Três dias inesquecíveis no Pelni de Bali a Makassar
Comparado com a nossa travessia de barco de Benoa (Bali) a Makassar, a semana de ciclismo em Bali foi coisa de poucos acontecimentos. Aliás, se continuamos neste registo cada vez que apanhamos transportes públicos, o ciclismo por comparação vai ser a parte fácil da viagem.
Confesso que a imagem do “Barco do Amor” me passou pela cabeça quando decidimos apanhar a versão indonésia da companhia Pelni, em direcção a Makassar, a capital de Sulawesi, o nosso próximo destino neste país. Mas o que experienciámos durante três longos dias e duas longas noites, não poderia ter sido mais diferente. Talvez se possa até considerar o aspecto bastante setentónico da embarcação, numa tentativa de a comparar com o “Barco do Amor” mas é aí que qualquer semelhança começa e, termina.
Viajar de barco na Indonésia é incomparável e, qualquer ideia pré concebida que se possa ter sobre travessias marítimas será para sempre alterada. Não sabendo muito bem por onde começar a narrativa desta viagem náutica, começarei pelo princípio que é também a parte onde nos pareceu, pelo menos num contexto indonésio, que não haveria muito para relatar.
Subimos com as bicicletas para o Tilongkabila, um barco relativamente grande. Fizemos o reconhecimento do espaço – nos dois pisos principais havia camas, umas a seguir às outras, tipo dormitório militar; havia também uma sala de cinema, um ou dois “warungs” (restaurantes), quiosques para comprar bebidas e snacks. Para os que quisessem despender umas rupias a mais podiam viajar em primeira classe numa cabine individual; havia também uma mesquita para os devotos.
Serão refugiados? Será que o país entrou em guerra?
Não posso precisar o momento concreto em que tudo se alterou de forma irreversível. O Nuno veio despertar-me do torpor em que me encontrava, já a noite tinha caído assinalada com a última reza do dia a soar a alto e bom som dos altifalantes sobre as nossas cabeças.
“Tens que vir ver isto, é inacreditável a quantidade de gente que está a entrar para o navio! Que confusão está no porto. Que loucura!”
Serão refugiados? Será que o país entrou em guerra e não demos conta? Será que houve uma catástrofe súbita? Na feliz ausência de tiros, sangue, choradeira e pânico, percebi que aquele mar de gente estava a subir ao Tilongkabila com a mesma intenção que nós: a de viajar entre ilhas da forma económica. Onde é que esta gente e a mercadoria que traziam ia caber foi a minha primeira preocupação, mas vendo que o chão livre à nossa volta se atapetava de seres e pacotes, olhei para os barcos salva vidas e pensei, se a coisa afunda não é uma questão de se são suficientes, é quantos sobreviveremos depois de nos atropelarmos a tentar escapar? Pondo em hipótese que seriamos menos de metade, com estimativas positivas, haveria barcos suficientes para os sobreviventes. Estava tudo sobre controlo afinal.
Espaço pessoal é conceito que não existe por aqui, e mesmo que existisse, impossível de por em prática dadas as circunstâncias. O número de pessoas transportadas num barco indonésio é ilimitada, é como aqueles concursos de quantos se consegue enfiar dentro de um Mini, só não vale é irem pendurados fora do barco, porque se vai dentro, como e onde quer que seja, então vai bem! Valeram-nos as nossas redes para nos proporcionar a sensação ilusória de espaço e para marcar o nosso território que ninguém ousou ocupar, ainda há vantagens em ser-se estranho em terra alheia, embora um passageiro sonolento se tenha açambarcado do colchão Thermarest do Nuno.
Pelni, onde o impensável é a realidade
Mas a verdade é que se partilhar um espaço tão confinado com milhares de estranhos é algo que testa a tua capacidade de adaptação até aos limites, então o que dizer de quando se é forçado a partilhar um espaço ainda mais confinado como uma casa de banho? A ideia de festival vem à cabeça, mas isto é outra coisa, estás sóbrio!
Comecemos pelo pesadelo logístico que era chegar às casas de banho (as mais próximas estavam localizadas dois pisos abaixo do piso onde nos encontrávamos). Procrastinava-se a ida à casa-de-banho até ao último minuto (um erro, mas enfim). Enfrentava-se o mar de gente, fazendo grandes esforços para não se pisarem as pernas, os braços, as cabeças e os troncos dos demais viajantes, isto tudo com o suave balançar do navio.
De seguida entrava-se na embarcação onde o cheiro, o fumo do tabaco e o calor eram estonteantes. Percorria-se o labirinto de corredores e escadas onde estavam aglomerado mais um sem número de viajantes e onde, no pouco espaço que sobrava se vendiam todo o tipo de bens, vivos e mortos, os mais notáveis sendo galinhas, os mais odoríferos – os inúmeros sacos de cebolas e alhos que depois de umas horas dentro do navio estavam já meios cozinhados e a libertar os odores correspondentes.
