Onde os sonhos começam, começa também a realidade
A ideia de viajar até aos Antípodas começou a esboçar-se ainda andávamos na América do Sul. Irmos para o extremo diametralmente oposto do planeta, o ponto ao contrário, o ponto mais distante e percorrer o globo viajando pelos países que ficam no meio. Pedalar enquanto no ponto inverso se dorme. Os ritmos seriam marcados por 12 horas de diferença; 12 horas à frente do mundo. Veríamos os primeiros raios de sol a iluminar o planeta e seríamos os primeiros a desfrutar as 24 horas que nos oferece cada dia. Ponderámos durante quase dois anos se iríamos começar a viagem partindo de Portugal, mas a possibilidade de atravessar uma Europa familiar durante o inverno fez-nos decidir por um começo inverso.
Mas qual é o antípoda de Portugal? A que país é que se chega se perfurarmos o planeta em linha recta atravessando as suas várias camadas de matéria incandescente? – À Nova Zelândia. O ponto antipodal de Leiria, constatámos algo decepcionados, era algures no mar da Tasmânia, entre as duas ilhas da Nova Zelândia – a norte e a sul.
O Andreas, um cicloturista Alemão que haviamos conhecido em Te Anau há uns meses atrás, tinha-nos dito que era relativamente fácil andar de kayak no Parque Nacional Abel Tasman, banhado pelo mar da Tasmânia. Bingo! Aqui estava a nossa oportunidade. Faríamos uma etapa em mar num acto simbólico de nos aproximar do antípoda do sítio onde tínhamos nascido e, de onde havíamos partido há quase mês e meio e que era, afinal, o motto desta aventura – o regresso a casa dos antípodas!
Aprender, para não afundar
Estávamos sentados dentro do kayak ainda em terra, nas traseiras da companhia à qual o havíamos alugado. As nossas coisas tinham ficado em casa do Jimu, em Upper Moutere (que por sinal tem o seu antípoda numa montanha entre Cardanha, Cabreira e Ferradosa. Se há alguém destas localidades a ler este blog, um bem haja a todos).
À nossa frente estava o instrutor alemão de meia-idade, com a barbicha bem aparada e o corpo bronzeado. Do nosso lado esquerdo, nos outros dois kayaks amarelos, dois casais, um de ingleses e, outro, de polacos que pareciam não perceber muito bem o instrutor.
“Quem vai para o mar preparado e com conhecimento, dizia ele, tem mais hipóteses de sobreviver e evitar cometer riscos que lhe possam custar a vida, e as coisas em mar podem mudar rapidamente, há que saber o que fazer, porque isso é muitas vezes a diferença entre a vida e a morte!”
Neste ponto é interessante notar que ninguém no grupo havia andado de kayak no mar e, subentendendo que o conhecimento vem sobretudo da experiência, parece que as nossas chances de sobrevivência caso as coisas corressem mal, seriam mínimas.
Depois passámos à prática – em terra, o que é sempre útil.
Primeiro o Alemão assegurou-se que sabíamos remar. O grupo levantou os braços a um mar imaginário feito de ar com o remo em riste, no entanto a polaca estava ter algumas dificuldades, não parecia entender como rodar o pulso de maneira a rodar o remo. O instrutor dizia-lhe que era como a acelerar uma mota mas imagino que isto ainda a deixasse mais confusa.
Prosseguimos com os nossos exercícios imaginários em terra. Num deles virámos o kayak para nos voltar a por dentro dele; noutro usamos o utensilio para tirar a agua dentro da embarcação embora não houvesse nenhuma e, em menos de duas horas estávamos ao que parece qualificados para enfrentar o mar alto em autonomia.
O receio inicial de que aquilo talvez fosse demasiada areia para as nossas camionetas foi-se dissipando – estávamos prontos para remar no famoso mar da Tasmânia e chegar o mais próximo possível do antípoda de Leiria.
Isto, até o instrutor nos ter explicado a parte final do nosso briefing – o mapa por onde iríamos remar. Na folha plastificada havia três zonas a vermelho com nomes sugestivos como Mad mile (a milha louca).
“ Não façam como um casal há uns tempos atrás, disse em tom de remate, tiveram que os ir buscar já quase a mar alto porque pensavam que as zonas a vermelho eram para evitar. As zonas a vermelho são zonas onde há mais vento e mais corrente, por isso tenham atenção à direcção das ondas. E não se esqueçam das marés, porque quando a maré está baixa as distâncias nas praias aumentam consideravelmente e não devem arrastar os kayaks porque os estragam.”
Marés, ondas, zonas de milhas loucas, correntes, kayaks com mais de 80 kilos que temos que carregar por mais de 1000 metros…as bicicletas de repente pareciam-nos um meio de transporte extremamente simples e seguro, e são-no na verdade.
