Despertares, o pesadelo que é a realidade
Acorda, acorda, isto é um pesadelo. Scooters, carros, pessoas, animais em todos os sentidos, dentro de mão, fora de mão. Buzinadelas, fumo de escape, cheiro a incenso, flores nos templos, casas que são templos, ruas estreitíssimas, oferendas nos passeios, lojas, e mais scooters, carros, pessoas animais, indo e vindo. Uma balbúrdia de veículos e seres. No meio, nós e as nossas bicicletas carregadas, tentando seguir uma lógica irracional como notas fora da pauta, só queríamos sair daquele caos e seguir, mas aquele caos era a rota. Tinha que acordar. Quando abrisse os olhos estaria na minha cama numa casa de hóspedes balinesa serena, daquelas rodeadas por estátuas de deuses hindus, jardins de paraíso…
Não, não era um sonho, e não, não ia acordar, já estava acordada. As palavras animadoras do Nuno dizendo que me habituasse porque estava na Ásia e que haveria disto e bem pior, confirmavam um facto irrevogável: ia ter que aprender a lidar com aquilo que possivelmente mais odeio em cicloturismo – trânsito caótico e, tinha que o fazer bem rápido.
A primeira meia hora de regresso à estrada em cima da bicicleta foi assustadora, sentia-me uma completa maçarica, só me faltava abanar a bicicleta tipo vara verde…pronto, confesso, fi-lo, quando do meu lado esquerdo veio uma moto em contra mão e no direito outra a ultrapassar, no meio – eu – desejando que um milagre acontecesse e a minha bicicleta ganhasse asas para não ser ensanduichada de forma tão ingloriosa. Mas coubemos todos no mesmo espaço reduto de estrada e fui relutantemente relaxando, ganhando confiança e percebendo que afinal até havia uma certa harmonia e lógica por detrás daquela desordem aparente.
Relaxa, respira fundo, dá ao pedal, e deixa-te ir, se ainda não estás esparrameirada no chão com uma mota em cima, então o que quer que estejas a fazer está bem feito, é só repetir e entrar na onda Zen, com que todos em Bali parecem levar a vida, sobretudo aqueles sobre rodas. Eis o meu novo mantra e o meu lema de vida para os próximos meses.
Choques culturais, choques civilizacionais
Ultrapassado o choque cultural, que foi grande, estava pronta a abraçar mais um país nesta nossa ciclodisseia – a Indonésia. Quando se voa de um sítio para o outro, sempre o é. Sair ao meio da tarde em Dili e aterrar ao fim dela em Bali, é como uma viagem no tempo e no espaço, para um planeta diferente.
Estas duas cidades que num passado não tão distante já partilharam o país, são tão desiguais, como são as religiões que nelas se pratica: cristianismo versus hinduísmo; grau de desenvolvimento económico: economia de subsistência num dos países mais pobres do Sudoeste Asiático versus economia de país emergente; densidade populacional: 70 habitantes por quilómetro quadrado versus 500 sem contar com os 2.5 milhões de turistas que visitam Bali por ano.
Dois reencontros: um esperado e outro não
E o “até já” foi mesmo “até já”. O mesito em que o Nuno e eu passámos separados voou, parecia que tínhamos acabado de nos abraçar na despedida em Baucau já nos estávamos a abraçar no nosso reencontro em Bali e a planear pedaladas, rotas como se o tempo não tivesse passado. Tão bom estar de volta nos braços do meu mestre caracoletas e no lombo da minha fiel burrica.
E Bali é propício a reencontros, sejam eles românticos, ou apenas bizarras coincidências. Depois de passarmos 4 dias em Kuta, o famoso centro turístico da ilha, onde resorts de luxo, alojamento barato, templos hindus, surfistas incipientes, discotecas megalómanas, spa´s relaxantes, putas que publicitam os seus serviços sentadas nas suas lambretas voadoras, coexistem. Partimos para o segundo centro turístico da ilha, Ubud, que é também o seu centro cultural.
Os 40 kms que separam estas duas cidades são unidas pelo trânsito que já descrevi e pelos estúdios, lojas, workshops e afins, de artistas balineses. Como se não fosse desafio suficiente ter que pedalar no meio de veículos em contramão um novo desafio surge, que é o de pedalar rodeado por objectos lindos, que te fazem sonhar que és um milionário esbanjador que compra uma casa só para a poder decorar com os artefactos em exposição pela estrada fora.
