Na Quinta dos Metherell
A Jill abriu os braços dentro da carrinha 4×4 que abanava por todos os lados sob a condução segura do seu marido, o Kenny, e apontou para um vale profundo e a montanha que ladeava a estrada pedregosa, como se por fazer aquele gesto conseguisse conter a dimensão do seu pedaço de terra – Yep, isto é tudo a nossa terra, é a terra do Kenny, que ele herdou do pai, vai desde o topo da montanha até ao ribeiro que se vê lá em baixo. São mais de 16 quilómetros da porta de casa ao fim do terreno e mais de 5400 hectares de terra . Informou com um orgulho pouco disfarçado.
O sol já se havia quase posto mas a falta de luz não obscurecia o espaço imenso ocupado pelas terras daquela família. Uma horas antes, depois de mais de 90 quilómetros pedalados entre Gore e Mossburn, havíamos perguntado à única pessoa que vimos na rua se havia um parque de campismo na cidade. Jill, que acabava de visitar os netos era essa pessoa e respondeu que havia mas que eramos bem-vindos a ficar em sua casa. Surpreendidos pelo convite espontâneo mas não querendo deixar passar a oportunidade de alojamento gratuito e de conhecermos pessoas novas decidimos aceitar e, passados os 20 minutos que nos levou a pedalar os 7 quilómetros até à sua fazenda, tínhamos uma garrafa de cerveja na mão cada um e éramos convidados a partilhar de um jantar de fish & chips e mexilhões fritos, a nossa primeira experiência culinária Novo Zelandesa.
Não eramos os únicos visitantes, Peter, um amigo da família que há anos passava algumas temporadas a ajudar nas tarefas da quinta em troca de comida, alojamento e gasolina, viajava pelo país no seu autocarro transformado em casa nomádica, a sua mulher e companheira, que o acompanhava nas suas andanças, havia morrido recentemente e a tristeza nos seus olhos e na forma saudosa como a recordava apertavam o coração a quem o ouvia. Depois do jantar de fritos e três cervejas mais tarde lá fomos monte acima numa visita guiada das terras da família Metherell.
Na manhã seguinte o céu estava coberto de nuvens cinzentas. – Porque é que não ficam mais um dia? Perguntou-nos a Jill amistosamente . Hoje nem sequer está um bom dia para andar de bicicleta e o Kenny tem que mudar umas ovelhas para outras pastagens, podiam ir com ele . Ficámos. Depois do almoço fomos buscar os cães ao canil, eram cerca de 10. Numa correria desenfreada iam seguindo a velha carrinha e, sob instruções do dono reuniram as ovelhas e as vacas que em manada se foram mudando para outras pastagens. Uma forma moderna e conveniente de pastoreio. Longe parecem estar os dias bucólicos dos pastores e dos seus rebanhos pelas montanhas fora – pelo menos por estas paragens. Agora há carros e motas todo o terreno. Em menos de 2 horas a tarefa estava completa.
Existem cerca de 8 ovelhas para cada um dos 4 milhões e quatrocentos Novo Zelandeses e o Kenny e a Jill contribuem para este número com mais de 4 mil ovelhas que têm nas suas terras.
Nessa mesma noite o Peter preparou-nos umas tostas recheadas com peixe minúsculo, uma das especialidades apreciadas aqui chamado whitebait . Tinha sido pescado por ele na costa Este em Outubro. Ao jantar aproveitou para nos contar mais histórias sobre a sua vida e das suas viagens pelo país no seu grande autocarro e, quando o cansaço se tornou mais forte que a vontade de falar, fomos todos dormir. Partimos na manhã seguinte.
