O conto do vigário
A minha câmara? Roubaram a minha câmara!
A voz tem uma cadência muito própria quando proferimos as frases que oficializam o que não queremos que tenha acabado de acontecer. Começa com um tom alto – quase imperativo -no resíduo que ainda existe de esperança. Acedendo ao que aconteceu no curto espaço de tempo entre palavras (tentando acreditar que tudo não passou de um erro de cálculo ou uma possibilidade mal avaliada) e enquanto o cérebro compõe e termina a frase, rebobinam-se os acontecimentos que levaram ao acontecido, numa espécie de “rewind” mental como quando não se percebe o que aconteceu no filme e tem que se voltar atrás… e é então que a esperança morre nas imagens que confirmam as piores expectativas. O tom, esse, deflecte e transforma-se no tom do desalento, no tom da esperança ida, no tom dos factos inalteráveis, no tom da derrota.
A máquina fotográfica do Nuno foi-se nas mãos de um larápio que nos pareceu ser o ajudante do condutor do autocarro que julgámos querer ajudar-nos com as nossas bagagens, no autocarro que apanhámos de Cantão para Zuhai na fronteira com Macau. Mas a desatenção foi nossa, sobretudo a de nos sentirmos seguros na ilusão de que a gente deste país era toda gente boa – vínhamos mal habituados…Em cidade grande de caras anónimas os sorrisos não são gratuitos e as regras do jogo são outras.
Tudo o que fizemos depois da constatação de que a máquina do Nuno tinha sido roubada, foi feito apenas para almofadar o impacto do acontecido. Tínhamos caído no conto do vigário. Nada do que fizéssemos alteraria esse estado de coisas, nem serviria para aliviar o peso do orgulho ferido e da decepção, ou faria com que a máquina reaparecesse. Chamou-se a polícia, apresentou-se queixa, desconfiou-se do condutor e do seu ajudante que afinal não o era, mas a máquina, essa sim – já era. O papel da denúncia, que recebemos depois de um inquérito intensivo, serviu apenas como recibo da nossa desatenção e puerilidade.
Um desvio para sul, a caminho de Macau
Saímos de Qiaotou, no Norte de Yunnan, onde deixámos as bicicletas e as bagagens, numa mini-van local que nos levou aos soluços, até Lijian. Lijian, património da humanidade, é uma Disneylandia feita do que sobrou de uma cidade antiga. Penhada de turistas e de lojas de souvenirs, tudo ali cheira a novo e a reconstruido, a vida não parece real mas sim uma espécie de falsificação do tempo, uma beleza superficial criada nas expectativas do que as massas de visitantes procuram e escondendo a verdadeira beleza feita da vida que pulsa numa cidade que, para quem ali vive, decorre nos arredores, nas franjas do que a UNESCO não considerou de interesse para a humanidade.
Nessa mesma noite apanhávamos um comboio para Kunming para depois apanharmos outro para Cantão. Após três dias, mais uma viagem de autocarro, uma travessia de fronteira e outro carimbo no passaporte, entrávamos em Macau.
A luz que nos recebeu era um lusco-fusco que iluminava as ruas e as calçadas e dava a ilusão de estarmos na baixa lisboeta ao final da tarde. Fomos para a Taberna de Macau esperar o Zé Maria – amigo do nosso amigo Fernando de Timor – que sem nos conhecer de lado nenhum, aceitou dar-nos tecto pelo que seriam, segundo as nossas expectativas, dois ou três dias.
A Taberna de Macau é um pequeno bar Australiano – Brasileiro que revela no seu nome e menu a prevalência daqueles que parecem frequentá-lo – Portugueses, na sua maioria jovens de pele dourada do sol do oriente, que ao final do dia se refrescam dos calores húmidos daquelas latitudes com uma Super-Bock na mão, enquanto falam do seu dia no trabalho ou das suas férias recentes no “Algarve” feito das proximidades dos destinos do Sudoeste Asiático, ali mesmo ao lado.
