido trazer produtos alimentares ou de origem animal para o país. O senhor da emigração que nos carimbou o passaporte voltou a perguntar:
–Trazem animais, fruta ou plantas que queiram declarar?
– Não. Foi a nossa resposta. Mas começámos a ficar preocupados. Eu principalmente.
Depois chamaram-nos à parte para fazer o scan das nossas malas e das nossas bicicletas. O meu coração batia tão forte que acho que se ouvia no terminal do aeroporto.
O Nuno tentava convencer-me a relaxar, que ia correr tudo bem, mas eu já tinha perdido as esperanças..
Os oficiais da máquina de raio-x passaram a nossa bagagem para trás e para a frente, decifrando o que havia lá dentro, uma série de vezes. Mas depois de alguma conversa sobre as bicicletas e os nossos planos de viagem na Austrália, deixaram-nos ir, desejando-nos uma boa estadia no país.
Suspirámos de alívio.
Já íamos com os carrinhos de bagagem no terminal de chegadas quando um outro oficial -nos chamou e nos disse que tinha que inspeccionar a nossa bagagem.
– É desta – pensei eu. É desta que nos apanham.
O oficial levou-nos de volta à área de inspecção, abriu as caixas das bicicletas, depois verificou a tenda. Parecendo-lhe que estava tudo em ordem desejou-nos boa viagem e deixou-nos ir. Desta vez definitivamente.
Até hoje ainda estamos para entender como é que deixaram passar as postas de bacalhau que a minha mãe nos tinha enviado de Portugal para Auckland e que decidimos levar connosco para o novo país.
E cá estávamos na Austrália finalmente. Nós e o nosso bacalhau prontinho a ser demolhado e a servir de ingrediente principal de um bom bacalhau à brás.
Seguir a quatro rodas e um motor
Decisões. Quando chegámos à Gold Coast, a casa da Danina uma grande amiga de longa data, o plano era agarrar nas bicicletas e pô-las num autocarro até Port Macquarie onde a Louise, outra amiga, vivia. Daí apanharíamos outro autocarro até Melbourne para visitar o Pierre e, depois outro autocarro para Port Augusta onde começaríamos a grande etapa de ciclismo que pretendíamos fazer na Austrália – atravessá-la de Sul a Norte passando pelo seu centro, fazendo 3000 e tal quilómetros pela Stuart Highway, até Darwin.
É um facto mais ou menos consumado que ninguém gosta de autocarros e, muito menos quando se anda a viajar com bicicletas. Horários para cumprir, viagens longas, filmes maus, criancinhas a chorar, ar-condicionado ou muito frio ou muito quente, bicicletas para empacotar e desempacotar. Enfim, o cabo dos trabalhos.
Por outro lado, uma das viagens com que o Nuno sonhava há já muitos anos era precisamente viajar na Austrália em autocaravana. Comprar um carro ía-nos sair caro, tínhamos que passar algum tempo à procura de vendedor e, depois de um dono. Alugar um carro seria a próxima opção a considerar, mas e preços? – O mais barato que encontrámos foi com a Back Packer, a cerca 42 Euros por dia com gastos de gasolina mas sem seguro contra todos os riscos porque isso duplicava o custo do aluguer. Não era propriamente caro, mas era um pouco além dos gastos que queríamos ter. Alugar ou não alugar, eis a questão?
Depois de alguma indecisão, de muitas contas e, de uma semana a pesar os pós e os contra decidimos que uma “road trip” pelo continente Australiano era a melhor opção. “Matávamos vários coelhos de uma só cajadada”, não tendo que usar autocarros, e poder seguir ao nosso ritmo, construindo o nosso itinerário – pé no acelerador, durante um mês na estrada. Da Gold Coast até Port Augusta sobre quatro rodas, uma casa e, um motor.
A Nimbina, o nosso “boudoir” vagabundo
Quando vimos a carrinha pela primeira vez ficámos um bocado decepcionados. Esperávamos que a nossa nova casa sobre rodas viesse equipada como um canivete suíço, cheia de truques e armários secretos onde podíamos montar e desmontar uma casa com toda a facilidade, mas o “canivete suíço” era mais uma navalha de abertura simples.
Depois de toda a tralha arrumada e das bikes bem atadas ao tejadilho, conseguimos estabelecer uma ordem que mantivemos durante o mês que andámos a viajar – para um lado as coisas da cama, para outro os talhares e os tachos, para outro a comida. Tudo bem arrumadinho havia espaço para fazer uma mini-sala, onde comíamos e cozinhávamos quando fazia mau tempo e, que à noite se metamorfoseava em quarto, ou, o nosso “boudoir vagabundo” como eu lhe chamava.
Encontrámos também umas cadeiras de campismo numa lixeira e com a mesa que vinha com a autocaravana “voilá”- a nossa sala de jantar com vista para o mundo! Na parte traseira havia a kitchenette com mini lava-loiça e tudo! Estávamos a começar a gostar desta vida e, certamente da melhoria substancial dos nossos standards. Como dizia o Nuno – “estávamos a ficar burgueses”.
