Andam aos tiros!
A noite amplia tudo: os sons, a escuridão, a imaginação, o medo…
Depois de nove noites a montar acampamento no limiar da noite, quando o dia já quase não o era, procurando no espaço incerto que mal se via, por um canto liso, escondido e abrigado, decidimos montar acampamento a meio da tarde perto da aldeia de Kadish.
À beira da estrada havia a já previsível área de improviso de piquenique, com os restos do dia passado em comunhão familiar, entre amigos ou entre ambos, despojados na erva ainda amarelada do frio do inverno e a composição feita de restos de fogueira, embalagens de plástico, garrafas de vidro (quantas já estilhaçadas aguardando um pneu ou um pé menos precavido), sacos de plástico presos a mastros improvisados nos ramos do que era verde ou castanho, agora com as cores de algo artificial desfraldando nas suas hastes – gambiarras ao consumo e aos seus restos incómodos, marcando claramente a relação, que já se vê complicada, destas gentes com o seu lixo, que não é propriamente biodegradável, nem que desaparecerá tão cedo por meio de forças milagrosas. Avançámos ribanceira abaixo até já não haver lixo e, até já não haver forma de se chegar ali de carro, escondidos da estrada e de potenciais piqueniqueiros tardios, pelo desnível e a vegetação alta.
A rotina fez-se do que se fazem estes dias na estrada: montar a tenda, cozinhar o jantar e ir para a cama, que a chegada da noite é a deixa que já são horas para ir dormir (o corpo e a falta de melhor que fazer também o pediam).
Que horas seriam é difícil dizer. Primeiro acordámos – nos acampamentos improvisados o sono é geralmente leve -, com o som crepitante dos pneus de um carro a restolhar a erva seca no patamar acessível da beira da estrada, não muito longe das nossas cabeças. O som do motor e dos pneus deixou de se ouvir e foi substituído pelo som de música, que chegava até aos nossos ouvidos sob o ribombar da batida e, pelo som das portas que se abriram e das vozes que delas saiam.
Quem eram? O que faziam ali no descampado aquelas horas da madrugada?
– Certamente o que qualquer jovem com um carro, uns quantos amigos e meia dúzia de cervejas faria em qualquer parte do mundo – ir para um lugar tranquilo para estar à conversa a debitar trivialidades. Mas, na cabeça de quem desperta estremunhado a meio da noite, num país, que para todos os efeitos, está em guerra civil, certamente, algo mais sinistro e menos óbvio.
Debatemos os cenários em voz baixa. O Nuno ofereceu explicações mais tranquilizadoras do que as minhas, mas nem por isso mais reconfortantes, dadas as circunstâncias. O cansaço levou a melhor e conseguimos voltar a adormecer com o som das vozes e da batida no embalo. Mas, voltámos a ser acordados. Desta vez, com o som aterrorizante de tiros de uma metralhadora que durou tempo suficiente para consideramos sair dali a correr e, depois, para prestarmos atenção e perceber que, estranhamente, aquilo era um som gravado e não a coisa real (menos mal, mas igualmente preocupante). Mais uma rajada de tiros, as portas que se fecharam, o motor que se voltou a ligar, as luzes que se acenderam e o silêncio que regressou – o som legítimo da noite-, trazendo consigo o sono e a imagem imaginada de um “piso de cima” finalmente tranquilo e sem vizinhança.
O que tinha sido aquilo e a que propósito, só quem estava naquele carro saberá (se souber), mas num país que vive no limbo da guerra, acabar uma noite com amigos a ouvir o som funesto de uma metralhadora a esvaziar balas, talvez seja uma espécie de exorcismo. Para nós, campistas de local incerto e de parte alguma, ficou-nos a lembrança e o susto – que já passou, e o alívio de saber que dali a dois dias, por via das dúvidas, estávamos de saída.
Ó senhor polícia…
Pela segunda vez o polícia à paisana perguntou de onde era e, pela segunda vez eu lhe respondi que era de Portugal.
“Ah sim, e isto?” Ergueu o passaporte aberto na página que tinha o visto do Irão, com o autocolante do visto a ocupar a página inteira, possivelmente semelhante à primeira página de um passaporte iraniano.
“Perdoe-me”…tirei o passaporte das mãos do polícia, desfolhei-o até estar na página principal que marquei antes de explicar da forma mais simples possível: – “Aqui, passaporte. Aqui, visto do Irão…”
…ah, estou a ver – Portugal!
(Se lhe tivesse mostrado o cartão da piscina ou dos pontos do “Pingo Doce”, não teria pestanejado!)