No Parque Abel Tasman, mar para que te quero
Depois daquela introdução, só conseguimos relaxar já o mar nos rodeava por todos os lados, a terra era uma linha ténue que se confundia com o bruxulear das ondas de calor e, estávamos finalmente sozinhos, os dois no meio do mar imenso, calmo. Nós e os elementos: vento que soprava fraco a empurrar na direcção do nosso primeiro acampamento, água que caía dos remos e nos refrescava o corpo, as pequenas ondas que nos embalavam, o sol que brilhava forte e alto nos céus azuis.
O Parque Nacional de Abel Tasman é o parque mais visitado na Nova Zelândia com cerca de 160000 visitantes por ano, mas também é um dos mais pequenos. A pé, em kayak, ou de barco o acesso é limitado porque não existem estradas para as suas praias de postal rodeadas por montanhas de verde quase tropical e reservas marinhas onde se podem observar uma miríade de animais incluindo focas, golfinhos e muita passarada.
Quando escolhemos andar de kayak em autonomia tínhamos idealizado praias desertas, inacessíveis, onde acampávamos ao fim do dia a ouvir o som do mar e dos pássaros. No entanto, qualquer pequena baía ou praia na costa do Abel Tasman é acessível através dos vários percursos pedestres que o atravessam e, invariavelmente, existem nestas, parques de campismo pertencente ao departamento de conservação, que, por sua vez, têm que ser reservados em avanço, dada a sua capacidade se limitada.
A experiência foi muito boa. As distâncias entre os acampamentos foram feitas sem correrias e pudemos passar os nossos dias a atracar em pequenas baías e a rodear ilhas onde focas preguiçosas secavam ao sol depois de mergulhos refrescantes. A milha louca e as outras áreas que apareciam a vermelho no nosso mapa propiciaram remadas com alguma adrenalina; mesmo com o tempo calmo, o mar ali era agitado e as ondas faziam com que tivéssemos de surfar, o que exigia algum esforço físico e trabalho de equipa.
No segundo dia de remadas chegamos até à zona indicada como a zona limite para kayaqueiros maçaricos. Chegávamos assim ao ponto mais próximo do qual estaríamos do antípoda de Leiria – Olhámos o horizonte com curiosidade, e depois olhámos para o mar, se um ralo se formasse ali de repente, em pouco tempo apareceríamos algures em Leiria. Talvez na Fonte Luminosa quem sabe? Voltámos para trás em direcção ao nosso acampamento dessa noite, o Mosquito Bay. Começávamos o nosso lento regresso a casa.
As últimas pedaladas na Ilha Sul
Ondulando por colinas com árvores de fruta, a paisagem rumo á ponta Nordeste da ilha tornou-se menos interessante. Sabíamos que o mais cénico estava feito, agora era uma questão de somar quilómetros e, seguir para Picton,para apanhar o ferry.
De Upper Moutere pedalámos até Nelson, cujo o antípoda é Mogadouro. Nelson é uma cidade de praia, com algum turismo, e é talvez à parte de Queenstown, uma das cidades mais animadas da viagem; parecia haver gente nas ruas e com o sol a brilhar, os edifícios, que nos parecem todos iguais, tinham até alguma graça. Mas esta sensação durou pouco porque depois das 6 da tarde as lojas fecharam e as pessoas desaparecerem, deixando um silêncio quase sepulcral nas ruas semi desertas. O Nuno leu em algum lado que até há pouco tempo os pubs estavam abertos até às cinco da tarde e, apesar de esta regra ter mudado, parece-nos que os hábitos das pessoas não. A Nova Zelândia parece ter de forma geral uma sociedade algo tradicional e conservadora, pelo menos em certos aspectos.
Já conformados com o facto das cidades deste país não oferecerem grandes atractivos, chegámos também à conclusão que era melhor assim: com um orçamento de 10 Euros por dia para cada um, já é desafio suficiente conseguir atender às nossas necessidades básicas de alojamento e alimentação sem esticar muito os cordões à bolsa. Até calha bem sentir que as cidades da Nova Zelândia não oferecem grandes tentações, referindo-me sobretudo a restaurantes sofisticados, ou pastelarias com bolos irresistíveis , ou exposições imperdíveis e, esse tipo de coisas. Geralmente o cheiro que vem da maioria dos restaurantes é a fritos, os museus e as exposições disponíveis são sobretudo sobre os colonizadores ou então de coisas bizarras como um museu de meias que visitámos em Hokitiki. Mas esse até não se pagava para entrar, só pelas meias.
De Nelson pedalámos em direcção a Picton, de onde apanharíamos o ferry rumo a Wellington na Ilha Norte. As árvores de fruto foram substituídas por pinheiros e as ondulações em estradas tranquilas tornaram-se em subidas e descidas sem grandes bermas e com algum trânsito pesado. Depois de 80 e tal quilómetros em Havelock a estrada dividiu-se e optámos pela estrada cénica, mais curta e, curiosamente, a menos usada que recortava as montanhas ao longo das margens do fjord, atravessando uma parte dos Marlborough Sound – uma área bonita e menos visitada.
