Um “snack” de escorpião, uma questão de gosto adquirido e não só
Depois de passarmos a manhã inteira num ritmo de empurra, pedala, hello, hello, empurra, pedala, hello, hello, encontrámos um telheiro afastado das pequenas povoaçõesao longo do carreiro arenoso que aparecia no nosso mapa como uma estrada, a N66. Um desvio que fizemos no nosso percurso entre Siem Reap e Beng Mealea para evitar a estrada principal N6.
Estendemos as nossas redes, longe dos olhares curiosos das crianças e das pessoas simpáticas, numa tentativa de dormir a sesta e dar tréguas ao corpo do calor intenso que se fazia sentir. Não deu para perceber quanto tempo estivemos naquele misto de torpor e sonho que nos assaltou os corpos mas acordámos meio estremunhados sob o olhar de um grupo de jovens curiosos.
Enquanto voltávamos a pôr as redes dentro dos alforges reparámos num escorpião bastante grande que apareceu por ali meio desorientado, se calhar também tinha estado a dormir a sesta, e apontámos na sua direcção. Numa fracção segundos um dos rapazes estatelou um chinelo em cima do animal e, em menos tempo,outro, agarrou nele ainda meio vivo pela cauda e enfiou-o goela abaixo. Ao fazer isto olhou o Nuno nos olhos em tom de desafio, como quem diz – “ó farrang, isto não tinhas tu coragem de fazer!”. Soltou uma gargalhada, disse qualquer coisa em Khmer, e depois foi-se juntar aos amigos que iamem direcção a um charco que havia ali por perto onde se foram refrescar.
A mensagem, fosse ela qual fosse, parecia óbvia – aqui nada se estraga e tudo tem valor. Neste caso, proteínas. O passado do Camboja que ressoa a fome, a miséria, a guerra, a privação, a opressão, a campos de extermínio, a loucura, a Pol Plot, é bem recente. As marcas são evidentes. O presente explica-se com estoicismo, resiliência e a uma boa dose de gosto adquirido.
Pó – facto incontornável da vida khmer
Se tivéssemos que descrever o Camboja numa só palavra, essa palavra seria pó. Não é justo, temos noção, mas limitar um país a uma palavra, nunca o é.
Levámos dois dias a percorrer os 166kms que separam a cidade de Poypet, que faz fronteira com a Tailândia, da cidade de Siem Reap, que serve de infra-estrutura às hordas de visitantes que começaram a emanar nas ruínas de Angkor quando voltou a ser seguro viajar no país há cerca de 15 anos atrás. Agora é uma das grandes urbes do país e possivelmente a com maior desenvolvimento. Mas mesmo pedalando em estradas perfeitamente alcatroadas, o pó estava em todo o lado.
Viajávamos no país no início da época seca, que começa em meados de Fevereiro e termina em Julho, quando as primeiras chuvas devolvem a cor verde aos arrozais e aos campos. Agora amarelados e temporariamente estéreis. Tínhamos que aprender a lidar com este aspecto da vida Cambojana, o de que estas partículas microscópicas acastanhadas seriam a segunda pele dos nossos corpos e das nossas bikes e, efectivamente, de tudo o que nos rodeava.
Nas grandes planícies que formam o centro do país já pouco, ou mesmo nada, resta da vegetação original. Sob o regime mortalmente lunático de Pol Plot, entrou-se num período curto mas nefasto de um programa de ruralização da sociedade onde todos, sem excepção, foram obrigados a abandonar as cidades e ir para os campos cultivar arroz e onde toda a terra potencialmente arável foi destituída de árvores e extensivamente cultivada, a tal ponto que certas áreas se tornaram inférteis e meio desérticas. Este facto tão pouco ajuda, mas a verdade é que o corpo a tudo se habitua, e a camada de pó, há que admitir, dava-nos e ás bikesum certo ar rafeiro, que nos agradava. Assim parecíamos mais misturados na paisagem.
Angkor – a cidade do céu na terra
Sentados no ponto mais alto do templo de Phimeanakas, sob o sol irrespirável do meio dia, dou comigo a pensar: “ daqui a mil anos o que será feito das grandes cidades do mundo contemporâneo? O que será feito de Londres, Singapura, Beijing, Nova-Iorque, Paris…? Se estiverem prostradas em ruínas como estas estão agora, a que conclusões sobre os seus habitantes chegarão aqueles que as redescubram, que as estudem, que as explorem, que as visitem? Que imagens construirão das pessoas que nelas viveram?”
