Pablo e as suas histórias
Pablo, conta a história do arroz do tio Ben!, pediu o Álvaro em tom de gozo já sem conseguir conter o riso.
Arroz do tio Ben, arroz mas é de merda que por causa dessa porcaria já nem posso ver arroz à minha frente, disse Pablo.
Três vozes soltaram gargalhadas em uníssono na antecipação da história que só podia ser cómica.
Vá lá, conta! Insistiu o Alvaro mais uma vez.
Pablo começou. Sabem aquele arroz que vem em embalagens de plástico, de cozedura rápida? O arroz do Uncle Ben, Tio Ben, ou lá o que é. Houve uma vez que comprei uma série desses pacotes de arroz porque dizia na embalagem que era rápido de cozinhar – cinco ou dez minutos. Eu punha o arroz em água a ferver antes de o comer, mas nas instruções dizia para “simmer”. Que carago, eu sabia lá o que queria dizer “simmer” e cozinhava aquilo mesmo assim a pensar que estava a fazer bem. Só vos digo: era mais seco e mais insosso, parecia meio cru…não queria acreditar que as pessoas comessem aquilo, mas como tinha comprado bastantes pacotes, tive que comer aquela porcaria durante vários dias. Arghhh, só de me lembrar dão-me voltas ao estômago. Uncle Bem, Uncle Ben, uma bela porcaria é o que aquilo é!
Estávamos os três agarrados ás nossas barrigas de tanto rir imaginando o Pablo a comer, ao fim de um dia duro de ciclismo, um arroz meio cru por não perceber as instruções do pacote. Aquele homem argentino, de trinta e tal anos, olhos pequenos e brilhantes, cabelo aos caracóis e pele queimada pelo sol, andava a pedalar o mundo há 10 anos, mas as suas histórias eram tão rocambolescas que era difícil acreditar que tivesse conseguido sair da porta de casa, e muito menos, andar pelo mundo em bicicleta há já mais de 10 anos. Tudo nele parecia impossível. Desde a carga monstruosa que carregava. Na Austrália andava a vender livros para fazer dinheiro e tinha um atrelado que pesava mais de 80 quilos. Isto sem contar com a carga normal.
A tenda que tinha era um igloo barato, feito na China, porque tinha sido a única que uma marca argentina de equipamento de outdoor se tinha disponibilizado a oferecer-lhe. Ficou ensopada na chuvada que caiu na tarde em que nos conhecemos. Os seus alforges, também oferecidos, tão pouco eram à prova de água. Pablo simplesmente se recusava a comprar equipamento, preferindo sujeitar-se ao equipamento mau que lhe ofereciam. E a desculpa não era a falta de dinheiro, já que com a venda de livros e de umas bonecas nas feiras por onde ia passando, conseguia bons rendimentos. Era mesmo por teimosia e, julgo que um pouco, mau feitio.
Tudo no Pablo era uma caricatura. E fosse por ser argentino e as palavras soarem de forma engraçada, ou por ser uma pessoa naturalmente cómica, sem no entanto se esforçasse para tal, o facto é que era impossível estar cinco minutos com ele sem soltar o riso.
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Quando, entre os quatro, debatíamos rotas e experiências de viagem, falámos do Japão. Deste país contou-nos mais uma das suas histórias rocambolescas.
Eu cheguei ao Japão com um outro ciclista Japonês, andámos à procura de alojamento mas era tudo tão caro que começámos a ficar um pouco desesperados. Esse tal amigo disse que tinha umas pessoas amigas mas que ficava comigo, desse por onde desse. Entretanto passámos por um cemitério, e já estava a ficar de noite, eu disse-lhe que era provavelmente o único sítio que podíamos montar a tenda e ficar sem gastar dinheiro. O “cabron” olhou para mim e disse-me que tinha mudado de ideias e afinal ia ficar com uns amigos. E julgam que me convidou? Foi-se embora sem sequer me perguntar se queria ir com ele. Acampei no cemitério sozinho. Mas é como vos digo: é a única forma de fazer o Japão sem gastar muito dinheiro com alojamento – usar os cemitérios para acampar! São o melhor sítio – bem cuidados, ninguém vos chateia. Sigam o meu conselho se estão a pensar em passar por lá.
