– E agora?
– Agora, vêm os “depois”. Depois dos antípodas; depois da viagem; depois da vida vivida em cima de uma bicicleta; depois da vida em constante movimento (embora a vida, claro, seja um movimento constante); depois de quase três anos das nossas vidas…
Primeiro foi o regresso. Aconteceu tudo tão depressa: a placa a dizer Portugal, as últimas pedaladas por um país que nos pareceu novo do patamar em movimento dos nossos selins; os abraços, as lágrimas, as caras que eram as mesmas, tão familiares e tão carregadas de conforto, e calor, e carinho.
Depois veio a desorientação, o estar ali, mas não estar. O corpo em piloto automático. O não saber como chegar ao “a seguir”.
Dum rascunho para uma actualização no blog, que não acabei, nem publiquei, lê-se:
Leiria, Novembro 2014
Vou por os pés pelas mãos e os bois à frente da carroça: é que entre Mersin, na Turquia, onde deixei as últimas histórias da estrada, e Leiria, onde estamos agora, cabem cinco meses, muitos quilómetros e muitas histórias de intervalo. Mas avanço palavras fora sem contar o que ficou pelo meio porque, quer seja por catarse, quer seja porque há coisas dentro que precisam sair, chegámos há coisa de mês e pouco e sinto que tenho que encerrar o ciclo da escrita, mesmo que a ideia seja recomeçar. E, o ciclo da escrita encerra-se, previsivelmente, escrevendo, que é o que vou fazer, mesmo com as ideias num baralho e os tais pés, metidos pelas mãos…
Chegar depois de dois anos e nove meses vividos em movimento, em cima do mundo e em cima de uma bicicleta, não é fácil. Também não é propriamente difícil. Mas é estranho, e estranho é a palavra que decidi usar porque não consigo coordenar o que estou a sentir com o que estou a escrever.
Vamos explicando às pessoas, quando nos perguntam “então, esse regresso?” que “ainda não aterrámos”, que “a poeira não assentou”, “que não nos conseguimos habituar ao teto certo sob as nossas cabeças”… As expressões de estilo e os meios ditados usados como resposta talvez não deixem transparecer que é como se ainda aqui não estivéssemos, como se ainda viéssemos a caminho. Quer dizer, o corpo já cá anda, mas falta o resto. E o resto como se sabe, é o mais importante.
O “agora” preenche-se com coisas que nos parecem abstratas – apresentações e entrevistas. Para que servem? Olhamos com curiosidade o interesse dos outros no que foi a nossa vida nos últimos anos e tentamos encaixar a nova normalidade que é tão diferente da outra – da outra das viagens, da outra do movimento, até da outra em que vivemos entre viagens. Não sabemos muito o bem o que vem a seguir. Os mapas para o futuro já não estão impressos num papel com linhas e distâncias orientadoras. O GPS já não apita quando dobramos a esquina, assinalando que vamos pelo caminho certo. As divagações são outras.
Vago pelas divisões do apartamento do meu irmão, abrindo os caixotes das nossas coisas – cheiram a bafio e bafio é ao que me cheira o passado que enchemos com estas coisas. São tantas. Pesam. São restos de um outro “eu” que agora está desencaixado do “eu” presente. Para que é que precisava de tanta camisola, calça, casaco, vestidos, botas, sapatos? Não era mais feliz com esta tralha toda do que com a pouca, por comparação, que carreguei em quatro alforges durante quase três anos. Depois dou comigo, paradoxalmente, a sentir um estranho prazer por poder voltar a vestir umas calças de ganga, que eram demasiado pesadas e pouco práticas num universo feito de ciclo deambulações, transformadas de novo na peça de vestuário ideal do quotidiano sem duas rodas, e por ter à minha disposição uma panóplia de coisas para vestir, pela escolha. Há que reinventar o prazer – no muito e no pouco, digo eu aos meus botões como desculpa de encaixe.
Vago de divisão em divisão com o intuito de ir fazer alguma coisa. A meio caminho esqueço-me do que essa coisa era. 1002 dias sem paredes e as que agora me confinam parecem confinar também a fluidez do meu raciocínio, da minha memória, do meu sentido prático.
