As gentes das Pamir
Gente. De onde vem esta gente? E o que fazem aqui? Não são muitos, mas aparecem dos sítios menos prováveis, quando menos se espera. Entidades omnipresentes, embutidas na paisagem que surgem do meio do deserto que são estas montanhas – sombras que se transformam em massa humana com o distrair do olhar. Aparecem nos casarios semi abandonados, demasiado frios, escuros e debilitados para a habitação, mas onde ainda assim persistem em assentar vidas. Nos vales onde os rios se afundam encosta abaixo. No meio do pontilhado que são os rebanhos que se vêm na distância…Nas povoações feitas de pó e terra. São as gentes das Pamir – os pamiri. Entender a sua existência, a sua história a sua cultura faz parte do processo que é entender esta ilha rochosa que os isola do resto do país, e por extensão, do resto do mundo, mas que por isso mesmo lhes conserva a identidade.
Os pamiri são, como qualquer outro povo, o fruto da manta de retalhos que cresceu da passagem de viajantes, povos, exércitos e impérios. Cimérios, persas, budistas, macedónios, gregos, hunos, mongóis, árabes, russos, nómadas quirguizes, entre outros tantos que passaram, conquistaram, e alguns, que ficaram. O resultado desta manta é tão heterogéneo como os diferentes dialectos que se falam na região. Para além do isolamento, da vida parca em confortos, este povo está unido pela língua (o Persa do Este do Irão), a religião (o Ismaelismo, um ramo do islamismo xiita), o país (o Tajiquistão) e as Pamir, delineadas pela região autónoma Gorno- Badaskshan.
Na primeira parte da nossa etapa nas Pamir a paisagem prevaleceu sobre o contacto humano que foi quase sempre marcado por encontros breves e fugazes. Nesta segunda parte, onde descemos aos vales estreitos e mais propícios à vida humana, a paisagem imprimida na musicalidade do outono, não perdeu monumentalidade e adquiriu uma nova dimensão : a dimensão humana, a dimensão das gentes pamiri, onde a palavra hospitalidade ganhou, no nosso léxico de viajantes, um significado tão mais amplo… e onde aprendemos que ter espaço na bexiga para beber mais uma taça de chá, assim como ter que acordar a meio da noite vezes infindáveis para a descarregar, é uma das componentes essenciais da experiência do que é viajar pela Ásia Central.
Aqui fica a segunda e última parte do registo do nosso Diário das Pamir.
De Murgabe a antes do passe de Naizatach
Dia 700 -9.10.2013
49.20 kms
Acampados a 4112 msnm
A luz do sol entrou pelo quadriculado das janelas do quarto. Através dos vidros embaciados via-se a imagem desfocada do pátio lá fora e do Sr Tulfabek e a mulher entregues às lidas matinais . Dentro do tanque do lavatório metálico que havia à entrada da casa de hóspedes, água quente, para que não fosse tão dolorosa a rotina de higiene pessoal no frio ríspido da manhã. Na mesa, um pequeno almoço de ovos estrelados, salsichas, chá e pão caseiro feito pela Sra Tulfabek – um pão de forma generoso que devorámos com um fastio pouco pudico, apenas apropriado a um subnutrido ou esfomeado, o que não era claramente o nosso caso.
No fim do repasto, pedimos a conta ao Sr Tulfabek e não pudemos deixar de notar um certo constrangimento quando nos respondeu que pagássemos o que entendêssemos, que fizesse-mos as contas nós mesmo.
