
Dois anos!
Como dizer a nós próprios que andamos há dois anos a viajar sem recear que não passe de um sonho para o qual vamos acordar?
É que no esquema das coisas, no esquema da vida, dois anos não é muito, mas por outro lado, pode ser tanta coisa… pode mudar-se de vida, enchê-la de alegrias, vitórias, objectivos alcançados. Pode pedalar-se meio mundo e sentir o mundo a crescer dentro de nós e a agarrar-se às nossas entranhas, abrindo janelas, derrubando preconceitos e amansando medos.
Alguém nos perguntava em tom de balanço como têm sido estes dois anos de vida vividos ao máximo. Respondemos que o “máximo” que vivemos é pouco convencional, porque é um “máximo” feito de “mínimos”, com o essencial – que já é bastante – de comida, roupa, abrigo. E é precisamente no espaço criado por essa simplicidade que nos permite viver a vida ao “máximo” desfrutando das coisas que verdadeiramente importam, como o contacto intenso com as pessoas e com o que nos rodeia.
Mas façamos então contas a estes dois últimos anos das nossas vidas.
730 dias, 344 dos quais a pedalar com 1457 horas em cima da bicicleta. 20,095 quilómetros pedalados a uma média de 54 lentos quilómetros diários, com uma subida acumulada de 145,524 metros (que é o mesmo que dizer – Leiria a Lisboa na vertical, ou por aí) e 6 furos entre os dois (Nuno -4, eu – os restantes 2 ). Das noites desses 730 dias, 287 foram passadas em acampamentos, 114 em casas de amigos e pessoas que nos alojaram espontaneamente (ou não), com as restantes 329 noites passadas em hotéis baratos, pensões, pousadas e afins, um ou outro comboio ou autocarro e até uma estação de comboios. No total já lá vão 15 países percorridos, com cerca de 18,000 euros gastos, o que dá uma média de 12 euros por dia, por pessoa…e podíamos continuar aqui a desdobrar números, mas matemática nunca foi o meu forte e na ciência dos números não cabe a ciência do que vai cá dentro e, por tal, passemos a outros resumos…
Por exemplo à simbiose que ocorre nas 1427 horas passadas em cima das bicicletas – em que nós e as nossas máquinas nos transformamos num só, numa espécie de “Eduardo mãos de Tesoura” a quem cresceram duas rodas como extensão das pernas – o nosso corpo (o nosso rabo e o nosso selim), a nossa mente, a nossa bicicleta uma só entidade. Se alguma não está bem as outras têm de trabalhar em “overtime” para compensar e às vezes não trabalham de todo. A mesmerização de poder usar um objecto com mecânica tão simples para percorrer quase meio planeta com o esforço das nossas próprias pernas, aproximando-nos do mundo e aproximado-nos sobretudo de nós.
Dos quinze países por onde passámos, (com mais do que 20,095 quilómetros percorridos entre eles), muito mais do que o espaço que os seus carimbos ocupam nos nossos passaportes, contam sobretudo os carimbos incontáveis das amizades e dos gestos de generosidade alheia que ficam nas nossas memórias e nas nossas saudades… dos encontros e dos reencontros, do derrubar de ideias pré-concebidas que nos fazem pensar que o mundo é a preto e branco quando o mundo é uma palete de cores infinitas cheias de nuances. Das paisagens superlativas do que ainda vai sobrando do estupro da necessidade humana. Este ainda é o mundo especial. Ter o privilégio de unir os extremos opostos do planeta e açambarcar no processo a vivência de culturas e formas de vida tão distintas como as do mundo novo da Nova Zelândia e da Austrália na sua reinterpretação da cultura ocidental, passando depois, como se para um universo diferente, até à Timor Leste e a Indonésia, embrenhado-nos numa realidade exótica feita de cristianismos animistas, islamismos suaves e hinduísmo coloridos, à nossa passagem pelo Sudeste Asiático com as pedaladas quentes e descontraídas, ao ritmo das praias, dos templos budistas perdidos nas selvas, dos sorrisos sinceros e das sestas nas redes entre árvores na beira das estradas. A China, aquela massa de terra e gente imensa que são tantos países dentro de um só e a Ásia Central onde a palavra natureza ganhou um novo significado e as montanhas uma nova dimensão. Celebramos os dois anos no Irão, onde o frio, o azul dos mil e um ladrilhos das mesquitas assim como a generosidade das suas gentes nos têm preenchido os dias. Esta é não só uma união geográfica que nos afaga os antagonismos, mas sobretudo uma que nos desperta para o facto de que as diferenças e a diversidade, afinal, são o que de melhor vamos criando e deixando no mundo como seres humanos.
Nos poucos contra tempos que enfrentámos, porque nem tudo são alegrias, ou facilidades, destacamos a saga financeira e logística dos vistos e as suas limitações temporais que nos encurtaram a estadia e pedaladas em alguns países que desejávamos ter percorrido na sua totalidade com as nossas bicicletas como o caso da China. A operação nos “saldos” em Bisqueque do Nuno. Ou também, as duas bicicletas já muito rodadas, a darem de si de vez em quando e a requererem peças novas e carinho, nos sítios onde essas peças e carinho merecido não abundam. O meu joelho a precisar de descanso e a ensinar-me a lição de que para receber também é importante dar e que uns alongamentos no final do dia se calhar não eram má ideia. Ou o frio do inverno Iraniano a travar-nos as pedaladas rumo a casa e a obrigar-nos a ir buscar motivação extra para seguir, resistindo à tentação de nos enfiarmos no próximo voo com destino às praias quentes e paradisíacas da Birmânia – mas os contra tempos são, neste contexto, apenas ínfimos detalhes que nos fazem repensar as nossas opções e reajustar planos, aprender a ver o lado cómico da vida – rir, afinal, ainda é o melhor remédio – e sobretudo estarmos cientes da tremenda sorte que temos.
E contamos também com mais dois anos das nossas vidas a dois – vividos de forma intensa na certeza de que somos uns afortunados por fazermos parte da vida um do outro e por partilharmos este sonho de calcorrear mundo juntos, acrescentado ao universo de cada um a forma única como vivemos e sentimos as coisas, com o amor mutuo que nos une.
No tempo que nos resta na contagem decrescente ditada pelo” tique-taque” das nossas poupanças, das saudades grandes que já temos da família e dos amigos e da meta que se avizinha ( na imagem do castelo de Leiria). Esta ainda é a vida que nos preenche e, enquanto durar não a queremos trocar por outra.
Portanto, para já, para já, e adaptando as palavras da canção do sábio Jorge Palma – enquanto houver estrada para pedalar, ” a gente vai continuar, enquanto houver ventos e mar”…e já agora, não nos acordem deste sonho, pelo menos até nos verem chegar lá para os lados da Bajouca, ou do Janardo, porque ainda faltam uns nove mesitos e esta vida é do melhor que há!