Não entendemos…
A senhora idosa de sorriso desdentado, guardiã da pensão em Dien Bien Phu e, por extensão dos nossos bens mais preciosos – as nossas bikes – acenou, reconhecendo-nos quando atravessámos a rua na sua direcção. Há três semanas tínhamos deixado as nossas companheiras e alforges ao seu cuidado e é sempre um alívio regressar e ver que à parte de algum pó, estava tudo exactamente como e onde tínhamos deixado.
Nos seus cabelos longos e prateados enrolava-se um adorno preto, como um gato enroscado a dormir entre meadas de lã. As rugas, linhas do mapa dos percursos da sua vida, acentuavam a sua feição bonita e serena e, apesar da idade, os olhos brilhavam como faróis que ainda iluminam muitos barcos. Convidou-nos a sentar no sofá de madeira avermelhada rendilhada que havia na recepção, de seguida, encheu dois copos pequenos de vidro com chá forte e amargo e apontou para a boca a fazer sinal para que bebêssemos. Sentou-se depois na ponta do sofá que estava à nossa frente, inclinou o corpo na nossa direcção e começou a falar como se fossemos dois familiares que não via há muito e quisesse saber todas a novidades. Olhámos um para o outro na esperança vã de que um de nós conseguisse por milagre entender o que a senhora tinha acabado de dizer. Encolhemos os ombros, as nossas bocas traçaram um sorriso forçado e respondemos: “não percebemos o que nos está a tentar dizer, desculpe…”.
Esta situação repete-se vezes e vezes sem conta. Mesmo com todos os sorrisos, toda a mímica, todo o apontar para o pequeno dicionário, e todas as tentativas de utilizar as poucas palavras que vamos aprendendo em cada país, sentimos que uma parte essencial da nossa viagem nos está a passar ao lado. É como se em vez de ver o filme em 3D, estivéssemos a ver um filme a preto e branco sem legendas. Como uma surdez ou uma cegueira…como se estivéssemos ali, sem estar. Como se vivêssemos apenas na camada superficial das coisas, sem poder ir para além da conversação de sobrevivência – um semi vazio, um espaço no limbo.
Depois do chá bebido, pusemos os alforges nas “burras”, dissemos adeus à senhora, agradecemos o melhor que pudemos e soubemos e fizemo-nos à estrada. Nos nossos peitos a sensação de aperto feita do que se quer dizer e não se consegue, do que se diz e não é entendido. Do mundo das palavras que não são alcançadas, do gesto incompleto da estar em humanidade – a incapacidade de comunicar e conseguir dizer tudo o que se quer e o que se sente.
Ó senhor polícia…
– Mas aí é um posto da polícia!
– É o único sítio com sombra. Se passo mais tempo debaixo deste sol o meu cérebro derrete. Estão mais de 50 graus no meu conta quilómetros.
-Isso é porque está ao sol…
-Exactamente. Ele e eu! Que entretanto entro em estado vegetativo.
– Tens a certeza de que não consegues aguentar mais uns quilómetros, a aldeia deve ser já ali à frente.
– Não consigo, nem quero ter de conseguir!
Sem mais demoras pus a bike debaixo do alpendre e sentei-me num dos bancos que ali havia. O meu corpo parecia um cano roto a esvair-se em água. Não tardou muito que um polícia com cara de quem estava a dormir a sesta assomasse à porta. Depois dos cumprimentos devidos, não foi necessário explicar o que estávamos ali a fazer, era evidente pelo nosso ar cansado e suado e passados alguns minutos tínhamos, como bom oficial da lei que era, duas garrafas com água fresca, duas chávenas cheias chá forte, quase opaco, bom para aliviar a sede, e um cacho de bananas, à nossa frente. O polícia parecia feliz em ter dois ciclovagabundos como companhia. Fomos trocando frases recortadas limitadas à incompetência do nosso conhecimento linguístico e da sua incapacidade de entender qualquer outra língua que não fosse a sua. E depois, recuperados, de novo com energias para mais uns quilómetros de calor, e sem mais que conseguíssemos comunicar, seguimos, não sem antes o senhor polícia nos ter feito carregar os alforges com mais água fresca e o cacho das bananas.
