No velho caravanserai de Khargooshi
O som na distância do motor de um carro, foi ampliando até ser a forma poliédrica dentro do velho caravanserai. À nossa volta a linguagem da paisagem, clamada a branco, castanho amarelo do velho edifício e cinzento denso do céu que a escurecia e a transformava numa noção abstracta . Os flocos de neve que tinham começado a cair há cerca de duas horas como se alguém sacudisse migalhas celestiais de farrapos de agua congelada, transformaram-se em linhas brancas, marcando a direcção do vento forte. Era um branco que esvaziava e subjugava as linhas do relevo, os arbustos rasteiros, a recta da estrada e até a construção angulosa que nos protegia – o caravanserai, prestes a desaparecer engolido pela neve acariciando as suas arestas.
Do carro saiu um homem alto com a barba negra, agasalhado por uma “parka” castanha e um chapéu de pele ao estilo russo. O que quereria de nós no meio do temporal? Que intenções teria ao sair do calor do seu abrigo, com o céu já a fazer-se noite?
-Salah malecum.
– Alecum salam.
O Nuno avançou para explicar por gestos e as poucas palavras que falava em persa o que estávamos ali a fazer, mas o homem já sabia – era precisamente por isso que estava ali. As palavras saíram-lhe da boca formando nuvens de vapor. Apontou para o carro e disse que fossemos com ele. Apontámos para a tenda já montada numa das alcovas do caravanserai em ruínas e para as bicicletas, e em resposta dissemos que estávamos ali bem, que não havia problema – “here ok, no problem”. O homem voltou a apontar para o carro e para a distância…”here cold, very cold…house hot, food – come!”.
Alimentávamos há muito tempo o sonho infantil de acampar numas ruínas abandonadas, ruínas que não se tinham materializado até aquele dia, quando do nada (e do nada é a expressão correcta porque estávamos no meio do deserto sem muito que se avistasse à nossa volta) surgiu o caravanserai – de forma tão inesperada como conveniente-, quando os primeiros flocos de neve começaram a cair…e agora um estranho bondoso a querer levar-nos o sonho …”It’s ok, we stay. Moteshakkeram. Thank you very much…”.
O homem regressou ao carro e sem perder mais tempo e desapareceu. No topo do seu chapeu aninhava-se já uma camada de neve e a estrada era apenas uma direcção no escuro do princípio da noite que parecia engolir a luz dos seus faróis . O mesmo som do motor que tinha surgido lentamente como se alguém estivesse a aumentar o volume a uma aparelhagem, desapareceu como se alguém o tivesse reduzido, levando consigo a certeza de uma noite quente… O silêncio fez-se escuridão.
A nossa decisão foi um capricho. Alguém sai do conforto do seu refúgio para oferecer abrigo a dois estranhos apanhados no meio de uma tempestade…e os estranhos recusam. A realidade oculta no capricho é que estávamos sem gasolina para cozinhar e o pouco que era a comida que nos restava mal dava para encher o estômago ao jantar ou silenciar o seu descontentamento à hora do pequeno almoço. Mas era ficar no caravanserai que queríamos, e foi no caravanserai que ficámos.
Fazullah, o pastor
Não foi uma noite bem passada. Impossibilitados de aquecer água para a botija, adormecemos empestados pelo fumo que saiu do parco calor que conseguimos extrair de uns arbustos miseráveis e húmidos que arrancámos cruelmente ao solo na esperança de fazer uma fogueira consoladora – passámos, o que a mim pareceu, a noite mais fria da viagem. Dentro da tenda, montada numa arcada do caravanserai estavam menos seis graus…lá fora, possivelmente o dobro, mas não nos demos ao desconforto de ir verificar.
Na escuridão da nossa divisão, quando tentávamos adormecer, começaram a definir-se ruídos: outros habitantes invisíveis, fantasmas do velho caravanserai encarnados em animais roedores que ouvíamos mas não víamos… e o frio esmagador, em si, uma entidade física presente.
Quando despertámos e ganhámos coragem para enfrentar as temperaturas fora do nosso ninho, o branco era a verdade avassaladora da nossa manhã: a estrada tinha uma camada de neve impossível de pedalar. As pressuposições oferecidas pelo nosso amanhecer eram simples e ao mesmo tempo heterogeneamente complexas: estávamos encalhados sem gasolina e sem comida, a cerca de 70 quilómetros da próxima povoação.
A opção mais lógica que encontrámos foi voltar atrás e procurar o sítio que dava abrigo ao homem da noite anterior, na esperança que fosse o que tínhamos avistado a uns quatro quilómetros dali e, sobretudo, que ele ainda lá estivesse.