Caprichos com efeito dominó
A nossa ida a Macau, sobretudo, quando a agulha da bússola para a nossa rota na China apontava na direcção oposta, deveu-se em grande parte a um capricho do Nuno, que acabou por ter um impacto irreversível, tal como efeito dominó, nos nossos planos de viagem. Tendo partido para esta viagem com a plena noção de que não teria páginas suficientes no seu passaporte, preferiu não fazer um passaporte novo antes de partir e deixar o acaso e a aventura ponderarem sobretudo, de que país viria o seu novo passaporte (já tinha um emitido pelo consulado de Atenas, outro pelo de Kingston na Jamaica). Depois da ida ao consulado em Macau as ondas altas da maré de azares que assolavam a sua praia e, por consequência, a nossa, trouxeram-nos as notícias de que sem cartão de cidadão não haveria passaporte. Não havia – no seu lugar – um bilhete de identidade caducado. Seriam pelo menos duas semanas até chegar o cartão do cidadão, só então, se poderia tratar do passaporte, que viria, na melhor das hipóteses, uma semana depois. Três semanas à espera, e sem garantias, na que era uma das cidades mais caras da viagem. Se se pode chamar azar a esta sucessão de acontecimentos, também se pode dizer que, em grande parte, foi auto infligido.
O que também viemos a saber uns dias mais tarde foi que enquanto esperávamos pelo cartão de cidadão do Nuno, as regras dos vistos para a China mudaram, mesmo em Hong Kong, conhecido no mundo dos viajantes como o sítio mais leniente para obter vistos de longa duração. Nas novas regras conseguiríamos um mês, com a possibilidade de estender por mais um. A sentença estava lida: fazer toda a Eurásia em bicicleta mais não era agora do que um sonho derrubado. Tínhamos que planear a nossa rota de forma a encurtar os 3 mil e tal quilómetros que tínhamos ainda para fazer na China.
Os dias na Pensão Zé Maria são sempre uma alegria
Do piano desafinado, cujas teclas o Zé Maria parecia acariciar com os seus dedos longos, saia uma melodia de beleza inusitada com salpicos de Yann Tiersen e de Michael Nyman – um hibrido que nos trazia imagens sobrepostas dos filmes Amelie e o Piano. A singularidade do que ouvíamos, mesmo vindo de um piano ao qual pareciam faltar teclas, deixou-nos desarmados – “what dreams were” foi o nome que o Zé deu à sua composição musical. E os sonhos também são estas coisas: amizades e melodias surpreendentemente inesperadas.
Há calor e melancolia em igual dose nos olhos deste rapaz de metro e muito de altura. E há também o feitio fácil de quem não complica as partilhas, a alegria da alma boémia, o desafio de uma mente aguçada de quem gosta de entender o que o rodeia, a graça espontânea do músico auto inventado, a excentricidade q.b e a assertividade de um homem que vive das justiças e das advocacias – assim é o nosso amigo Zé Maria – um homem do ocidente dividido a oriente. Ou talvez o contrário. Ou talvez nada disto. Simplesmente um novo e grande amigo!
Na primeira noite, muito depois das primeiras Super-Bock, do jantar de bacalhau no Afonso III e uns bons dedos de conversa, o Zé Maria deixou-nos à vontade para ficarmos na sua casa o tempo que fosse necessário – ele, mais do que nós – tinha uma noção realista da situação em que nos encontrávamos. Assim, e sem mais demoras, instalámos assento no futon da sua sala – entre os livros, o piano e a mesa de jantar – e as quase três semanas passaram velozes entre risadas e tertúlias animadas, jantaradas com os amigos, sopas de fitas (noodles) nos bairros chineses da cidade, sessões cinéfilas caseiras quando o sono não vinha e, muita, muita Super-Bock, que o calor do verão oriental a isso obrigava!
Hong Kong das duas selvas
Em Hong Kong há tudo o que se espera, e também, o que não se espera. Depois de uma semana em Macau, fizemos a travessia de cerca de uma hora, num ferry que navegou o mar da China sob o aviso de furacão (uma espécie de volta no carrossel com o botão do stop avariado). Chegados a terra estática, por entre ventanias e nuvens carregadas, atravessámos as passagens peatonais aéreas que seguiam por cima das vias rápidas, evitando a intersecção dos seres motorizados com os seres andantes. Em dia feriado, debaixo do tecto protector destas avenidas voadoras, “piqueniqueavam-se” bandos de filipinas sentadas em caixas de cartão espalmado. Como uma composição do Matisse, linhas de corpos de mulheres estendidas a dormir a sesta, a jogar às cartas, a ouvir musicas de amor, a por a conversa em dia – os decibéis das suas vozes elevados à capacidade máxima das suas tagarelices agudas e nasaladas, cheias de alegria e liberdade, num intervalo curto das suas vidas, que de outra forma são feitas de servilidades, limpezas e outras rotinas próximas da escravatura moderna.