Christchurch, a cidade onde a terra mexe
13 dias antes, havíamos aterrado em Christchurch para dar início à nossa viagem de regresso a casa dos antípodas. À chegada do aeroporto, depois de tirarmos as bicicletas dos sacos, percebemos que não tinham sido bem tratadas no longo voo de Londres para o outro lado do planeta. O plano era chegar a casa do Murray, um membro do Warm Showers em Christchurch a pedalar, mas com um garfo totalmente inutilizado (na minha bike) e uma roda traseira tão torta que podia servir de catavento (a do Nuno) vimo-nos obrigados a fazer os 10 quilómetros de táxi até à sua casa.
O Warm Showers é um site que promove o intercâmbio entre ciclistas e, sobretudo, permite encontrar alojamento e um duche quente gratuito em casa de pessoas que de uma forma ou de outra gostam de ciclismo e de acolher cicloturistas. Murray recebeu-nos com um sorriso e um aperto de mão fortes. Depois mostrou-nos a sua casa, grande e moderna e o quarto confortável onde ficámos nas nossas primeiras quatro noites na Nova Zelândia.
A terra treme mais do que uma vez por dia desde o grande último tremor de terra em Fevereiro de 2011 na maior cidade da ilha do Sul, e este parece ser o tema central de qualquer conversa. Tão ou mais comum do que falar do estado do tempo, discute-se a distância do epicentro, fazem-se apostas sobre a intensidade dos abanões, debatem-se as medidas de reconstrução da cidade e do quão lento todo o processo está a ser.
As pessoas tentam adaptar-se a uma nova realidade assustadora: Christchurch está sobre uma falha da qual não se tinha conhecimento até ao grande tremor de terra no qual morreram 181 pessoas e que destruiu o centro da cidade. Reconhece-se agora que foi construído sobre áreas onde antes havia água e por isso os edifícios do centro da cidade correm o risco de derrocadas, ou pelo menos os poucos que resistiram à intensidade dos abanões. Já são bastantes aqueles que abandonaram a cidade para paragens mais seguras e os que ficam vivem cheios de incertezas e sobretudo com receio de outros tremores.
A nossa chegada coincidiu com a época das férias de verão e àparte dos turistas curiosos que ali iam mais para ver alguns dos escombros dos edifícios derrubados e a vedação que torna o centro interdito, eram poucas a pessoas que se andavam nas ruas. Mas a cidade tem algumas partes interessantes que escaparam mais ou menos intactas como os jardim botânico, o museu, ou até a nova área comercial feita em contentores coloridos, uma forma criativa de alojar as lojas e os centros comerciais destruídos.
Depois de um arranjo caro, o garfo da bicicleta da Joana foi substituído por um da marca Surley , mas não foi até ao nosso regresso a casa que nos apercebemos que era um garfo para travões de disco e que não era compatível com os suportes da frente. Ficámos pouco impressionados com o serviço e, impossibilitados de regressar à loja porque já estava encerrada e, com bilhete de autocarro comprado para a manhã seguinte valeu-nos o nosso sentido de improvisação, alguma correria e a ajuda do Murray. A Marina, a minha bike, estava pronta finalmente para avançarmos. A roda do Nuno seguiu empanada, apesar de a terem supostamente endireitado. Depois de quatro dias, umas jantaradas e umas boas tertúlias cheias de sugestões de itinerários e informação sobre o país, despedimo-nos do Murray, pedalámos até à paragem de autocarro e seguimos com as bicicletas com destino a Dunedin a mais de 500 kms a sul de Christchurch, ali começaria a verdadeira aventura cicloturística.
Mais bondade de estranhos em Dunedin
Dunedin promove uma das suas ruas como a mais íngreme do mundo e, se esse facto é questionável , o que é sem dúvida inegável é que muitas das suas ruas desafiam as leis da gravidade. No pequeno percurso para chegar a casa de mais uns Warm Showers merecemos a preço de ouro a pizza deliciosa que nos cozinharam – 5 breves quilómetros tornados longos pelas inclinações da estrada que chegavam a ter mais do que 20 por cento em certas partes – um bom sinal do que nos aguarda neste país.