As histórias iam-se juntando ao som das nossas gargalhadas. Cada um ia partilhando as suas aventuras e anedotas e dando ao outro sugestões de rotas, conselhos de equipamento. Tanto o Alvaro como o Pablo iam seguir em direcção ao Alasca e estavam curiosos por saber mais sobre aquelas paragens. Escutaram as experiências do Nuno como bons alunos e fizeram-lhe muitas perguntas., sobretudo sobre os ursos.
Álvaro, o biciclown
Três dias antes, em Westport quando saíamos da biblioteca, um homem de turbante na cabeça, olhos azuis profundos, aproximou-se de nós, com um grande sorriso. e, apresentou-se..
Sou o Alvaro. Sou de Espanha e também ando a viajar em bicicleta . Há sete anos. Acrescentou.
Expressámos a nossa admiração num Uau uníssono.
Estou ali no mercado a vender uns DVDs do meu documentário sobre a Mongólia, se quiserem passem por lá.
Depois de comprarmos mantimentos e posto a escrita em dia, passámos no mercado para falar um pouco mais com o Alvaro, ou o biciclown – o seu alter ego e, saber mais sobre o seu projecto. Como íamos na mesma direcção despedimo-nos já com a certeza de que as nos voltaríamos a encontrar.
Tauranga bay. Adeus ao mar, pelo menos, por agora
Westport era também a última cidade da Costa Oeste e marcava o fim de uma etapa que seguramente ficaria nas nossas memórias como das mais bonitas do país. Na noite anterior acampámos na praia tranquila de Tauranga Bay depois de termos seguido a estrada junto ao pacífico, no que seria o final das nossas pedaladas junto ao mar. Pelo menos por agora. O tempo, contra todas as probabilidades, tinha permanecido seco e sem vento, factor determinante no quanto havíamos desfrutado aquela parte do mundo.
Em Westport a estrada afastou-se do mar rumo ao nordeste da ilha. Por ali seguiríamos a garganta do rio Buller seguindo uma estrada de inclinações suaves ladeadas por montanhas no nosso lado direito e o rio caudaloso, esverdeado, à nossa esquerda. Em partes a estrada tinha apenas uma via onde um sistema de semáforos operava, com um curioso botão para ciclistas que podiam carregar para que o sinal ficasse verde durante mais tempo.
Parámos num museu de uma povoação, Inangahua, que consistia em centenas de artigos de jornais fotocopiados e presos nas paredes. Neles constavam coisas tão díspares como artigos sobre a destruição de uma aldeia depois de um forte tremor de terra nos anos trinta, a fotocópias de fotos antigas das famílias colonizadoras que ali tinham ido viver quando se havia descoberto ouro naquelas paragens.
Fascinante, para quem tivesse tempo e disposição para absorver aquela informação mal organizada. A tentativa de uma comunidade com poucos recursos em preservar a sua história recente – que naquelas fotocópias amareladas parecia já tão distante e precária, prestes a apagar-se.
Quando saímos do pequeno museu o Álvaro passou e seguimos os três juntos à procura de acampamento para passar a noite.
Não é campismo selvagem, mas quase
Acampámos no DOC (parques de campismo do departamento de conservação) de Lyell. Estes tipos de parque de campismo encontram-se um pouco por toda a Nova Zelândia, mas as condições que oferecem são no seu melhor básicas., consistindo numa sanita de buraco, onde a pestilência do cheiro a fezes e urina varia conforme a hora do dia e do calor que se faz sentir – sendo que de manhã parece ser a melhor altura para utilizar estas instalações, Ás vezes tamém há mesas. A mais valia é que os sítios onde estes parques se encontram são geralmente bonitos, perto de lagos, rios ou reservas de floresta. Os preços variam conforme os confortos oferecidos mas o tipo de casa de banho é a mesma em qualquer um deles.
A primeira noite que passámos na companhia do Álvaro foi encurtada pelo facto do parque estar infestado por sand flies, ou sangue flies – a nossa versão do seu nome. Estes pequeno insectos são potencialmente o animal mais perigoso e mais irritante que colonizou estas ilhas. As suas picadelas e a comichão que delas deriva podem levar um ser, de outra forma perfeitamente normal, à loucura. E nem um bom repelente demove estas pragas voadoras das suas intenções sanguinárias. Deixamos a conversa para o dia seguinte porque o ar á nossa volta estava carregado de nuvens de pequenos insectos que nos picavam com avidez.
Depois do pequeno almoço e ainda sob a companhia das bestas voadoras, partimos na manhã seguinte.