Empurrámos as bikes pela estrada coberta de neve durante coisa de uma hora e o abrigo apareceu com os seus tijolos cinzentos e o telhado em abóbada, atrás do qual havia outro abrigo, maior, a resguardar um rebanho de ovelhas. O homem alto de olhar profundo da noite anterior, veio receber-nos ao cruzamento, parecia estar à nossa espera. Foi sem cerimónias que nos indicou que nos abrigássemos na pequena divisão forrada a tapetes, do centro da qual irradiava uma salamandra aquecida a gás, com uma pequena cama no canto – as certezas que cresceram no seio do calor reconfortante, quando a jornada tinha começado na probabilidade da incerteza fria. Explicámos que estávamos sem gasolina e sem comida, que não contávamos com a possibilidade da neve nos impossibilitar a passagem e se era possível que alguém nos levasse dali, ou nos desse comida e gasolina até a neve derreter (no que podia ser uma espera longa).
Fazullah, o jovem pastor, fez uns telefonemas aos condutores de uma mina que havia ali por perto enquanto aquecia os restos do guisado de galinha que depois nos serviu com arroz branco – ao que parecia, ninguém se ia fazer à estrada naquele dia. Voltou a encher-nos os copos com chá forte, quente e fumegante e depois saiu. Regressou descalço, pés brancos e grandes, ajoelhou-se ao meu lado, no que seria a direcção para Meca, e ali fez as adulações e rezas ao profeta … A fé é uma manifestação humana sublime e singular: imaterial, intangível, salvo para os, que como Fazullah, a carregam dentro de si como a verdade corpórea que lhes dá consistência ao ser … Quando terminou, voltou a calçar as meias, bebeu um chá e em seguida indicou-nos que fossemos prender as bicicletas ao tejadilho do seu velho Saipa e aninhar os alforges – depois de distribuídos entre o porta bagagens e o banco traseiro, pouco espaço deixavam para que dois passageiros e um condutor coubessem no carro.
Arrancámos patinando estrada abaixo. Uns 20 quilómetros passados, a altitudes mais reduzidas, a estrada reapareceu. Pedimos a Fazullah que nos deixasse ali, mas o homem tinha uma missão a cumprir que só concluiria quando nos deixasse às portas da pequena casa-de-hóspedes na vila de Varzaneh, com o dono a garantir-lhe que nos daria tecto e comida.
Quando tentámos pagar pelo transporte, ficou ofendido – oferecemos três vezes acreditando de que se tratava de “taarof” – a tradição iraniana de oferecer espontaneamente o que quer que seja, desde dinheiro à conta do táxi, um hábito confuso para quem não é de lá, que obriga o receptor da oferta a declinar pelo menos três vezes, antes de ter a certeza de que a oferta é genuína. A nossa insistência causou mais constrangimento a Fazullah e não tivemos melhor remédio do que deixar os agradecimentos ao trabalho das palavras e do olhar, antes do pastor benevolente se enfiar no carro e desaparecer rua fora, de regresso às suas ovelhas.
Quão diferente tinha sido a experiência há seis anos atrás no altiplano boliviano, numa situação semelhante, quando as varas da nossa tenda se partiram com a força do vento que durava há já vários dias e nos vimos obrigados a empurrar as burras no vendaval tão forte que era praticamente impossível pedalar, e ir pedir ajuda numa mina de bórico, que por sorte havia ali por perto. Depois de muitas negociações, o encarregado da mina aceitou levar-nos de má vontade até ao próximo refúgio, as uns 80 quilómetros de distância na condição do pagamento de 80 dólares. Nem sequer um copo de água nos ofereceu, quanto mais o almoço… a humanidade e a diversidade dos seus seres, timbrada pela dignidade de uns e pelo sentido oportunista de outros.
O regresso às “burras”
Um mês de pausa efectuou maravilhas no meu joelho que mesmo não estando a cem por cento, estava repousado e pronto para voltar à faina ciclo-vagabunda, mas a motivação do regresso às pedaladas foi-se depois de um dia repleto de sol, substituído no dia seguinte por um sol mentiroso que brilhava mas não aquecia e do vento frio amargo que soprava na direcção errada. A boa da bicicleta tinha também o seu velho truque na manga à minha espera: o traseiro dorido durante vários dias como cartão de boas vindas pelo regresso à superfície dura de couro do selim “Brooks” – vingança por um mês passado a usufruir assentos mais macios, digamos assim.