Um passaporte é um documento relativamente uniforme e, se um polícia numa parte sensível do mundo tem dificuldades em avaliar esta forma de identificação humana, resta-nos esperar que possíveis malfeitores tenham mais que fazer à vida do que andar pelas montanhas remotas do norte do país, porque se for pela presença numerosa militar e policial combinadas com a sua perspicácia e inteligência, digo aqui sem rodeios que a porta está, por assim dizer, aberta e escancarada a qualquer mal intencionado que queira ir malinar para aqueles lados.
Mas a coisa foi evoluindo. Quando entrámos no país vindos do Irão, pela fronteira de Penjwin e, talvez por termos optado por estradas não muito usadas por outros ciclo deambulantes, a desconfiança era evidente e frisada no olhar das gentes e, sobretudo, no dos muitos polícias à paisana (aos quais reciprocávamos a desconfiança exigindo identificação – passaporte nosso não passa assim para as mãos de estranhos ), que nos obrigavam a parar a marcha, sem saberem muito bem o que perguntar ou que fazer connosco, (ou com o nosso passaporte, como já se viu) estranhando quando lhes dizíamos que éramos turistas a viajar de bicicleta pelo mundo e, particularmente, de passagem por ali.
Eventualmente as estradas acabaram por trazer-nos até paragens mais habituadas a caras estrangeiras, embora desconfie que não sejam muitas porque o Norte do Iraque não deve constar na lista de “áreas do mundo a não perder” de grande parte dos viajantes. O assédio deixou de ser o pedido de passaporte e passou a ser a captação fotográfica do momento alto do dia: a passagem de dois ciclovagabundos pelo posto de controle policial e militar.
Com sinceridade, a uma média de três a quatro paragens por dia a nossa paciência andava a roçar o esgotado. Os telemóveis dos policias e militares do Curdistão Iraquiano devem transbordar com fotos de caras de sorrisos amarelos, ou mesmo, com a falta deles. Mas o que é que esperávamos? Esta ainda é uma parte oficialmente segura do país – as formalidades têm que ser cumpridas, mesmo que seja de forma e eficácia questionáveis.
O Iraque, ou a nossa opção de fuga ao Inverno
O Iraque não foi a nossa primeira escolha de rota, mas o Inverno frio e branco que nos aguardava no Azerbaijão, Arménia e Georgia, ou picos nevados das montanhas Ararat, a caminho da Turquia, fizeram com que tivéssemos de adiar a nossa passagem por estes países para outra ocasião e considerar a opção do Curdistão Iraquiano como a mais lógica.
Eu digo tivemos, mas a realidade é outra: teve – o Nuno teve que reconsiderar a rota.
O nosso equilíbrio como parelha viajante é simples mas funciona, como geralmente costuma acontecer com as coisas simples. Demorou alguns meses a chegar a ela mas chegámos. Concluímos que só podia haver um de nós a delinear rotas. Caso contrário, andaríamos certamente perdidos nalguma montanha na direcção oposta ao nosso destino de chegada. Dividimos tarefas, dando ouvidos ao velho dizer popular que comanda que cada macaco ande no seu galho, ou no nosso caso, na sua bicicleta, e com pompa e circunstância, com auto-promoções, títulos e tudo, distribuímos tarefas: eu, como “Cozinha e Haveres Manager” e o Nuno, como “Rotas e Reparações Manager”. Devo acrescentar que o Nuno faz um excelente trabalho na sua área de gestão, sobretudo levando em conta que tem em mãos lidar com uma “diva” que se recusa a pedalar estradas sem bermas e com mais de três camiões por minuto e, que se congratula por em dois anos e tal tal de viagem ciclonauta já decorridos, ainda não ter remendado um furo (também só tive três e não carrego a caixa das ferramentas e dos remendos – excelente desculpa, se me permitem), e que, aparentemente, não sabe pôr mudanças (eu saber sei, a bike é que nunca tem as mudanças que eu preciso à mão…ah, ninguém me entende!).
O Iraque é um país complicado. A guerra e o conflito armado fazem parte da realidade presente deste pedaço de terra, berço de civilizações, a Mesopotâmia que a história reza e glorifica. No seu Norte, nas suas montanhas, os Curdos conseguiram, após anos lavados em lutas sangrentas e venenosas, assegurar o seu canto de paz e criar uma região autónoma, uma espécie de país “de facto”… Aqui não se fala em Iraque. Na mente e nos corações dos curdos que aqui vivem – isto é o Curdistão. E para quem lá passa, acaba-se por aceitar o controle militar apertado e os “check-points”, como facto de que a paz ali é frugal e a guerra está muito próxima fisicamente e que pode transbordar a qualquer instante. A paz ali é uma linha, uma faixa estreita. Num lado da linha há bombas que estilhaçam vidas, corrupção rampante e a incerteza e um país em desgoverno. No outro, uma nação que não o é, unida nos intuitos da paz, do crescimento económico e da esperança. Já lá vão mais de trinta anos, trinta anos de paz e de crescimento que se vê nos “SUVs”, nas casas novas, nas mercearias recheadas com produtos vindos da vizinha Turquia. E há petróleo nestas montanhas…muito.
