Ir ou ficar – eis a questão
Uma coisa era certa – não fazíamos ideia por seguir. Na ilha Norte havia simplesmente demasiadas opções. Por um lado, tínhamos a costa Oeste mais desenvolvida e turística. Por outro, o centro vulcânico e turístico. E no outro, a costa Este, mais remota. – Por onde ir?
O mapa parecia uma teia de aranha com linhas entrecruzando o país de Norte a Sul, de Este a Oeste. Por um lado, estradas com muito movimento. Por outro, estradas que não tinham grande interesse, pelo menos de um ponto de vista cénico. Por outro, os pontos de interesse pareciam não estar ligados entre si, pelo menos, não de uma forma directa. Estávamos presos naquela teia sem conseguir vislumbrar uma saída fácil e, das duas uma: ou apanhávamos transportes para poder enquadrar o maior número possível de lugares interessantes ou escolhíamos uma das três rotas possíveis sujeitando-nos a tudo o que essa rota oferecesse. A única certeza era a de que daí a mês e meio teríamos de estar em Auckland para o nosso voo para a Austrália.
Optámos por seguir nas bikes. Depois de 1000 e tal quilómetros já feitos, apanhar transportes públicos não fazia sentido, mesmo que significasse pedalar muitos quilómetros em estradas aborrecidas. Seguíamos então em direcção à costa Este onde, usando, sempre que possível, estradas secundárias, iríamos experienciar um pouco da vida e da cultura Maori, bem presente nesta parte da ilha.
De Upper Hutt Valley a Masterton, no trilho do comboio fantasma
A coisa começou bem, pelo menos nos primeiros trinta e tal quilómetros. O manto cinzento e a chuva que dele se despenhava foi dando lugar a nuvens leves, esbranquiçadas e, estéreis de água. A saída de Wellington fez-se por ciclovias no vale do rio Hutt, que transbordava com a chuva que tinha caído nos últimos dias. Da ciclovia viam-se também as casas clonadas dos subúrbios. Depois de cerca de 7 kms na estrada principal – a EN2, fizemos um desvio para a Rimutaka Forest Railway Route, onde existe um percurso com cerca de 18 kms, numa linha de ferro em desuso. Quando ainda funcionava, tinha sido a mais inclinada da Nova Zelândia.
O cenário mudou por completo. O sol já ia bem alto no seu caminho para o outro lado do mundo, mas como era domingo passámos por vários licrociclistas no seu regresso a casa. O sol se pôs-se finalmente deixando o céu ainda ligeiramente iluminado.
Ficámos com o vale só para nós com o bónus de termos encontrado um sítio mágico para montar a tenda. Ao longe ouvia-se o ribeiro manso que acompanhava a velha linha de comboio e as montanhas de cumes arredondados, forradas a verde, pareciam muralhas de um castelo imaginário. E como um bom acampamento não está completo sem uma fogueira, lá conseguimos atear fogo as uns paus encharcados, depois de os regarmos com meia botija de gasolina. O fumo que se seguiu acrescentou um ar de mistério e aventura à cena nocturna.
Quando acordámos na manhã seguinte havia uma nuvem rasteira de nevoeiro. Os primeiros raios de sol despontavam já por entre as muralhas verdes. Depois do pequeno-almoço das já costumeiras papas de aveia com mel, frutas da estação (normalmente maçãs que são baratas) e passas de uva, seguimos pela linha do comboio fantasma.
Placas de informação turística, uma ou outra relíquia ferrugenta parte das velhas locomotivas, túneis escuros onde gotejava água que ecoava na escuridão ao cair no chão, foram-nos relembrando do passado ferroviário do local. Mas a única coisa ali bem viva e presente, para além de um pássaro ou outro e das floresta, era o batalhão de cigarras que esvoaçavam erráticas tipo kamikaze. Eram às milhares e produziam um som de tal forma intenso que ecoava por todo o vale. Era ensurdecedor.
As coisas começaram a piorar, ou na nossa linguagem de ciclovagabundos – a melhorar. A estrada que era lisa e de pouca inclinação, deixou de o ser. O seu estado deteriorou-se à medida que íamos avançando. Compreendíamos agora porque é que esta era considerada a ferrovia mais inclinada e perigosa do país.
De repente, sem aviso prévio, a estrada que se estava a transformar em calhaus rolados já sem grande forma de estrada, desapareceu por completo, levada, parecia, por uma enxurrada de água. Olhámos os dois um para o outro com um olhar meio masoquista e não fosse termos as mãos a agarrar as bicicletas, estaríamos a esfregá-las e a dizer – isto sim, isto é que é aventura! No fim, tivemos mesmo que deixar as bicicletas e, à boa maneira Boliviana a remanescer dos nossos tempos do Altiplano acabámos empurrá-las pelo meio de uma ravina e de um ribeiro. A coisa não durou muito, passados uns 500 metros o trilho reapareceu e, com ele, foram-se as esperanças de um dia mais recheado de aventuras por caminhos destroçados.