E mais encontros da estrada
O Álvaro ia encontrar-se com um amigo argentino com quem tinha pedalado na Austrália que vinha em sentido contrário em direcção à costa Este, por isso seguiu a um ritmo mais rápido. Ficou combinado que nos encontraríamos algures no caminho.
34 kms depois, a meio da manhã em Murchinson encontrámos de novo o Alvaro. O sol estava forte e não foram precisos grandes argumentos para nos convencer a comprar umas cervejas que estavam em promoção no supermercado local a menos de 1 Euro por garrafa.
Uma hora depois aparecia o Pablo, o amigo argentino. Suado, com a bicicleta dolorosamente carregada de onde saiam entre outras coisas umas varas de tenda a servir de polo para as bandeiras dos 78 países que havia pedalado.
Trocaram-se introduções, abraços e risadas e, passados alguns minutos estava claro que nenhum de nós tinha muita vontade de avançar.
O Álvaro, que por coincidência tinha uma amiga, que tinha outra amiga que tinha uma casa de férias naquela vila, sugeriu que podíamos acampar nas suas traseiras. O que a amiga não devia ter contado quando lhe fez a sugestão é que com ele viessem mais três ciclovagabundos.
Montámos acampamento nas traseiras da dita casa, que parecia abandonada, a tempo de evitar a chuvada forte que caiu durante o fim da tarde e que inundou a tenda do Pablo. O coitado teve de retirar todos os seus haveres que ficaram espalhados no espaço pequeno do varandim a secar.
A noite e o seu manto escuro cobriram o céu. Ao som da chuva a cair acrescentou-se o das as nossas vozes em conversa animada e o crepitar da madeira no fogo que improvisamos num fogareiro ferrugento. Os vizinhos deviam estar com medo daquela trupe que havia acampado na casa da vizinha, mas pelos menos não chamaram a policia.
Na desordem de tendas, sacos de cama, roupa a secar, tachos, fogões e outros haveres, não deixa de ser surpreendente a quantidade de coisas que cabem dentro dos alforges de quatro ciclistas. Ali naquele ponto de encontro improvável forjaram-se novas amizades, sonharam-se novas rotas, olharam-se a mapas, trocaram-se dicas sobre equipamento, contaram-se histórias e sobretudo partilhou-se o ideal de vida que temos em comum – o de viver sobre duas rodas, percorrendo o mundo.
No dia seguinte partimos com o Álvaro já o sol ia alto. O Pablo seguiu rumo à Costa Este, na direcção oposta. Quem sabe se os nossos caminhos se voltarão a cruzar de novo?
A arte do reencontro…
Nos três anos que vivemos em Londres entre viagens decidimos abrir as nossas portas a outros cicloturistas através dos warmshowers . Inicialmente queríamos retribuir toda a hospitalidade que tínhamos recebido durante as nossas viagens em bicicleta, mas quando começámos a receber os primeiros ciclistas, cedo nos apercebemos que estes contactos nos ajudavam, sobretudo, a manter inspirados e motivados para a nossa viagem. Com eles vinham ideias e informação preciosa.
Uma dessas pessoas que recebemos foi o Jimu, outro palhaço viajante que tinha emigrado aos 16 anos com a família para a Nova Zelândia. O seu trajecto de vida é tudo menos convencional, e isso reflecte-se na pessoa que é. Quando apareceu em nossa casa no verão de 2010, queria percorrer Inglaterra de bicicleta a tocar o saxofone e a ser palhaço. Partiu o braço num acidente, no início da sua viagem, o que o impediu de seguir em bicicleta. Mas continuou a tocar e a fazer a suas palhaçadas. Dois anos mais tarde o círculo encerra-se.
Fomos visitá-lo na sua quinta em Upper Moutere. Ficámos três dias na sua casa linda no meio do campo. Foi bom rever o Jimu e de conhecer a sua mulher, a Christine, uma Nova Zelandesa simpática, cheia de energia. Também tinha feito as suas viagens de bicicleta pela Europa e pelos Estados Unidos. Nas divisões amplas onde viviam, em cima da carpintaria do Jimu, sentia-se uma grande serenidade e paz.
Despertávamos com o cheior a pão acabado de fazer e tomávamos o pequeno almoço juntos. À noite aguardávamos que a Christine chegasse do trabalho para jantar, conversar, filosofar sobre a vida e o mundo. Difícil foi partir, mas os amigos nunca ficam para trás – ficam dentro. Dentro de nós. Dentro das nossas memórias. Dentro dos nosso corações.