O Adrian e a Jenny são um casal do Reino Unido. Vivem na Nova Zelândia há mais de quatro anos numa casa com vistas panorâmicas sobre a baía da cidade. O Adrian está a escrever um livro sobre a viagem que fizeram de bicicleta de Malta à Filândia, mas as suas vidas têm sido preenchidas por muitas outras viagens e vivências noutros países. Um dos seus projectos é idêntico ao nosso – o regressar á Europa a partir da Nova Zelândia em bicicleta.
Uma manhã radiante de sol onde o vento era apenas uma brisa leve , depois de um pequeno-almoço escocês de papas de aveia e fruta, descemos monte abaixo… – assim pode começar o primeiro capítulo da nossa viagem. Mas claro está – tudo o que desce também sobe e, mais uma grande subida aguardava por nós à saída da cidade.
Como viémos mais tarde a perceber, se há uma coisa certa na Nova Zelândia é a incerteza do tempo e, passadas poucas horas de sol e pouco vento, vieram as nuvens cinzentas, a chuva inevitável, e o vento, de frente. O sol regressou mais tarde e voltou a desaparecer para dar lugar à chuva novamente. Começava assim a nossa introdução ao que mais tarde passou a ser a nossa rotina e ao que agora chamamos o veste, despe – veste que vêm aí chuva, despe que vem aí sol.
Nas Catlins, a Nova Zelândia revela-se
Nos nossos planos iniciais para a Nova Zelândia não pretendíamos percorrer todo o Sul da ilha do Sul, no entanto depois de muitas recomendações, tanto do Murray como do Adrian e da Jenny decidimos acrescentar o Sul da ilha do Sul aos nossos conta-quilómetros sob a promessa auspiciosa de encontrarmos praias pristinas e desertas, áreas de florestas virgens com arvores milenares e, uma parte pouco visitada da ilha.
As Catlins, que fazem parte da Rota Cénica do Sul devem o seu nome a um erro de ortografia de um capitão que ali comprou um grande pedaço de terra aos Maori (o nome era Cattlin). As primeiras comunidades de europeus que foram viver para aquela costa remota, então só acessível por mar, forram atraídos pelas possibilidades de pesca da baleia que se tornou no principal motor económico, mas, à mediada que a floresta densa foi sendo debastada e, que os acessos melhoram, outras forma de subsistência foram exploradas e agora o que seria há menos de 200 anos atrás paisagem de floresta densa e virgem, são agora colinas verdes povoadas por milhares de ovelhas. Na verdade esta é a paisagem mais frequente deste país.
Nas praias e nas costas das Catlins habitam inúmeras espécies de animais algumas das quais em vias de extinção como o golfinho Hector, um dos mais pequenos que existe no mundo ou o penguin de olhos amarelos. Existem também leões-marinhos e focas, albatrozes e muitas espécies de aves. Durante o nosso percurso tivemos a sorte de ver os golfinhos Hector e bastantes tipos diferentes de aves.
Visitámos também umas formações rochosas apenas acessíveis em maré baixa – as catedrais de pedra – grutas esculpidas nas rochas pelo mar, com mais de 30 metros de altura. O que mais nos impressionou foram os parques de floresta primária que sobreviveram à desflorestação. Nelas vimos árvores únicas dos tempos jurássicos com nomes tão estranhos como Rimu,
A nossa viagem pela costa sul foi encurtada pelos ventos fortíssimos a sudoeste que tornavam o ciclismo quase impossível. Vimo-nos obrigados a mudar de direcção e a afastarmo-nos da costa. Com o vento ou de lado ou de costas percorremos 71 kms por estradas rurais e aldeias perdidas nos montes povoados por milhares de ovelhas.
De Fortrose, onde mudámos de direção, partimos rumo a Gore, de Gore a Mossburn, onde fomos acolhidos pelos Metherell e de lá seguímos para Te Anau, onde nos aguardava uma etapa que seria um ponto alto desta viagem.