O Nuno agarrou num papel e assentou a comida e o custo do alojamento com o preço que tinha ficado acordado. Entregou o papel ao Sr Tulfabek que emendou as contas não se cobrando de um jantar, dos lanches de pão com margarina e café instantâneo e dos muitos chás…
– Então mas o preço tinha ficado acordado. Disse o Nuno em tom de gentil protesto
– Desculpem, mas vocês são meus convidados…
Na falta das palavras da frase inacabada, percebemos que lhe custava fazer da hospitalidade, parte integrante da forma de ser e estar destas gentes, o seu meio de sustento. Para nós, no entanto, foi com prazer que deixámos o maço avultado de “soms” nas suas mãos. Deve ser um equilíbrio difícil de manter quando a tradição marcada pelos valores religiosos e pessoais ditam os deveres da hospitalidade gratuita.
À saída de Murgabe fomos interrompidos pela cancela ferrugenta de um “check-point” e um guarda que nos levou os passaportes para registar os nossos detalhes. Passaportes devolvidos, seguimos, montanha acima, por uma estrada alcatroada de inclinações suaves e quando passámos para o outro lado do passe percebemos que tínhamos ficado expostos ao vento – o famoso vento contra que mais cedo ou mais tarde será companheiro de viagem nas Pamir.
Ipod no cesto e auscultadores nos ouvidos com o” play” na colectânea de música “disco” – eis o meu segredo para enfrentar com um sorriso o desafio acrescido – a estrada é a minha discoteca, e se não é o momento para soltar o corpo e dançar, faz-se a reciclagem e…pedala-se!
De resto a paisagem é um deserto onde de quando em vez duas ou três casas desafiam a lógica do que é propício à vivência humana. Delas, contra todas as expectativas, aparecem pessoas e crianças, estóicas do que as rodeia, com os seus rebanhos raspando o solo do pouco que o solo tem para dar.
O vento não nos deu tréguas o dia todo – nem no final do dia. Montar a tenda é um exercício de ginástica coordenada para nos asseguramos que as varas não partem e a que tenda não voa.
Os sibilos do vento, que nos abana a tenda, embalam-nos o sono leve.
Do passe de Naizatach ao acampamento das patas de yak (perto de Alichur)
Dia 701 -10.10.2013
42.30 kms
Acampados a 4149 msnm
Duas palavras descrevem o dia de hoje: vento e…”disco “! A média dos nossos conta quilómetros não ultrapassou os 8/9 kms por hora quando podíamos ir a mais de 20. Estas planícies desabrigadas começam a cansar como discoteca improvisada.
O Nuno consegue convencer-me a fazermos turnos e pedalar atrás do outro, para nos proteger-mos do vento e para que as pedaladas rendam mais.
– Prometes que não me vais dar guinadas a cada 5 minutos? (as nossas tentativas prévias nesta táctica amplamente usada por ciclistas em equipa, tinham terminado comigo a parar a bike e a proibir o Nuno de vir atrás de mim por me estar sempre a dar cacetadas com a bike dele)
– Prometo. Desta vez prometo que não me distraio.
Promessa cumprida. Primeiro começamos com 5 quilómetros cada um, que foram reduzindo até acabarmos o dia em 500 metros cada um.
E o que dizer do acampamento? (o melhor que encontrámos com o cair da noite) – uma trincheira numa jazida de patas de yak e outras partes ósseas de um rebanho defunto.
– Mas aqui? Vou ter pesadelos…
A pergunta tinha sido totalmente desnecessária, não havia outro sítio abrigado do vento, e com ou sem pesadelos nocturnos, seria ali o nosso acampamento para a noite.
Montámos a tenda, cozinhámos e fomos dormir sem maiores entusiasmos.
Do acampamento das patas de yak ao lago Sassyk Kul
Dia 702 -11.10.2013
31.70 kms
Acampados a 3836 msnm
Na noite passada não houveram pesadelos afinal.
– Temos companhia! Diz o Nuno.
Uma carita com ranho a escorrer pelo nariz e olhos curiosos, espreitou para dentro da tenda, onde eu estava a arrumar as coisas e a preparar-me para arrancar, já depois do pequeno almoço tomado.