Seguimos a passo lento por estradas perdidas no deserto Iraniano. De Yazd a Esfahan tínhamos a escolha entre uma estrada, à boa moda Iraniana, recheada de camiões e condutores “criativos”, ou outra mais tranquila que depois bifurcava pelo deserto num estado e condições incertas. A escolha foi fácil: preferimos as incertezas de uma estrada sem trânsito do que a certeza sonora e insegura de uma estrada concorrida. E, seria precisamente nesta estrada que eventualmente perdeu o alcatrão, onde no final da tarde encontrámos o velho caravanserai e onde fomos resgatados no dia seguinte pelo pastor Fazullah, acabando de novo em paragens mais habitadas depois da boleia de 70 quilómetros até à vila de Varzaneh. Daí a Esfahan eram apenas cem quilómetros, que nos sobraram para pedalar de debaixo de mais uma jorrada de neve, mas agora – pelo menos, a estrada estava alcatroadas e era pedalável.
Entretenimento familiar
Sabíamos perfeitamente que não havia hotel na pequena povoação de Bersian. Mas sabíamos também que a quarenta e cinco quilómetros da terceira maior cidade do país – Esfahan, montar a tenda sem chamar as atenções, na linha contínua e repetitiva de povoações, campos de cultivo, povoações, ia ser impossível. Decidimos perguntar cientes que pelo menos nos seria oferecido um canto num quintal alheio para montar a tenda. Nem bem tínhamos parado as bicicletas já eram muitos os acenos e as saudações. A dificuldade revelou-se não em encontrar sítio onde montar a tenda, mas em escolher e, recusar consequentemente, as várias ofertas de alojamento que choveram dos homens acabaram congregados à nossa volta disputando entre si o “prazer” de serem nossos anfitriões.
Por alguma razão acabámos por ficar com o homem que foi mais persistente (talvez por isso mesmo).
Quando chegámos à sua casa estávamos num estado pouco apresentável: as nossas roupas emanavam um cheiro refinado composto por um ” bouquet” de odores corporais vários, com um toque “je ne sais quoi” a fogueira fumacenta. A peculiaridade da nossa aparência completa pelo visual feito da “mélange”das nossas calças enlameadas, sacos de plástico nos pés, rematados com o o azul claro das costas meu casaco salpicado em tons de “castanho poças de água” – a nova cor da estação. Não foi de admirar a forma pronta e imediata com que fomos dirigidos às facilidades de higiene pessoal da casa, assim que as apresentações à família ficaram feitas (ainda só composta por mãe e filho), seguidas – banho tomado – pela oferta de lavagem da nossa roupa à máquina.
Mais limpos e com um ar menos vagabundo, foi a vez de enfrentarmos uma noite de convívio passada no seio de uma família tão numerosa como calorosa.
Dizer que vieram tios, primos, a avó, avô, o cão e o periquito é exagero – faltaram o cão (animal pouco considerado nesta parte do mundo) e o periquito, que foi trocado por um papagaio (não estou a brincar, alguém apareceu lá em casa com um papagaio enfiado numa gaiola).
O senhor Agahjani era um homem sério e formal de olhar incisivo e, apesar da sua constituição média, parecia mais alto pelo jeito como carregava o corpo de cabeça erguida e na forma directa e assertiva como se expressava. Era agricultor e policia reformado e não nos levou muito tempo a perceber que era um homem pró sistema e bastante religioso – ter ligado a televisão num canal que mostrava um “medley” de imagens do Ayatollah Khomeini, do arsenal bélico do país, da guerra com o Irão-Iraque e de protestos anti americanos, talvez tenha oferecido algumas pistas. O passaporte que nos mostrou com todo o orgulho, carimbado com as várias idas a Meca – a ” Hadj”, forneceu as pistas restantes.
Masumeh, a mulher, uma senhora simpática e sorridente, preparava o jantar, coberta com um chador branco que agarrava com os dentes ou que embrulhava à cintura quando precisava dos dois braços para cortar algum vegetal ou servir mais chá. Enquanto isto, nós íamos mostrando uma seleção de fotografias da viagem e tentando comunicar através de gestos e um dicionário inglês-persa que criava silêncios distratores na comunicação já por si críptica. As fotos da Austrália foram as mais populares e tivemos que por o “slide-show” em “repeat” porque a família não se cansava de olhar os cangurus e os arranha céus de Sydney.