“Já chegámos” diz o corpo. “Ainda não” responde a cabeça. Acordo de manhã cedo para ir passear a cadela, a Lola, mais conformada com estes dias sem viagens do que nós. Lá do seu alto, o castelo da cidade, Leiria, sobreposto aos edifícios brancos, sublinhado pela luz da manhã dos dias de sol do verão tardio em que se transformou este Outono. Tento abraçar a rotina, para nela conseguir estruturar o que vem pela frente. Tento organizar o tempo. Mas ele escapa e a rotina descoordena-se porque não sei ainda muito bem o que fazer com ela, ou com o tempo que a circunscreve. Não sei muito bem o que fazer com o futuro porque o futuro feito de um regresso a Londres, de vida rotineira subjugada a horários e ao espartilho das necessidades impostas pelos outros, realmente não encaixa de momento (embora, eventualmente, não se venha a tratar de um encaixe se não de uma necessidade).
Valem-nos os faróis das nossas vidas: as nossa famílias. Sem perguntas, sem cobranças. Não creio que as pudéssemos suportar nesta altura (certamente o intuem).O seu apoio, a sua generosidade, a sua paciência, a sua aceitação da nossa maneira de estar na vida – pouco dada a convenções. O estarem lá para nós. O serem quem são: parte da nossa vida, do nosso ADN…
………
Depois veio a vinda para o Alentejo. Um intervalo. Só até o livro da viagem estar escrito – dissemos a nós e dissemos aos outros. Mas um livro não se escreve em três ou quatro meses, pois não? Ou melhor, até se pode escrever se não houver vontade, ou necessidade, de lá deixar a alma, ou se quem o escreve é escritor com tudo na ponta da caneta. A mim ainda me falta ler muito e escrever ainda mais para poder emprestar o título.
O regresso para Londres vai sendo adiado. Já só voltaremos a pensar nisso no final do verão, se a sorte e as circunstâncias continuarem do nosso lado. Até lá, a vida vai acontecendo por aqui.
O Alentejo foi um feliz acaso. Uma casa, que agora é do meu pai, transformada em casa de férias, casa de fugas, e casa intervalo – que é o que ela é agora para nós.
Não é uma casa qualquer.
Chamamos-lhe o “monte” porque é o que se chamam às casas por aqui. Às casas perdidas nesta amplitude, no meio dos sobreiros, das oliveiras, das azinheiras… Mas não é um monte. Não reside soberana no cimo de um. Ao invés, já quase perto do fundo de um pequeno vale, no qual escorre um ribeiro que se some bem começando o verão, que aqui vem bem mais cedo, dizem os vizinhos. Nem tão pouco estamos isolados, que há vizinhos mesmo aqui ao lado, e vivemos, afinal, nas franjas de um pequeno e lúgubre lugarejo que nem vem no mapa (será que existe?).
O acaso é feliz pela conciliação do passado.
Teria eu uns dez, doze anos, quando os meus tios, ainda vivos, compraram este “monte”. Na mente de quem aqui passou os verões e umas quantas Pascoas da infância e da adolescência, o sítio era mágico. Manancial de brincadeiras, fugas, cantos e espaço que, no entanto, se viam reduzidos sob a força esmagadora do calor que nos tirava a vontade de fazer o que quer que fosse, incluindo ajudar a minha tia Carmita ou a minha avó Maria nas tarefas da casa, que hoje, até me dão alguma satisfação (um acertar de contas torcido, que o tempo também tem os seus desígnios). As paredes grossas e as janelas pequeninas eram a muralha de uma fortaleza que combatia o inimigo lancinante à espera para atacar lá fora: o calor indomável. Mas cá dentro, os discos do meu tio Gil e do meu primo Zé-Zé ouviam-se vezes sem conta, criando um outro mundo sonoro, que ainda cá parece ecoar, embora os discos já aqui não estejam. Nat King Cole, “quiçá…quiçá”, cantava a voz rebuçado, do homem negro da capa do disco, tão penteado e tão meigo, na sua forma macia de pronunciar o espanhol. E a Suzanne Vega, “my name is Luca, I live on the second flor”, letra pungente que não entendia, sobre uma criança que vivia no segundo andar e era abusada, deixando-me apenas embalar sem mais pensamentos, na melodia fácil e melancólica. Mas o mais repetido terá sido os Mingos e Samurais do Rui Veloso e o Carlos Té. Sabia-o de trás para a frente, tocado e cantado até à exaustão…”ó Zira, o que é que fizeste ao olhar, tinhas um azul safira Zira, não era preciso pintar…”. (ter sabido o que são os blues por alguém que os tocava e cantava em Português é uma coisa tão ao contrário como ficar alegre quando os ouvia). Bem se diz que as crianças são como esponjas, naquela altura não havia esquisitices, agora chamo-lhe o sentido ecléctico de garota, no mundo sonoro desse então, povoado com cassetes e cds, a alquimia do som picotado, o fascínio do disco negro onde não se podiam por os dedos ou as mãos, o ritual quase solene, o cuidado para não riscar o disco, a agulha que se baixava devagarinho…
Depois da morte dos meus tios, há já alguns anos, nunca pensei regressar. Dei o monte como perdido. Há coisas na vida que temos que deixar ir. O “monte” passou ao armário onde arrumei memórias de criança repletas de imagens saudosas dos meus tios e dos momentos felizes que me proporcionaram. O Alentejo, já não era mais meu.