Estendo-lhe a mão para o cumprimentar e o pequenito estende-me a sua para retribuir o cumprimento que é complementado por dois gestos que simbolizam a forma sentida como as gentes da Ásia Central se cumprimentam: o levar da mão direita ao peito seguido por um ligeiro debruçar do torso. A sua mão é tão pequenina que transforma estes dois gestos em algo maior e mais profundo. Por trás dele aparecem o irmão e a mãe. Uma senhora pequenina com ar frágil e olhos rasgados, herança possível dos antepassados mongóis. Trocamos as poucas palavras em russo que sabemos…não dá para mais e com o final da conversa breve, parecem contentar-se em ver-nos a arrumar as coisas.
Olho para o casario isolado, na distância, de onde vieram. Luz não deve haver, televisão e rádio, pouco provável…como passarão o tempo? Como serão as suas vidas? As crianças nem devem de ir à escola. Gostava de lhes oferecer alguma coisa, mas o quê? Lembro-me que ando a carregar desde a Tailândia uma caixa de lápis de cor na ilusão de que me servirão para fazer desenhos quando estiver inspirada, ou aborrecida, mas o meu filão artístico tem andado escondido nas grutas da preguiça. Agarro nos lápis e num bloco de papel e faço um desenho desajeitado da família que tem o efeito mágico de os aproximar e de lhes libertar umas quantas gargalhadas do peito. Como um simples acto pode proporcionar a intimidade e a partilha que a falta das palavras nem sempre permitem? Depois do desenho feito agarrei na caixa de lápis e no bloco e ofereci-lhos. Aceitaram e nos seus olhos transpareceu a alegria sincera. Agradeceram e convidam-nos para ir beber chá, mas o vento estava tão forte que decidimos não aceitar e seguir.
Passamos por Alichur, uma povoação assinalada no nosso mapa, onde nas margens de um rio brotam algumas casas e algumas pastagens. Parece que aqui se come bom peixe frito. O rio é pouco profundo e com bastante corrente – estranho, de onde virá o peixe então? Deixamos a experiência culinária para outra altura,afinal isto é terra de ovelhas, não de peixe. Os camionistas vindos do passe de Culma (numa das fronteiras com a China) não deixam escapar a oportunidade , no entanto. Alinham os seus veículos imensos à porta dos pequenos restaurantes de beira da estrada e ali se congregam, numa reminiscência moderna aos antigos comerciantes da rota da seda.
É certo que muito mudou desde que os Portugueses, com a descoberta da passagem marítima para a Índia, tornaram pouco rentável, quase obsoleto, o transporte e a troca de bens em longa distância na grande massa de terra que é a Eurásia, mas num sentido moderno, as trocas comerciais continuam bem vivas e hoje, mais do que nunca, com os camelos substituídos pelos camiões TIR, os bens circulam de país para país, como sempre circularam desde séculos imemoriais. Estes condutores, os nossos companheiros, os gigantes gentis, ganham o estatuto de heróis porque as estradas que percorrem são traiçoeiras e perigosas.
Depois do almoço à saída de Alichur, onde dois miúdos reguilas se juntaram a nós, devorando praticamente o nosso saco de biscoitos e bolachas, terminando as exigências com um pedido de fotos para as quais fizeram poses coreografadas, seguimos por uma estrada ondulante que ora nos protegia do vento, ora nos expunha aos seus bafos.
A meio da tarde chegámos a um lago hipnótico azul turquesa com o céu reflectido nas suas águas – o Sassyk Kul. O nome quer dizer o lago mal cheiroso, mas depois de umas “snifadelas” profundas concordámos que não nos cheirava a nada e decidimos que merecíamos um dia curto no acampamento cénico.
Empurrámos as bikes cerca de 800 metros até chegar a uma parte abrigada nas margens do lago.
– “O que é este cheiro” – pergunta o Nuno?
-“Ó não! O lago mal cheiroso”! Respondo, percebendo tarde de mais o odor abundante a ovos podres.