À nossa volta, a selva havia reclamado a sua soberania. Os grandes edifícios, símbolo da hegemonia do império Khmer entre os séculos IX e XV e do desejo de uma sucessão de reis em deixar a suar marca indelével para a posteridade, pouco mais eram do que pedras silenciosas empilhadas e enlaçadas de forma quase erótica por árvores robustas e esguias. Umas denunciavamainda a configuração e a utilidade que tinham tido no passado mas outras, simplesmente ali tombadas, estavam à espera de um possível renascimento pelas mãos dos arqueólogos ou que a selva as engolisse.
Aos nossos olhos, uma cidade como esta estaria, de uma forma ou de outra, destinada à obliteração. Ao longo dos séculos, com o cultivo e o corte de árvores intensivo, para alimentar as necessidades da grande cidade, que a determinada altura chegou a alojar mais de um milhão de almas, os solos tornam-se inférteis, situação que se agravou com grandes períodos de seca e os ataques constantes dos impérios vizinhos.
Como tantas outras cidades do passado, não era uma cidade das pessoas ou para as pessoas, poucas o são na realidade, até nos dias de hoje. Foi construída para servir e idolatrar os deuses, os homens de poder e as elites religiosas que eram os seus representantes divinos na terra. Angkor era o céu na terra.
As escadas de acesso ao topo dos templos que se erguem como montanhas rumo aos céus, à imagem da montanha mais sagrada da crença hinduísta – o Monte Meru – vão adelgaçando e os últimos degraus são tão compridos e estreitos que a subida se torna realmente precária. A intenção, segundo se supõem, era precisamente essa, a de complicaro acesso humano ao domínio das entidades divinas. Os céus a elas pertenciam e os que se aproximavam tinham que o fazer com reverência e o mais arduamente possível, incluindo o rei. A solução para a finalidade funciona bem mas ironicamente, ou não, é mais difícil descer para regressar ao plano raso destinado aos comuns dos mortais, do que o é subir. Estando no céu, quem é que quer regressar? – Nós! Que debaixo daquele sol, pouco faltava para que os nossos corpos se transformassem em carne no churrasco bem passada.
As casas do povo vivem para sempre
Não restaram vestígios das casas da esmagadora maioria daqueles que habitavam Angkor – o seu povo, que a construiu e serviu. A regra era simples e absoluta: a pedra como material de construção estava reservada apenas a edifícios designados ao culto dos deuses e os reis-deuses – os devaraja. O grosso da população era obrigada a construir em madeira, bambu, palha e outros materiais perecíveis. No entanto, mesmo que estas casas não tenham sobrevivido à passagem do tempo dentro da velha cidade amuralhada,fora dela, permanecem bem vivas as cópias atuais.
As casas dos dias de hoje, construídas com estes mesmos materiais e que ainda constituem a maioria das casas que se vêem no país, testemunham que a vida que o povo vivia há mais de mil anos atrás sofreu menos o ataque do tempo do que os edifícios em pedra tombados da cidade em ruínas.
A natureza, a grande senhora, eterna e soberana
Angkor, agora, deixada aos superlativos como o maior espaço religioso do mundo. Aos carimbos da UNESCO como património mundial da humanidade. Aos turistas que são mais de quinze milhões por ano, e a aumentar. Aos cineastas, que aqui imaginaram a Lara Croft a lutar contra forças demoníacas entre ruínas e filmaram Tomb Raider. Ao budismo e às crenças animistas que mantêm vivo o uso de alguns edifícios para o fim a que foram originalmente destinados. Às equipas de arqueólogos vindos dos quatro cantos do mundo na missão de salvaguardar as marcas do passado. Às muitas crianças de olhar doce, que contam até dez em várias línguas tentando encantar os turistas na esperança de lhes venderem postais ou pulseiras, em vez de estarem na escola. Ao sorriso e olhar, ora amistoso, ora sardónico, das muitas faces do templo enigmático de Bayon. – A cidade de Angkor renasce.
Para nós, depois de três dias de deambulação, contidos num bilhete personalizado de 40 dólares com uma foto das nossas caras distorcida, e das dezenas de quilómetros somados no cansaço das nossas pernas, não só de andar, mas também por tanto dar ao pedal tentando cobrir as distâncias que separam os diferentes complexos. Ficou-nos a imagem de um sítio verdadeiramente especial e importante na história do homem como testemunho do seu espírito criador e destrutor. E testemunho também da beleza lânguida da natureza quando esta volta a reaver o seu espaço entre os escombros das civilizações.
A lição aparente é simples: o homem molda e transforma a natureza para satisfizer os seus fins e propósitos. Mas o homem, no esquema do tempo, é efémero e volátil. A natureza,que não tem pressas porque é eterna, mesmo com todas as cicatrizes, regressará para reclamar o que é seu, que sempre foi, e que sempre será!