Mas o regresso, percebo agora, foram dois: o regresso a casa dos Antípodas e o regresso ao monte do Alentejo, ao Monte das Casas Novas.
O nosso “agora” é este: Alentejo. Preenchido pelos dias passados à frente do computador – umas vezes com mais inspiração do que outras. Sentindo as folhas brancas no meu ecran enchendo ao ritmo marcado pelas batalhas do ego, pelo gosto ou (des)gosto, pela coordenação, ou falta dela, do que há para contar, da escolha das relevâncias, da capacidade de o fazer por escrito. Uma viagem em modo “replay” que faço nas recordações e reinterpretações do que foram os últimos três anos e do que tenho sido nos últimos 36. E é bom viver a vida assim, a sentir que há algo que merece ficar escrito.
É um “agora” que durará enquanto consigamos viver dos rendimentos limitados, mas suficientes, que o apartamento de Londres nos vai proporcionando, pelo menos até que o livro veja outros olhos e outros meios que não o ecran do meu computador. É um “agora” até que se possibilitem novas viagens. E é um “agora” até existir vontade de que assim permaneça.
Na qualidade provisória deste “agora”, aproveitamos o tempo que ainda nos damos ao luxo de viver a um ritmo que nos parece certo e comandado por nós. Se é esta a vida que queremos, uma vida mais distante das urbanidades? Vai parecendo que sim, por ser o seguimento lógico do que vivemos nas nossas viagens. E, pelo caminho (por este caminho), aproveitamos a boleia para realizar um velho sonho do Nuno, quase tão velho como o sonho de viajar que é sonho de viver da terra. Também se vive da terra a viajar, mas este é um viver mais visceral, é um entender a terra…Aqui, no monte que não é monte, tem sido o lugar ideal para o fazer. Há terra baldia que há muito não vê mãos que a cuidem e o Nuno viu nela a horta que agora lá cresce. Agarrou-se à enxada, à pá, à foice como se fossem a sua nova bicicleta, o seu novo meio de transporte, e vai plantando, semeando, regando, cuidando. E as coisas respondem com a linguagem do verde, ganham raízes, crescem, enchem-se de esperança e alimento. E é como se o Nuno ganhasse também raízes e esperança nascida do alento de mais um sonho que se quantifica, ganha matéria e nos alimenta.
A família e os amigos vão aparecendo também. Aqui, finalmente, fazemos uma viagem mais fácil de acompanhar. Se este “agora” é mais ausente em movimentos geográficos, não é menos feliz ou mais estático por assim ser e esta é uma viagem que facilmente compartimos.
As viagens não nos largam – dificilmente largarão. Víamos um filme noutro dia, Samsara, que evocava as paisagens dos Himalaias, as montanhas, que aqui não existem, a grandeza do cinzento granítico, do silêncio da neve. Que vontade tivemos de estar ali, de sentir a incerteza de cada dia em cima das bicicletas – a aventura do movimento. Mas aqui também há espaço, e dimensão, e movimento. É diferente, mas tudo o é. E há o coaxar das rãs ao final do dia, o “cucurucu” do casal de corujas que à noite sobrevoam o nosso telhado, os pássaros em sinfonias, pontilhando os dias, os galos com os seus cacarejos imperativos nas manhãs. As colinas e as flores. As cores vivas que delas emanam, agora que a Primavera se agarrou à terra e às coisas.
“Agora” é um intervalo. Um intervalo que saboreamos no seu aroma quente e confortável. O “depois” virá (como sempre vem), não sabemos em que forma, nem quando. Com outras viagens? – Certamente, pois o mapa preso à parede e o mapa preso dentro da nossa cabeça expande (e não o oposto), à medida que lhe calcorreamos as fronteiras, os desafios, as estradas, as pessoas …a eterna sereia. Até lá. Até essas outras viagens, cabe-me terminar a viagem que comecei em bicicleta e que pretendo encerrar com uma caneta (prosaicamente falando): a escrita do livro. E depois? Depois é um vórtice de incertezas, dentro do qual se encontram as possibilidades de tudo o que ainda está por acontecer nas nossas vidas.
Joana
Alentejo, Monte das Casas Novas