…e outro problema: não tínhamos água. O lago estava visto, seria uma fonte inútil.
Decidimos acampar mesmo com o mau cheiro. Eu fiquei a montar a tenda enquanto que o Nuno à procura de água.
Tenda montada. Uma hora. Duas horas. Quase três horas… mas o que é que aconteceu ao Nuno que nunca mais aparece?
Olho ansiosamente a linha prateada que é a estrada, o sol já desaparece por trás das montanhas, estou rodeada por sombras, tons azuis rosados do final do dia e o frio. Lentamente a sua silhueta define-se, primeiro um ponto sem forma em movimento, depois, um ciclista definido – um suspiro de alívio.
– Então amor? Pensava que te tinhas perdido.
– Não, mas não encontrava água em lado nenhum.
Olhei para as garrafas que o Nuno tinha levado para encher de água que estavam agora cortadas e cheias de gelo. O meu olhar desviou-se depois para a mala do guiador com a nova função de reservatório de gelo. Fizemos cálculos mentais, cerca de três litros -não iríamos passar sede. Fogões ao máximo, água derretida, e água suficiente para o jantar e para o pequeno almoço da manhã seguinte.
Adormecemos com os narizes já acostumados ao cheiro de ovos podres e o vento adormece connosco.
Do lago Sassykul ao ribeiro congelado
Dia 703 -12.10.2013
31.60 kms
Acampados a 4046 msnm
Deixámos o acampamento com um ligeiro problema logístico: não tínhamos mais água. Empurrámos as bikes de regresso à estrada, o que dada a altitude (acima dos 4000 metros) foi tarefa que nos consumiu as calorias ingeridas no pequeno almoço.
O vento, ao que parecia, não tinha ainda despertado do seu sono.
Seguindo quase paralela à estrada principal havia uma estrada abandonada, interrompida em partes pelas as enxurradas de água do degelo ou algum outro mau humor do tempo. Parecia um poema visual: da linha cinzenta prateada, que era a estrada, brotavam pequenos arbustos secos amarelados e esbranquiçados – um êxodo estático de seres redondos, uma floresta irrompida no alcatrão, uma fuga falhada de uma estrada que já não vai a lado nenhum e dos arbustos a darem-lhe vida mas igualmente incapacitados de escaparem, ou tão somente a metáfora da vida que é infinitamente maior do que a efemeridade das criações humanas que o tempo torna inúteis…
Era dia de surrealidades imagéticas. Um lago de sal. Uma estrada em forma de gráfico. Uma casa semi-abandonada de onde saiu uma pessoa…um fantasma talvez. As formas rectilíneas dos camiões TIR em movimento lento sobre a estrada “gráfico” e as montanhas arredondadas.
O vento desperta rabugento.
Passamos finalmente por um ribeiro pouco profundo e com pouca água. Desço a ribanceira com três garrafas debaixo do braço, com o semblante no rosto dos perdidos no deserto à procura de água…encho as garrafas com um líquido amarelado, cheio de sedimentos, o qual espero não ter que chegar ao ponto desesperado de ter que ingerir.
Quando regresso à estrada o Nuno recebe as minhas garrafas de água com entusiasmo.
– O que é isso? Fizeste xixi para dentro das garrafas?
– Muito engraçadinho. Estás-te a rir, mas a situação é séria, não há água em lado nenhum…se a coisa continua assim, é mesmo xixi que vamos ter que beber para sobreviver.
– Não sejas tonta…se não encontrarmos água é só mandar parar um camião.
(Pois…)
Seguimos sem água e, felizmente, sem sede, por mais umas horas. A estrada piorou, transformando-se numa linha branca e poeirenta que nos sacudia o corpo. O vento não nos dava tréguas.