Entretanto, chegou a filha mais velha com o marido e as duas filhas pequenas e, quando o jantar ficou preparado e foi servido nos pratos que se dispuseram em cima da toalha estendida no chão, estávamos já rodeados por mais de vinte membros da família que foram chegando mas que não jantaram, observando ávidos todos os nossos movimentos. A casa transformou-se numa azáfama de gente. Homens, mulheres e crianças, as mulheres vestidas com os seus chadores e os demais aproveitando a nossa presença para desenferrujar o inglês, o muito pouco que sabiam, que apesar de tudo era mais substancial do que o que sabíamos de persa. Depois serviu-se fruta, maçãs e laranjas, que todos descascaram e comeram, e mais chá que as mulheres distribuíram em tabuleiros prateados. Após o jantar fomos levados até outra sala que tinha no centro uma espécie de braseira com uma manta por cima, debaixo da qual enfiámos todos as pernas e continuámos na galhofa generalizada que atingiu o rubro quando apareceu o tal papagaio que um primo ou tio, foi buscar a casa para a ocasião.
Lá fora estava a nevar, mas o Inverno neste país é coisa que não se sente quando estamos rodeados pelas suas gentes. Na manhã seguinte, depois do pequeno almoço, o senhor Agahjani levou-nos a ver a velha mesquita de Bersian e só nos deixou avançar de bicicleta depois de insistirmos veementemente que não era necessário que nos levasse de carro até Esfahan. Com o entusiasmo da hospitalidade recebida, estragámos o quadro quase perfeito quando eu estendi o braço ao senhor Agahjani, que devolvi ao meu corpo como se fosse um membro embaraçoso que tinha exposto sem querer, e quando o Nuno fez o mesmo à esposa – no Irão, por norma, cumprimentar as pessoas do sexo oposto tocando-lhes o corpo, pode ser, dependendo do seu grau de tradição, ofensivo – como estrangeiros espero que tenhamos sido desculpados pelo “faux pas”.
Regressámos à estrada com o coração e a alma cheios – o sol que andava desaparecido , voltou a encher os céus, coordenando as suas cores e energia com o nosso estado de espírito.
No Curdistão Iraniano, o “não” é “sim”
– Estamos cansados. Tivemos um dia longo. Não dormimos a noite passada porque fizemos uma viagem desconfortável de autocarro de Esfahan a Kermanshah e às seis da manhã já estávamos a pedalar. Agradecemos o convite, mas já dissemos que ficávamos alojados aqui na casa dos professores e hoje seriamos péssimos convidados. Precisamos mesmo de ir dormir…
– Mas não há problema – interrompeu o jovem alto, de calças pretas largas, tradicionais no Curdistão – podem ficar lá em casa, não os vamos incomodar. Podem ir dormir assim que chegarem…
– Desculpa recusar a tua oferta, mas estamos cansados. Temos pena mas fica para outra oportunidade.
O rapaz saiu cabisbaixo e derrotado. Estávamos esgotados depois da viagem nocturna de autocarro que tínhamos feito para avançar no país no qual não nos restavam já muitos dias de visto, adicionando os cerca de 80 quilómetros que pedalámos praticamente de directa – não tínhamos nem energia nem vontade nas nossas reservas para enfrentar uma noite no seio de mais uma família de desconhecidos.
Quando nos instalávamos já no quarto, o rapaz regressou novamente, desta vez com a irmã.
– Por favor venham connosco, a nossa mãe não nos deixa regressar a casa se não os levarmos connosco.
– Ok. Ok. Combinamos assim: e que tal tomarmos o pequeno almoço juntos amanhã?
O rapaz pensou, trocou umas palavras com a irmã e depois respondeu:
– Almoço, pode ser?
– Ok. Almoço então!
– Às 11 horas passamos por aqui para vos vir buscar, está bem assim?
– Perfeito, até amanhã e mil desculpas por não aceitarmos o vosso convite para hoje!
– Não há problema, nós entendemos.
O que fizemos não foi muito cordial, percebemos isso na manhã seguinte quando despertámos com os níveis de energia regularizados e a capacidade de raciocinar no sítio certo. A nossa costela individualista tinha levado a melhor a noite passada e o cansaço não nos deixou ver para lá das nossas necessidades e da cisma de sentirmos que éramos nós e não estranhos a controlar as nossas vidas e as nossas vontades.
Isto não vem nos guias de viagem, mas o Irão é um país que se saboreia sem agendas, sem planos e com capacidade de entrega e permissão que os iranianos tomem conta da tua vida – se deixares, é isso mesmo que farão, e bem!… é um país onde o “sim” te pode levar muito além do esperado e onde aprenderás, possivelmente como em nenhum outro país, que a melhor parte da viagem não é a que se faz seguindo o trilho do “Lonely Planet” ou as linhas do mapa, como se fossem uma caderneta de cromos por completar.