Calor e progresso
Estávamos já há três dias a pedalar os 323 quilómetros que íamos fazer no canto Noroeste do país. Quilómetros percorridos nas montanhas, embrenhados nos confins do Vietnam . Estradas remotas, entre vales e cumes, de aldeias sem nome, que não aparecem nos mapas, um Vietnam diferente do Vietnam que tínhamos feito de mochila às costas. No entanto, qualquer esperança de pedalar sentindo a aragem fresca foi dispersada com a aragem parca e quente que soprava na zona que era, mesmo encaixilhada por montanhas, a mais quente do país, e claramente também, na altura mais quente do ano.
É certo que ter o rabo pesado na hora de sair da cama também não ajuda. Mas infelizmente, e nisto fazemos uma dupla terrível, temos sérias dificuldades em levantar-nos cedo, e o “só mais uns minutinhos” é quase sempre um espaço de tempo longo o suficiente para que quando assentemos finalmente o pé no pedal já o sol aqueça e ilumine tudo e seja demasiado tarde para disfrutar pedaladas frescas e avançar sem o sofrimento acrescido de ter de o fazer sob o sol ardente. E não vale sequer a pena elaborar sobre o desafio físico e mental que é andar a subir montanhas com temperaturas acima dos quarenta graus, mas a palavra masoquista sumariza a sensação.
No entanto, também custa sentir que parte do calor e a falta de sombra são consequências directas do progresso – palavra abstracta que rouba as árvores do caminho e acaba com as sombras, implode e rasga as montanhas, faz brotar barragens, parir cidades no meio do nada…já alguém viu uma cidade no Norte remoto do país? – São sítios bizarros. Aparecem sem aviso prévio, pela forma de uma estrada muito longa, com duas ou três vias de cada lado onde passa um carro de hora a hora. E chegando ao centro, depois de uns quatro a cinco quilómetros, na estrada longa e larga, começam a aparecer edifícios do estado grandiosos com grandes balaustradas e escadarias em mármore, como se o Hoh Chi Minh viesse para ali viver – sítios cheios de promessas de burocracias e papeis e avanço, só que estão vazios, nunca se vê ninguém, nem a entrar, nem a sair. A imagem de algo que pode vir a ser, mas que não é e não será, por tempo indeterminado.
Onde estão as pessoas? Nos sítios do costume. Nos mercados, nas lojas, nas ruas, nos campos. Mas a intenção parece ser a de absorver tudo o que é minoria para um futuro amalgamado e homogénico de gentes que cada vez mais se distanciam das suas raízes e formam uma entidade única nacional. O que é a utopia? Acreditar que um dia todos serão iguais? Ou acreditar que seremos sempre diferentes, e que são precisamente essas diferenças que fazem do todo a grande riqueza e a mais valia?
Entre montanhas
Depois de quatro dias sufocantes, a chuva apareceu e com ela a bênção suprema das temperaturas suportáveis e dos céus cobertos. A estrada de Dien Bien Phu a Sapa é uma serpentina que nos lançou a cada desenrolar da fita para dentro do país e da sua realidade entre montanhas. A cada dia que se avança, como uma recompensa, vai-se sentindo que a vida se vai abrindo e que nos vamos intrincando mais e mais na beleza íntima quase intocada do sítio e das suas gentes.
As roupas baratas sintéticas importadas da China vão sendo substituídas pelos trajes feitos à mão com fibras de cânhamo, tingidas com as cores dos elementos naturais, bordados de geometrias repetidos de geração em geração . Os meios mecânicos são substituídos pela energia animal, búfalos corpulentos caminham lado a lado do homem, entre terraços sobejantes de água, na preparação para mais uma colheita de arroz. As mulheres parecem arco iris e os mercados transbordam de cores – as cores dos trajes que promiscuamente se entrelaçam com as cores do que se vende. As línguas e os dialectos desdobram-se e multiplicam-se e até as feições dos rostos revelam outras origens para lá das fronteiras invisíveis do país.