Já seriam quase umas três da tarde quando avistámos um ribeiro substancial onde enchemos as garrafas com água que ainda assim continuou meio amarelada e com sedimentos. Avançámos mais uns quilómetros e outro ribeiro, mas este de águas limpas e transparentes. “Não há fome que não dê em fartura”. Decidimos acampar nas suas margens que estavam abrigadas do vento cada vez mais forte. Assim que o sol se pôs o frio tomou conta do espaço vazio entre as montanhas e o céu. Decidimos cozinhar dentro da tenda e deixar a lavagem dos pratos de dos tachos para os despertares da manhã seguinte.
Do ribeiro congelado às Termas de Jelondi
Dia 704 -13.10.2013
43 kms
Alojados a 3513 msnm
Provavelmente a noite mais fria das Pamir: -15. Despertámos de manhã com o silêncio. Tínhamos adormecido com o som da água a saltitar entre as pedras que de manhã estava ausente. Quando espreitámos pela tenda, percebemos porquê: o ribeiro tinha congelado e o seu leito estava coberto por uma crosta grossa de gelo impressa com formas geométricas.
Enfrentámos o último grande passe das Pamir a 4300 metros. A estrada estava em mau estado e o vento continuava a empurrar-nos no sentido inverso ao que pretendiamos avançar. Já não há música que ajude a aguentar esta ventania. Pedala-se com resignação mais do que com entusiasmo.
Chegamos ao passe. Não há nada marcante para fotografar, nem um animal de parque de diversão, por isso fotografa-mo-nos aos dois. Sentimos um misto de alegria e tristeza – vamos deixar para trás a expansão árida das Pamir e pela frente as Pamir apertadas do desfiladeiro do rio Gunt.
Maria e Zigor, o casal de amigos e cicloturistas espanhóis que tínhamos conhecido em Kunming, na China, tinham-nos dado a que é possivelmente a melhor dica, de entre as muitas que nos deram, das Pamir – “Não perder as termas de Jelondi”.
E a Jelondi chegámos no final do dia. O edifício, que tinha também alojamento, era um misto entre um sanatório com ares de hospital psiquiátrico e o hotel do “Shinning”, mas as piscinas termais com água quente, que nos rejuvenesceram o corpo e o espírito e fizerem desejar que todos os dias de ciclismo terminassem assim afastando quaisquer receios que o Jack Nickolson aparecesse de algum canto escuro de facalhão na mão a correr atrás de nós.
Dormimos que nem os anjos que não somos.
Das termas de Jelondi a Ver
Dia 705 -14.10.2013
67.50 kms
Alojados a 2947 msnm
– O que quer que faças, não uses a casa de banho. Disse o Nuno depois de ter feito o que me dizia agora para não fazer.
Como a casa de banho era fora do hotel, tínhamos cortado a parte de cima a uma garrafa de água para que servir de penico, mas na manhã seguinte quando o Nuno foi à casa de banho para a despejar, teve uma surpresa (as casas de banho na Ásia Central competem com as chinesas e as indianas pelo estatuto de piores do mundo). Sem recorrer a muitos detalhes, porque tenho a sorte de não a ter a utilizado, usando a descrição que me foi feita pelo Nuno, imaginem uma latrina que pode ser utilizada não por uma, não por duas, mas por três pessoas lado a lado e ao mesmo tempo (com a perninha a roçar e tudo se se tiver de fazer o serviço que requer o agache). Para completar o quadro dantesco, o espaço reservado aos dejectos estava a transbordar…mais não digo que julgo ser desnecessário.
Deixamos o hotel nos ares mais perfumados da estrada que nos aguardava pela manhã. Seguimos no nosso “downhill” merecido. Precisávamos de comprar alguns mantimentos, incluindo pão. Os mantimentos são fáceis de encontrar, sobretudo agora que a estrada é um aglomerado contínuo de povoações, mas pão não parece vender-se nas mercearias e por isso vamos tentando a nossa sorte e continuando a perguntar.