Depois de um mês e meio, 1936 kms pedalados, já havia vontade de ir descobrir a outra ilha do país. Em Picton acampámos num parque de campismo barato localizado na encosta atravessada por uma linha de comboio. Acordámos a meio da noite a pensar que havia um terramoto dos grandes antes percebermos que era um comboio de mercadorias que passava a 20 metros acima das nossas cabeças abanando tudo na sua passagem.
Ilha nova e promessas de tempestade
No dia seguinte, enquanto esperávamos pelo ferry, uma senhora de meia idade, extrovertida, veio perguntar-me se tinha sítio onde passar a noite. Achei a pergunta estranha e por isso perguntei-lhe porque é que me fazia aquela pergunta.
Então não sabes? Esta noite vai haver uma grande tempestade!
Grande tempestade! ? – perguntei, com o receio a espelhar-se nas minhas expressões faciais, sobretudo ao visualizar o ferry a atravessar o Estreito de Cook em dia de tempestade.
Sim uma grande tempestade, ventos fortíssimos, e chuva. Informou a senhora, entoando as palavras de forma concisa assegurando-se de que a entendia.
Mas temos um ferry daqui a duas horas, será que não vamos ser apanhados no meio da tempestade?
Não, não te preocupes a tempestade não chega até ao início da noite. Disse, como se as tempestades neste país chegassem sempre horas.
O ferry chegava a Wellington por volta das 5 e meia da tarde e os meus sinceros desejos eram que a dita tempestade não fosse pontual. De qualquer forma depois de explicar os meus planos e de assegurar à senhora que tinha onde ficar em Wellington, e não, não era na tenda, porque segundo ela esta voaria com toda a certeza – isto se não ficasse totalmente inundada primeiro – desejou-me sorte e partiu para uma das lojas de caridade em busca de um casaco impermeável porque tinha um casamento no dia seguinte, e que chatice, que este tempo lhe tinha estragado a toálette.
Em Wellington, mesmo a tempo de escapar ao mau tempo
Chegámos a Wellington, sob uma nuvem cinzenta e com as primeiras rajadas de vento a fazerem sentir-se. Á nossa chegada a casa do Bill e da Hannah, caíram também os primeiros pingos grossos de chuva, um timing absolutamente perfeito!.
Foi reconfortante entrar em casa, com o jantar quentinho na mesa, uma lareira acesa e a certeza de que teríamos um tecto por cima das nossas cabeças para nos proteger da intempérie. Das janelas viam-se as árvores, que se abanavam freneticamente como se quisessem libertar do chão. O porto, que se via da casa dos nossos anfitriões, tinha os navios atracados, ninguém entrava nem ninguém saía.
O Bill e a Hannah, eram um casal simpático e interessante. Ele – americano. Ela – novo zelandesa. Conheceram-se na Suiça quando estudavam sismologia e, trabalhavam agora no mesmo departamento do instituto nacional dedicado a esta área. Em termos de ocorrências sísmicas o país tem mais do que a sua dose, por isso a tarefa destes dois é tudo menos irrelevante. Em conversa, explicaram-nos que a casa estava justamente em cima da falha sísmica que atravessava a cidade. Quando lhe perguntámos, um pouco admirados, porque é que tinham escolhido aquela casa em particular, responderam porque tinha sido mais barata (não admira). Mas era uma casa bonita e espaçosa com detalhes em madeira em arte Deco.
Em Wellington as casas constroem-se nas encostas dos montes e vistas de longe parecem molúsculos agarrados ás rochas à espera que o mar as sacuda. Outra coisa engraçada na casa do Bill e da Hannah, é o pequeno ascensor, uma mini versão do da Nazaré mas sem telhado que permite o acesso à casa. Quando o Nuno se enfiou lá dentro com a nossa tralha e avançou aos soluços, foi inevitável rirmo-nos, aquilo tinha algo de cómico sem dúvida.
Do Bill e da Hannah ficámos também a saber que eram uma espécie de casal hiperactivo que praticavam vários desportos de outdoor e que participavam com alguma frequência em provas de triatlos e de btt. Quando a pergunta já da praxe, surgiu em conversa – E vocês que desportos praticam? Respondemos encavacados que nenhum, mudando subtilmente de conversa para temas mais familiares como viagens e planos de rotas.
O tempo a melhorou depois de duas noites e ao terceiro dia fomos escoltados pelos nossos amigos, 15 kms para fora da cidade, que mesmo a um domingo tinha um trânsito terrível. Daí seguiríamos rumo às novas paisagens da Ilha Norte.