Mas abrir a porta da casa de banho, ó isso era por si só uma experiência daquelas em que se saía fora do corpo. Pelo menos era essa a vontade – dizer ao corpo para ir lá fazer as suas necessidades sozinho e deixar a alma cá fora à espera para não ter que se sentir o calor pegajoso e o cheiro que dali saiam. Ultrapassados todos estes desafios, entrava-se na dita casa de banho onde havia compartimentos para duche, e dois ou três para aliviar as necessidades sólidas e líquidas, uns ao lado dos outros. As sanitas eram daquelas em que a pessoa tinha que se agachar, mas as deste navio em particular obrigavam a pessoa a trepar a uma espécie de plataforma metálica com duas superfícies onde se encaixavam os pés.
Na minha primeira ida à casa de banho aprendi um facto interessante: os pés são a parte menos importante do corpo. Como é que se explica o que vi – a senhora que ia à minha frente tirou os chinelos e deixou-os à porta para se aliviar descalça na dita plataforma de agache, que sabe quem a visitou, que estava suja. Eu se tivesse umas galochas para ir à pesca era o que tinha utilizado. Mas a senhora não estava minimamente preocupada com possíveis micoses ou tão puri simplesmente em pisar a porcaria dos outros. Quando me reencontrei com o Nuno e partilhei o ocorrido, ele contou-me a experiência dele, que era ainda mais bizarra.
“ Isso não é nada. Na casa de banho dos homens chegou lá um tipo que não lhe apeteceu esperar e mijou ali mesmo no canto à nossa frente e foi-se embora como se fosse a coisa mais normal do mundo. E havia uns quantos homens descalços!”
Na manhã do segundo dia decidi tomar um duche. Chego à casa de banho, passado o mar de gente, o cheiro e o calor dos corredores. O chão já tinha uma camada fina de água que parecia uma mini piscina de ondas a ir e vir à medida que o barco balançava. Pus-me no canto em bicos dos pés à espera que a senhora que estava a tomar banho terminasse e a tentar evitar que aquela água não me tocasse, dado que estava de chinelos.
Entretanto chega uma mulher com uma criança nos braços, mete-a no chão e ali mesmo para o chão sai um esguicho de vómito vindo da boca da criança. A criancinha, devo acrescentar, foi poisada sobre a água descalça, mas isso já não constituiu surpresa. Eu fiquei o tempo restante até ser a minha vez de entrar no duche a olhar a poça de vomitado a viajar chão acima e chão abaixo e, tentando evitar que a mesma me chegasse perto dos pés.
Chegada a minha vez de entrar para o chuveiro, que passou a minha inspecção pouco meticulosa, tomei um duche o mais rápido possível com a sensação de que alguém fazia um real número oito no cubículo do lado, cheirava bastante mal. Estou eu a limpar o corpo quando olho para o meu lado direito e os meus olhos se deparam com O real numero oito, agachado num dos cantos. Era daí que provinha o mau cheiro. Raios partissem, este pessoal ou era seriamente alternativo (leia-se porco) ou então, disléxico. Saí dali a sentir que o duche tinha sido um desperdício de tempo. Agora para além de uma micose causada por vómito alheio, corria também o risco de apanhar cólera, ou coisa pior.
Na minha última ida à casa de banho abri o cubículo das necessidades e deparei-me com um puto a tomar banho em cima da sanita de agache usando a mangueira que serve de autoclismo, como chuveiro. Esperei que a criança saísse da retrete e desfrutei o facto de pelo menos poder usar o compartimento a cheirar a champô em vez de dejectos humanos.
Na sua última ida à casa de banho o Nuno contou que tinha visto dois homens nus a tomarem duche juntos. Os standards do aceitável reduziram consideravelmente nestes três dias de viagem, se de vez em quando nos caía lixo ou beatas de cigarro em cima ou se escapássemos por poucos centímetros a escarretas voadoras já tudo ganhava uma normalidade aceitável.
Quando finalmente conseguimos remover-nos e às bicicletas do navio, parecia que tínhamos saído do purgatório. Estávamos a ser julgados pelo pecado de sermos forretas e, como os milhares de indonésios com recursos limitados, nos sujeitarmos às formas pouco confortáveis e desumanas que existem no mundo para transportar pessoas. Mas sobretudo por sentirmos de forma tão marcante o facto de termos nascido no seio de uma sociedade onde o que é tabu, o que é higiénico, o que é aceitável, é consideravelmente diferente.
O engraçado de tudo isto é que em menos de uma semana regressaremos para mais, desta vez de Pare-Pare a Nunukan, noutra ilha indonésia, Kalimatan no Borneo Indonésio. Confesso que saber que vou ter de passar mais três dias dentro de um navio indonésio me causa alguma ansiedade.