Eventualmente alguém nos aponta para uma casa a uns 100 metros da estrada. Deve de ser a padaria. O Nuno dirige-se à casa e regressa com dois pães enormes redondos acabados de tirar do forno.
– Não me deixaram pagar pelo pão e querem que almocemos com eles. Parece que estão a celebrar alguma coisa…
Já era hora de almoço e decidimos aceitar.
Em redor da casa parecia estar congregada a aldeia inteira. A um canto, que parecia ser o canto das mulheres, um “wok” gigante sobre chamas onde uma sopa amarela fervia. Apertámos as mãos a umas quantas pessoas, depois veio um menino com um bule com água quente e uma toalha para que lavássemos as mãos e um senhor que saiu da casa com uma toalha de plástico e umas almofadas que pôs debaixo de uma árvore. Alguém trouxe biscoitos e bombons, pão, um bule com chá e chávenas. Alguém nos agarrou no braço e nos fez sentar em redor da toalha. Quando estávamos já sentados veio outro alguém com duas taças de sopa com grandes nacos de carne de carneiro, batata e cenoura a boiar e a insistir que comêssemos. Não fizemos cerimónias, mas era estranho estar a comer com audiência de pé à nossa volta sem mais ninguém a acompanhar-nos. Entretanto juntou-se ao piquenique um senhor que tinha estudado em Osh (foi o único que percebemos do que nos dizia apesar de ter falado o tempo inteiro). Nem bem a sopa ia a meio já o senhor mandava um berro a uma das raparigas e mais nacos de carne e mais líquido eram adicionados às nossas taças. Entretanto apareceu uma rapariga que falava um pouco de inglês e no seu entusiasmo nervoso conseguiu-nos explicar que estavam a celebrar o Curban Bairran, uma data festiva muçulmana. Disse-nos também que era uma honra terem-nos como convidados. Retribuímos: – a honra era nossa, e se ela podia traduzir e passar os nossos sinceros agradecimentos ao anfitrião. Depois juntou-se outro homem que nos queria convencer a dormir em sua casa. – “Dormir? Agora? Mas é meio dia!” O senhor é insistente, mas declinamos. Entretanto aparece um saco de plástico cheio de sopa, mais pão, rebuçados e biscoitos. As coisas que estavam em cima da toalha desaparecem e a toalha é dobrada. Agradecemos e despedi-mo-nos da família, preparando-nos para seguir caminho. O senhor, que afinal era um vizinho, continua a insistir que durmamos na sua casa mas eventualmente percebe que a sua causa é uma causa perdida. Seguimos finalmente, não sem antes nos porem mais coisas no saco da sopa e dos rebuçados.
A famosa hospitalidade Pamir… ( e o dia ainda não tinha terminado).
Ao final da tarde, quando buscávamos sítio para montar a tenda encontrámos um casal de ciclistas sentados em frente a uma paragem de autocarro agarrados a um Kindle. Eram polacos recém casados – o Yorek e a Agata. Estavam viciados num livro – que andavam a ler ao mesmo tempo – e não resistiram usar a pausa da tarde, para lerem mais uns capítulos.
Conversa vai, conversa vem e, entretanto juntou-se a nós um rapaz jovem e um senhor de mais idade. Os polacos falavam um pouco de russo e a coisa acabou com um convite para passarmos a noite em sua casa (eram pai e filho). Empurrámos as bicicletas até à casa da família pelo meio dos campos. O filho, o Nazim, falou-nos um pouca da sua vida entre a Rússia, onde trabalhava na construção civil, e os seus regresso a a casa no final dos Verões para trazer dinheiro à família e para ajudar no trabalho dos campos. Estava fascinado com a nossa forma de vida nómada. Não conseguia entender porque é que alguém juntava dinheiro para viver em cima de uma bicicleta em vez do o usar para comprar um carro ou uma casa…mundos à parte que se tocam. Como é que se explica a alguém que é isto que nos vai no coração? Que viajar, para nós, é tão importante como é para ele o carro, a casa, os bens materiais, a segurança, aos quais no seu mundo nem sempre é fácil ter acesso.