Quarto barato nesta cidade onde as saídas dos metros dão para centros comerciais, e onde as vertigens surgem de se olhar para cima, encontrou-se no décimo quinto andar de um bloco de apartamentos de nome pomposo – Mirador Mansions . Noutra parte do mundo, o espaço que nos ofereceram como quarto seria utilizado para montar um guarda-fatos – era tão pequeno que apenas cabia a cama – vimo-nos obrigados a orquestrar uma coreografia bem coordenada na necessidade de coabitação num espaço tão ínfimo (valeu-nos a prática que já levamos das muitas noites passadas na tenda).
Mas no meio daquela selva de betão, de viadutos, de vidros espelhados, de lojas e gente, há também outra selva – a verdadeira, que aparece e desaparece por entre os arranha-céus e as encostas inclinadas que impossibilitam a construção. E assim, ao contrário das nossas expectativas, demos connosco a passear no topo dos cerros com vistas para baías recatadas de praias que servem como destino para escapadas urbanas e também para testemunhar que para haver alguma sanidade no progresso é obrigatório preservar recantos naturais.
Aproveitámos a nossa passagem por Hong Kong para encontrar uma máquina fotográfica para o Nuno e comprar “casa” nova. Foram dias vividos no meio das luzes cintilantes da noite, dos arranha céus, no expoente máximo do mundo do consumo, no extremo oposto, da vida que buscamos nesta viagem. Em paisagens como estas, cada vez mais nos sentimos como pontos fora da pintura.
Esticar os dias, a nossa despedida de Macau com direito a Fado
Regressámos a Macau, às suas calçadas azuis e brancas, às suas pracetas de bancos verdes sob a sombra de árvores perfumadas, às suas igrejas de interiores guardados por santos, aos céus interrompidos com os perfis megalomaníacos das arquitecturas dos casinos, ao quadriculado de janelas enquadrando ares condicionados ferrugentos, aos becos de iguarias da China, às pontes que ligam as ilhas e que parecem montanhas russas sob o mar, aos nossos amigos e à “nossa” casa. Em Macau tudo nos pareceu estranhamente calmo e familiar – a nossa pequena aldeia Lusa a Oriente.
Entre a chegada do cartão do cidadão e o passaporte do Nuno passou uma semana que se esticou em mais uns dias. O desafio de ficar lançou-se ao ar numa noite bem regada e na manhã seguinte era impossível voltar atrás – íamos perder um reencontro, dos muitos que esta viagem nos vai proporcionando, com a chegada do Fernando, o amigo de Timor, e o concerto da Mariza, para o qual o Zé Maria já tinha comprado bilhetes. A última noite que passámos juntos, recordo-a como das mais felizes desta viagem, comandada pela voz imperial da Mariza, quando cantou “ó gente da minha terra” e veio a lagrimita da emoção – feita dos contratempos que se reciclam em amizades, dos momentos únicos e da felicidade e o privilégio de poder plantar amigos assim pelo mundo fora.
Depois os fados foram outros: na mesa redonda forrada a plástico do Cais 22, onde partilhámos pratos com sabores da China de Macau, sentados em cadeiras recuperadas de algum hotel fechado, ali ficámos a debater palermices com um grupo de amigos, conhecidos, viajantes e gente do mundo e a consumir Tsigntaos a penalti (o preço a pagar para quem perdia na rodada do jogo de dados). Depois, sem darmos por isso, a noite fez-se dia e as despedidas inevitáveis. Macau deixava já saudades.
Regressámos por breves dias a Hong Kong, onde celebrámos mais um aniversário – o meu trigésimo quinto – com um piquenique romântico à beira mar com cardápio de sushi e espumante espanhol, que o Nuno organizou em segredo. Na ilha de Lamma, a 30 minutos de Hong Kong, encontrámos um quarto mais espaçoso com vistas para o mar e por ali ficámos à espera do novo visto. De visto na mão e, sem mais contratempos, seguimos de comboio e autocarro de regresso às nossas velhas companheiras que nos levariam até à China do Tibete.