O povo Balinês tem criatividade inscrito no seu ADN e arte está em todo o lado revelando-se nos mais pequenos detalhes, desde os tabuleiros elaborados com folhas de palmeira recheados com flores de acácia, biscoitos, arroz, cigarros, rebuçados e espalhados pelos passeios, á frente das portas das casas e das lojas, dos templos, das escadarias, como ofertas aos deuses; às esculturas intrincadas de velhos troncos de árvore ou de pedras colossais com expressões de budas serenos, os quadros com mulheres etéreas ou cenas de arrozais e vida quotidianas da ilha; às inúmeras formas de dança e marionetas, que aproveitámos para ver; a arquitectura das casas que nunca se chega muito bem a perceber se são casas ou templos; a atenção ao detalhe onde parece que qualquer necessidade utilitária é usada como desculpa para criar algo belo.
Mas voltando ao assunto dos encontros e reencontros, em Ubud encontrámos o Nick Cave a atravessar a rua, vinha na nossa direcção e a sensação de familiaridade foi tal que tivemos que conter o impulso de o ir cumprimentar e perguntar como estava, como ia a vida, a mulher e os filhos e essas coisas. O Nick Cave – nem mais – o homem dos Bad Seeds a atravessar a mesma rua que nós em Bali.
E mais surpreendente foi encontrar o Jimu, o nosso amigo Novo Zelandês que alojámos em Londres há 3 anos atrás. O mesmo que voltámos a encontrar na Nova Zelândia em Fevereiro deste ano, e que por uma alegre coincidência, voltamos inesperadamente a ver aqui em Ubud. Ela há coisas do diabo, ou melhor, ele há coisas de Bali, só pode!
Vamos embora daqui, que já nos enganaram…
O ciclismo recomeçou depois de passarmos 4 dias culturais em Ubud. Voltar ao selim de uma bicicleta depois de quase um mês e meio de ausência e, depois de uma festa de rua regada com muita cerveja e por uma banda reggae local surpreendentemente boa, só podia resultar numa coisa: pedaladas dolorosas. Se a estes factores acrescentarmos 40 graus de temperatura com muita humidade e uma subida que durou o dia todo, então essas pedaladas tornam-se mesmo muito dolorosas.
Bali tem gente e casas por todo o lado, dá a sensação que se pedala por uma aldeia infinita, mas quanto mais se viaja para Norte mais as lojas de souvenirs e objectos turísticos vão sendo substituídas por mercearias, negócios locais, oficinas, pequenos templos e a paisagem torna-se mais seca. Sem o escrutínio do olhar estrangeiro as casas deixam de ter os rococós rendilhados da arquitectura hindu e passam a ser mais modestas. O lixo reaparece como que a compensar as ausências decorativas.
Quando chegámos a Penelokan na região de Kintamani ao fim do dia, uma aldeia turística com vistas sobre o Lago Batur dentro da cratera do vulcão com o mesmo nome (Gunung Batur), pernoitámos em casa de uma família que nos havia encontrado na estrada.
Como o homem disse que era ciclista não desconfiámos das suas intenções que nos pareceram genuínas. No entanto, quando chegámos à sua casa e, depois de termos sido levados aos nossos aposentos, apareceu um sobrinho, que era guia e se não queríamos subir ao vulcão que ele nos fazia um preço especial, veio também a prima que tinha um restaurante e que nos cozinhava comida barata e, a nossa anfitriã com um sorriso amarelo, sugeriu-nos que fizéssemos uma doação pela nossa estadia.
Que esquema! O homem que era ciclista nada, não apareceu. Cansados e sem vontade de voltar a subir os dois quilómetros até à aldeia à procura de quarto, decidimos ficar, mas boicotámos qualquer tentativa de negócio familiar e saímos com o nascer do sol no dia seguinte. Bem-vindos a Bali!
Fiquemo-nos com os sorrisos, que é das poucas coisas que te oferecem com abundância e sem esperarem as tuas rupias em troca.
Voltámos a descer as montanhas até à costa nordeste, onde pedalámos ao lado de praias de pedras negras, mar tranquilo e uma ou outra povoação mais turística. Com a volta dada, regressámos à costa sul passando por arrozais e quilómetros e quilómetros de resorts desenxabidos e trânsito caótico a tempo de apanhar o barco rumo a Sulawesi.