Grito de sobrevivência
As montanhas foram durante séculos o último reduto dos grupos minoritários étnicos um pouco por todo o sudoeste asiático. Tay, Thai, Muong , Khmer Krom, Hoa, Nung , Hmong são nomes dos grupos principais que se desdobram em sub-grupos mais diversos e distintos, que só no Vietnam se estime que sejam mais de 53. Estas gentes sem fronteiras que vêm de lugares tão distantes como os Himalaias, a China, a Tailândia, a Malásia, quando estas nações ainda não o eram, são filhos esquecidos das convulsões humanas, das guerras entre os grandes impérios asiáticos.
Como os pedaços de madeira à deriva na tempestade, encontraram nas montanhas do sudoeste asiático a ilha deserta onde puderam reconstruir o futuro e dar continuidade à sua herança, ou tão simplesmente, sobreviver. Isto até os franceses, na era colonial, se terem interessado pelas suas terras como áreas de cultivo e terminado com séculos de isolamento.
Hoje, as terras de cultivo das minorias étnicas , que são essencialmente a sua fonte de rendimento, estão a ser cedidas às gentes das terras baixas; a sua identidade cultural está a desaparecer em prol da uniformização social; a sua dignidade exposta como atractivo turístico, e a sua forma de vida, totalmente auto-sustentável, a desaparecer. O futuro não parece brilhar para estes “filhos de um deus menor”. Por detrás dos sorrisos, das roupas coloridas, do exotismo que fica tão bem nas fotografias, está gente a gritar – deixem-nos ser como somos, não nos roubem as terras, não nos tirem os nossos deuses, as nossas crenças, a nossa língua, os nossos costumes. Não nos tirem a liberdade de sermos como somos. Se é um grito silencioso, só o futuro o dirá.
Sapa- o regresso e dois adeuses
Depois de termos passado a noite dentro da tenda envolvidos por um manto de nuvens, subimos a estrada mais alta do país a 1996 metros onde chegámos recebidos por chuva intensa antes de descermos tudo de novo até chegar a Sapa, a vila turística das montanhas onde tínhamos estado há cerca de semana e meia atrás. Foram seis dias lentos, ao ritmo que nós gostamos, a pedalar entre sol, calor, chuva e serras, naquela que foi para nós a estrada mais cénica e bonita do país.
A nossa chegada a Sapa marcava também mais um reencontro com o nosso amigo e companheiro Jorge – o nosso último por estas paragens. A caminho de Vladivostock, na Rússia, o Jorge ia atravessar a China enquanto nós entraríamos no grande país por uma das suas portas do Sul em Hekou. Já habituados aos nossos reencontros e à sua companhia, as promessas que deixámos, ao sabor de um copo de vinho tinto do último jantar que partilhámos, foi o de voltarmos a cruzar rotas algures pelo mundo e de uma bela jantarada no Tromba Rija (mas esta desconfio que vá ter que ser adiada até que as nossas finanças recuperem, o que pode levar algum tempo). Amigo Jorge, que continues a ter “Tanto Mundo” pela frente quanto mundo maravilhoso do ser que és. Bons ventos te levem onde queres ir, e até bem breve e sempre!
A manhã da nossa partida para a China acordou cinzenta. Fizemos os 40 quilómetros até à fronteira num downhill mágico entre terraços de arroz e mantos de nuvens. Ao início da tarde entrávamos no décimo país desta “ciclodisseia” e passávamos a noite na primeira cidade chinesa das nossas pedaladas. Que surpresas aguardavam por nós na China? Em breve iríamos ficar a saber.