Mas havia uma questão que nos incomodava, e para a qual não tínhamos ainda resposta -como é que iríamos voltar às bicicletas depois destas mordomias todas? – Tínhamos um mês para pensar no assunto.
Montanhas e florestas
A Gold Coast, a zona na costa Oeste onde a Danina vive, é uma área onde o dinheiro dos novos ricos produziu uma paisagem de arranha-céus, centros-comerciais colossais, vias rápidas com muito trânsito. Resumindo, o tipo de sítio que normalmente nos faz sentir ligeiramente fora de contexto. Mas curiosamente, apenas a 40 quilómetros de distância desta Miami Beach versão Australiana, existem florestas virgens, montanhas escarpadas, cataratas e, miradouros dos quais se observava na distância o topo dos arranha-céus e o mar azul infinito.
Os nossos primeiros dias avançaram a um ritmo lento, fazendo pouco mais quilómetros do que quando andávamos nas nossas bikes, a diferença é que agora tínhamos tempo para visitar tudo o que queríamos e, fazer desvios para melhor poder disfrutar os miradouros, as quedas de água, as pequenas povoações, as árvores e a bicharada tão diversa e diferente.
Estávamos na caldeira de um grande vulcão e um dos mais antigos do mundo, o Mount Warning, agora extinto. Sob a qual permaneciam florestas milenares de faias antárcticas do tempo da última época glaciar.
Fomos até ao parque nacional de Border Ranges e é difícil encontrar palavras para descrever este parque natural, parte de uma rede de parques naturais que compõem as Gondwana Rain Forests no estado de New South Wales e Queensland, Património da Humanidade. Na borda do vulcão segue uma estrada de pedra solta que percorre o Border Ranges e pode presenciar-se o testemunho vivo dos tempos em que a terra tinha outros mistérios. Com a maior parte das pessoas a preferir as praias, tivemos o privilégio de sentir este local mágico em perfeita solidão. Uma catedral ao verde, sagrada, grandiosa, solene e silenciosa, reminiscente de uma realidade paralela, uma realidade onde o ser humano não existe e a natureza permanece imperturbada.
A outra Austrália
Esta Austrália que começámos a descobrir era uma Austrália muito diferente das nossas ideias pré-concebidas, feitas de praias de surfistas de cabelo queimado pelo sol, cangurus e áreas extensas de desertos de terra vermelha. De facto, esta Austrália era precisamente o oposto – com dias de chuva melancólicos a fazer lembrar o Outono Europeu e muita natureza verdejante.
Comunidades experimentais, como Nimbin, ensopadas na ideologia caduca do flower power dos anos 60, com gente a vender pelas ruas – sem tabus- drogas de toda a especificação. Esta era uma Austrália para lá das nossas expectativas, composta por surpresas inesperadas, entrelaçadas na rede dos parques naturais que existem, e que ao todo, são mais de 500 no país inteiro.
Regressámos à costa para visitar Byron Bay, que nos havia sido altamente recomendada por ter não só praias bonitas como também por ser uma vila com uma atmosfera ligada a um estilo de vida alternativo. Gostámos do farol, que está no ponto mais a Este da Austrália e de ver os golfinhos a saltar por entre as ondas do mar.
Mas, apesar da falta de arranha-céus e de centros comerciais, a vila pareceu-nos demasiado desenvolvida, cheia de mochileiros pubescentes, malta “new age” da era do consumo e, de toda a parafernália acompanha este pessoal, como bares ruidosos com promoções de happy-hour, lojas de souvenirs com artesanato do mundo vendido ao triplo do preço original, lojas de surf, agências de viagem, estúdios de massagens, lojas de terapias alternativa, cafés “fair trade” com bolachinhas orgânicas e, etecetera, etecetera. Chegámos 20 anos tarde,. Pelo menos!
Na estrada das cascatas
Seguimos pela costa durante mais um dia, antes de regressar às montanhas do interior, sobretudo porque os parques naturais na zona da costa não ofereciam opções de campismo gratuito. De qualquer forma, a zona da costa entre Byron Bay e Port Macquarie era mais desenvolvida e não parecia oferecer tantas opções de cénicas. Voltá-mos às montanhas, seguindo pela Waterfall Way – uma estrada que subia ziguezagueante pelas encostas do vale de Bellingen e onde existiam, ao longo do percurso, inúmeras cataratas como as Dangar Falls, as Ebor Falls – com dois patamares disintos, e as Wollombi Falls que se despenhavam por uma ravina de 220 metros.
Tivemos ainda a oportunidade de explorar em solidão total o Parque Nacional de Dorrigo, mais um parque parte das florestas húmidas milenares da Austrália e, das florestas húmidas de Gondwana. Levantámo-nos por volta das 6 da manhã e, quando chegámos ao parque ainda não havia vivalma. Só nós, a bruma matinal, o chilrear dos pássaros, o verde da floresta e, as pontes suspensas construídas entre as árvores, que permitiam vistas das suas copas e da vida animal abundante que nelas vive.
Chegámos a Port Macquarie onde ficamos por duas noites na companhia da nossa amiga Louise e da sua família antes de seguir com direcção a Sydney e a Melbourne.