Assim, depois de 30 e tal quilómetros, voltámos à à estrada principal iniciando uma etapa de estradas rurais.
Bróculos, maçãs e papas de aveia
A coisa é que acaba por se ser criativo. Se alguém agora me perguntar como é que se cozinham brócolos, a minha resposta é – de muitas formas. Hás uns meses atrás porém, seria – não sei, porque nem gosto assim tanto de brócolos.
O nosso orçamento diário são 40 dólares novo zelandeses pelos dois, ou mais ou menos o equivalente a 20 euros por dia. Este valor tem que chegar para a nossa alimentação, para dormir e para algum extra que necessitemos como coisas para higiene pessoal.
Quanto a compras de comida optamos pelo mais barato que encontramos nos supermercados e a lista, infelizmente para as nossas papilas gustativas, é um pouco limitada. Surpreendentemente, apesar de a Nova Zelândia ser um país com grande produção agrícola, muita da qual é exportada, o preço desses mesmos produtos é tão ou mais caro do que nos países que os importam. Imaginar que uma garrafa de vinho que às vezes bebíamos em Londres, o Oyster Bay, custa o mesmo na capital britânica do que na nova Zelândia é um bom exemplo disso. Quando passávamos pela dita Capital Mundial do Kiwi* – Te Puke, no início da apanha do kiwi, e pensámos – ahah!, vamos encher a barriga de kiwis mesmo que estes nem sejam a nossa fruta preferida, já chega de maçãs. Mas a 4.99 dólares o kilo, ou seja a quase 3 euros por kilo, saía-me mais barato pedir à minha mãe que mos enviasse pelo correio de Portugal. Irónico, não?
(*Isto é só um aparte, mas eu acho que os Novo Zelandeses sofrem de um complexo de inferioridade que os impele a dar nomes e acreditações pomposas a sítios, como se essa fosse a única forma de os salvar do total esquecimento)
Mas voltando ao assunto dos brócolos e da gestão da “dispensa” nómada – os bróculos custam entre 99 cêntimos a 1.50 dólares à peça e rende para três refeições. Como fonte de hidratos de carbono, ou a gasolina dos ciclistas, alternamos massa e arroz, porque geralmente as batatas são caras. Pão de forma para umas sandes ao almoço.
Como fonte de proteínas proteína, usamos fatias de bacon, quando as encontramos a menos de 3.99 por 500 gramas, ou latas de atum. Quando há miúdos de galinha (que aqui se encontram na secção da comida para cães) lá improvisamos uma canja, que nos sabe mesmo bem à noite. Pimentos, nem cheirá-los porque chegam a custar 12 dólares o quilo! Feijões em lata, para fazer feijoada vegetariana ou com bacon. Fruta, compramos maçãs, peras e bananas, estas frutas, geralmente custam-nos menos de 2 dólares o quilo.
Os nossos luxos consistem em mel, para as nossas papas de aveia, Nutella, de marca barata e, café para o Nuno. Uma garrafa de vinho do mais barato quando queremos celebrar alguma coisa. Eis aqui a lista de compra de dois ciclovagabundos.
Sabe bem a “ternura dos 40″
Os nossos dias foram decorrendo mais ou menos dentro de uma rotina onde a paisagem agrícola intercalava com aldeias de faroeste moderno. Sem grandes subidas avançávamos a bom ritmo. O trânsito que nos acompanhava era composto sobretudo por camiões de transporte de animais que deixavam na sua passagem o cheiro a fezes e urina que permanecia no ar como uma nuvem de mau tempo.
O Nuno celebrou mais um ano de vida, e como era um aniversário especial – os quarenta – fizemos uma excepção e abrimos os cordões à bolsa. O nosso carrinho de compras ficou cheio dos caprichos do aniversariante e, celebramos da forma que melhor sabemos – a beber e a comer, só faltavam os amigos e a familía.
Para abrir os apetites cá fica o cardápio – pequeno almoço: ovos escalfados com salmão fumado, espinafres e molho hollandaise, servidos com espumante e sumo de laranja. jantar: entrada – (à pois claro, ou se fazem as coisa como deve de ser, ou então, não se fazem) camarão cozido, uma selecção de queijos, chouriço e azeitonas; prato principal – um bom bife de vaca com salada; sobremesa – bolo de cenoura para espetar as velas. Claro está, bom vinho da Nova Zelândia. O preço de tudo isto? Que importa não se fazem 40 anos todos os dias!
No dia seguinte seguimos em direcção a Napier ressacados, barriga cheia e muito felizes.