A noite de partilhas e descobertas mútuas acabou com as mulheres da casa, numa risada despegada, a desfazerem a pilha de colchões, cobertores e edredons, que chegava até ao tecto, para nos fazerem a cama na sala forrada a tapetes onde tínhamos sido previamente empanturrados com tanto pão acabado de fazer, barrado com manteiga, guisado deliciosos de cabrito com batatas e cenouras, chá, biscoitos e bombons que mal nos conseguíamos mexer de tão inchadas que estavam as nossas barrigas.
Adormecemos os quatro debaixo dos edredons quentes. Durante a noite, as nossas bexigas estiveram ocupadas a processar os litros copiosos de chá que ingerimos, e não nos restou outro remédio senão fazer o passeio nocturno e frio até à retrete da família, que à boa moda antiga consistia num buraco na terra coberto com duas tábuas de madeira que exigiam um cálculo preciso do posicionamento dos pés sob o risco de falhando os cálculos se ir parar a profundidades pouco prazenteiras.
De Ver a Khorog
Dia 706 -15.10.2013
65.30 kms
Alojados a 2144 msnm
De manhã já com tudo preparado para a saída e sem esperar por mais generosidades fomos oferecidos um pequeno almoço tradicional de pão e chá com manteiga na divisão da casa destinada à cozinha.
Com o pequeno almoço tomado, levaram-nos para o centro da casa – a divisão mais importante, na qual nos dias mais frios de inverno ou de cerimónias a família se reúne. Do tecto a única janela existente na divisão – chorkhona – a janela tradicional das casas pamiris formada por sete quadrados concêntricos de madeira finamente talhada, que representam os quatro elementos principais Zoroastras: a terra, a água, o ar e o fogo, este último coincidindo com o ponto mais alto e o primeiro a ser tocado pelos raios de sol. No centro da sala o pilar de madeira que simboliza o Profeta. Foi nessa sala onde nos ofereceram mais pão acabado de tirar do forno para levarmos connosco. Fizemos os nossos agradecimentos sentidos e despedimo-nos com um aperto no coração e com a sensação de que tínhamos vivido algo muito especial, levando connosco infinitamente mais do que tínhamos deixado.
Seguimos outono abaixo, avançando rumo a Khorog. Era um outono que nos assaltava os olhos com os contrastes das árvores amarelas, o rio azul turquesa, as montanhas Pamir transformadas em pilares de sedimentos de vários tons,o céu ciano e as casas pamiri no seu esoterismo escondido entre paredes. Uma estrada onde maçãs apareciam como ofertas das mãos de estranhos que se assomavam à nossa frente, onde os “assalmalecums” eram proferido a alta voz seguidos por incontáveis ofertas de chói (chá), que sobretudo tivemos que declinar.
Chegámos a Khorog a meio da tarde, nos primeiros céus cinzentos da nossa travessia das Pamir. Khorog deixou-nos um trago semi-amargo como destino final desta etapa grandiosa e solene. Uma cidade metida no meio das montanhas na confluência de três rios e cujo braço parece estender-se ao país vizinho – o Afganistão, mesmo ali ao lado, na outra margem do rio Panj. Khorog é a capital da região autónoma de Gorno Badashkan, mas o aglutinado pouco coerente de edifícios soviéticos e pós soviéticos que se poderia descrever como “neo-classico-plástico-bera”, dificilmente faz juz à região da qual é capital.
Depois de uns dias de descanso, seguiríamos rumo a Dushanbe, para tratar dos quatro vistos pendentes. Com as Pamir pelas costas, o mais duro das nossas pedaladas estava terminado…ou assim esperávamos (mas nem sempre as coisas são como se esperam).
Na próxima crónica histórias dos nossos últimos quilómetros no Tajiquistão.