Acompanhem as viagens do Jorge Montez em:
Tanto Mundo
TSF – Do Cabo da Roca a Vladivistock
Um percurso espectacular no Norte do Vietnam, perfeito para fazer em bicicleta. Atravessam-se vários vales e montanhas e no processo consegue ter-se uma noção da riqueza da malha humana que compõem o país, assim como das aldeias remotas das minorias étnicas, das estradas por construir ao lado de rios e a visão algo pós apocalíptica de algumas cidades novas que existem no Norte isolado do país e melhor de tudo – fora do trilho turístico.
De Dien Bien Phu á Vila de Muong Cha – 57 kms. Entre vales verdes, arrozais e aldeias. Algumas subidas mas nada de muito dramático à parte do calor. Fizemos este percurso em meados de Maio. Ficámos num hotel-pensão que era também a paragem de autocarro que tinha um restaurante já quase à saída de Muong Cha – o Thai Bin Hotel a 5.3 Euros por noite por quarto duplo com casa de banho privada. Estrada tranquila.
De Muong Cha a Muong Lay – 50 kms. Há um pequeno passe aos 970 metros mas as inclinações não são muito acentuadas. Muong Lay é uma cidade estranhíssima, está dividida em três partes, sendo que uma delas é fruto da relocação de uma vila submergida por uma barragem megalómana que ali existe, e outra parte sofreu com derrocadas e cheias fruto da deflorestação intensiva do local. O hotel onde ficamos, que era também o mais barato é o Lah Anh Hotel na estrada para Sapa (seguindo directamente 2kms pela estrada sem se ir para a vila/cidade, é um edifício grande e relativamente novo). Extremamente limpo, quartos enormes e poder-se-ia até dizer, com um certo luxo, um bom descanso para o dia durito da etapa seguinte – 7 euros por noite, quarto duplo com ac.
Muong Lay a Phong Tho – 81 kms, sendo que grande parte deles são feitos numa estrada em construção ao longo do rio. Percurso bonito mas poeirento e lamacento. Passam-se por algumas aldeias interessantes das minorias étnicas mas sem alojamento. Em Phong Tho tivemos alguma dificuldade em encontrar alojamento, ou porque era caro para o que ofereciam, ou porque não nos deixavam ficar alojados!? Ficámos no hotel Lan Hanh mais caro depois de conseguir regatear o preço que nos ficou a 9 euros por noite, quarto duplo com ar condicionado e casa de banho privada.
Phong Tho a Lay Chau – 30.5 kms. O dia começou bem com uma bela subida para acordar e calor de derreter metais. E um downhill onde se perde tudo aquilo que se subiu, mas com vistas espectaculares dos vales e das montanhas circundantes. Ao fim da manhã chegámos à cidade de Lay Chau, que é algo estranha porque quando parece que vai acabar, recomeça de novo. Ficámos no hotel Hong Nhung, que foi o mais barato que encontrámos a 7 euros por noite, quarto duplo e casa de banho privada, e os donos eram bastante simpáticos, mas há vários na cidade.
Lay Chau a perto do passe de Tram Ton – 51.9 kms. Sem dúvida o dia mais espectacular na nossa etapa de ciclismo no Vietnam. Ao sairmos de Lay Chau depará-nos com um mercado a transbordar de cor e vida. Seguimos para nos embrenhar nas montanhas e nas aldeias onde crianças davam banho aos búfalos, onde as gentes preparavam os terraços de arroz. Com o avançar da subida as pequenas aldeias foram desaparecendo para dar lugar a um cenário majestoso entre montanhas, que nos obrigava a parar não tanto para ganhar folego mas sobretudo para apreciarmos o que nos rodeava. O dia foi todo a subir e no final da noite encontrámos um carreiro nas montanhas onde montámos a tenda mesmo a tempo de nos proteger da chuvada da noite.
Acampamento a Sapa – 29.1 kms – Acordamos entre as nuvens e entre as nuvens e chuva subimos até aos 1996 metros sem conseguir ver muito. Descida até Sapa, de novo pelo meio das aldeias e de regresso ao trilho turístico. Ficamos no Hotel Lotus, que recomendamos. Barato e bastante bem localizado a 5 euros por noite, quarto duplo com casa de banho privada e vistas semi panorâmicas.