Para nós, que andámos fugidos das estradas artérias que ligam o país, esquecidos num mundo de montanhas, um mundo à parte, onde o que nos ligava à realidade eram as muitas árvores despidas à espera do vestido da primavera; das silhuetas das formas geológicas a metamorfosear-se em massa escura no final dos dias,(algumas ainda vestidas de branco); do ocasional pastor que nos acenava ou das crianças que nos acompanhavam as pedaladas à saída das suas aldeias, como pequenos guardas – sentimos que, no Curdistão, mal chegámos a passar.
Já estamos de saída e aprendemos uma lição
Com 15 dias no visto, 500 quilómetros para percorrer e estradas tão desniveladas que nos era impossível determinar se no final do dia teríamos 60 ou 30 quilómetros feitos, pedalámos o país com a cabeça baixa, sentido de missão e como se o único que houvesse ali para fazer fosse: sair.
No penúltimo dia, depois de termos ficado no dia anterior presos à tenda por uma chuvada forte…passámos na manhã seguinte por uma pequena povoação, em busca de mantimentos, parcos pela paragem inesperada e forçada do dia anterior. Não havendo muito que se rabiscasse na única mercearia que encontrámos, íamos para pagar um pacote de bolachas, quando o senhor nos convidou para beber um chá a sua casa. Na sala de visitas onde nos deixou à espera, as paredes compunham-se por tantos sofás quantos os que cabiam no seu encosto e, da televisão imperial, de “ecran” liso e grande, de onde saiam imagens de um filme emocional apelando à nacionalidade e unidade Curda, com uma música potente e “cheesy” onde crianças e adultos acabavam em grande apoteose a cantar de mãos dadas. Ah – as pérolas da propaganda política, até eu me senti Curda ao ver aquilo.
Na verdade o chá era afinal o pequeno almoço, servido numa mesa a transbordar de comida: ovos estrelados, salsichas, frutos em calda, queijo, azeitonas, mel, tomates, cenouras, frutos secos, compotas, pão…não nos coube nem metade no bucho, mas com a fome com estávamos, foi bom tentar.
Fomos depois convidados a ir até à outra sala, a sala informal da família, revestida por colchões e almofadas, no centro da qual havia uma salamandra, que os dias que ainda eram frios. À conversa quebrada do costume seguiu-se o convite que ficássemos, mas como estávamos preocupados com a distância da fronteira e de algum imprevisto, recusámos. Foi a muito custo que nos deixaram partir. Nos nossos alforges seguiu um saco de nozes, figos e amêndoas, do pomar da família e três pacotes de cigarros (para o Nuno) da mercearia.
No primeiro dia que entrámos no país, tínhamos sido parados por um carro, do qual saiu um homem com as mãos cheias de pepinos – eram para nós. Conversa para cá, conversa para lá e, por alguma razão que nos escapou (ou talvez não) o senhor ainda achou por bem oferecer-nos um maço de sabonetes – seis sabonetes com cheiro a maçã. Depois coroou a partida com acenos, mais sorrisos e desejos de que tivéssemos uma boa viagem e, partiu.
Nos dias que se seguiram dedicá-mo-nos de corpo e alma à nossa correria montanha abaixo, montanha acima. Cabeça baixa e mente tão assente na missão de atravessar o país a tempo que fomos declinando os convites para chá (que certamente se transformariam em convites para ficar). Sem sabermos, o país foi-nos passando, de certo modo, ao lado.
Como fazem aqueles que se põem a dar voltas ao mundo em correrias? Os que contam quilómetros nas casas das centenas, como se fossem calorias diárias imprescindíveis, a comer países aos dias? Para viajar é preciso tempo…é preciso parar. Como é que as coisas e as pessoas se podem entranhar em nós se não criamos espaço temporal para elas?
Foi isso que nos faltou na nossa passagem no Iraque, quando íamos tão empenhados no nosso esforço físico e no nosso cansaço com controles policiais, acampamentos tardios, as subidas e a contar os dias que nos restavam no passaporte que nos esquecemos de erguer a cabeça e ver quem nos sorria, quem nos convidava para chá, quem queria partilhar a paz e a esperança daquele país que não é, connosco…
Na Turquia entraríamos com um selo de três meses, tempo mais do que suficiente para pedalar sem pressas e sentir nas entranhas dos nossos sentidos o que este país tem para nos oferecer…mais na próxima história, que são histórias, das nossas estradas…