Ayoob e Asra apareceram à hora marcada. Levaram-nos a caminhar na encosta e nas ruas estreitas da pequena vila-cidade de Ravansar, já no parte curda do Irão, às portas das grandes montanhas que seriam as nossas nos últimos dias de pedaladas no país, antes de nos levarem para um piquenique em família…
Ayoob era um rapaz adulto para os 19 anos da sua jovem vida, como se as coisas que ainda tem para viver já estivessem marcadas no seu olhar. Ao falar intervalava as palavras que nesse espaço se abriam para lá da semântica . Estava a estudar medicina, e tinha sido uma criança precoce, explicava-me Asra, a irmã. Ayoob estava a construir o seu futuro de forma poder ir estudar para o Canadá. “No Irão não há futuro e como curdos – dizia pausadamente e sem emoção-, somos discriminados. Um curdo, por exemplo, não pode ser polícia ou fazer parte do governo neste país … somos tratados como seres inferiores porque nunca apoiámos este governo religioso e ditador…”.
Tínhamos acabado de chegar ao Curdistão Iraniano mas cedo ficou claro que a geografia da paisagem – física e humana, era distinta do outro Irão, do Irão dos desertos e do Irão Persa…aqui, na simplicidade do piquenique preparado em família, num dia prematuro de Primavera invernal, nos risos das crianças, no convite para remover a “hijab” (quando se referem ao lenço que trazia na cabeça há já dois meses), senti-me verdadeiramente em família, a mesma paz familiar, a mesma sensação de pertença. Senti também mais familiaridade dos comportamentos femininos, mais fáceis de entender e assimilar: as mulheres que já não cobriam o seu corpo com chadores. A substitui-los,vestidos longos, flutuantes de padrões floridos, fluídos… rematados por coletes negros incrustados com brilhantes, na sua liberdade e na sua simbologia rebelde e orgulhosa. A tarde fez-se noite e, embora Ayoob e Asra tivessem que regressar à cidade de Sanandaj onde viviam e estudavam, os seus tios, um casal divertido com duas filhas, convenceram-nos a passar a noite na sua casa, convite que desta vez não pudemos, nem quisemos recusar.
A sua era uma casa moderna de divisões amplas e nada ali era muito tradicional para padrões iranianos. O homem é que cozinhou porque a mulher tinha um problema nas costas e o riso fez parte da intimidade compartida daqueles momentos em que até os trajes pessoais nos convidaram a vestir, como se quisessem que o Curdistão ficasse entranhado em nós. O traje Curdo dos homens é uma espécie de macacão de tons castanhos ou acizentadaos de calças largas com uma faixa de tecido escura que dá pelo menos três voltas à cintura a simbolizar, explicou Mardhi, a ética Zoroastra com a qual regia a sua vida: bons pensamentos, palavras e acções.
Mais uma família que nos tatuava o coração, mais uma que levaríamos connosco no peso indelével das nossas memórias – a nossa “carga” mais preciosa.
Ai estas estradas… ai estas montanhas
Foi como se tivéssemos efectuado um pacto sem pré-aviso com alguma entidade invisível, que tenha sem sabermos, poder neste estado de coisas: vai-se o frio e os dias cinzentos do inverno, mas regressam as estradas de montanha com as suas inclinações a puxar-nos para o centro gravitacional desta bola azul, quando as pedaladas nos levam na direcção oposta. E regressam também as estradas por fazer e alcatroar, que dias de sol frutíferos quando o inverno ainda é rei e senhor, é moeda de troca de valor avultado.
Sessenta quilómetros suados, quantos dos quais a empurrar (venham os russos para aqui construir estradas que já não me importo). Paveh, a cidade suspensa entre vales e encostas inclinadas das montanhas curdas, estava separada de Marivan – a última cidade antes da fronteira do Iraque -, por muitas montanhas e uma estrada, ao que parecia, ainda fechada por causa da neve. Mas descobrirmos que havia outra: mais longa, em estado incerto e por alcatroar em grande parte do percurso.
A violência para os nossos corpos da inclemência daquelas subidas que conquistámos sobretudo com a força dos braços, porque as pernas eventualmente se iam abaixo, não nos deixando grandes alternativas se não empurrar. Mas, a cada curva conquistada, a cada descida de mais um passe, a cada sorriso sincero de um pastor, a cada panorama privilegiado dos nossos acampamentos no meio da fragas nos ínfimos espaços planos que descobríamos ao final do dia, a cada aldeia entalada nas montanhas com as suas casas coloridas destoando no castanho inverno das montanhas que as suportavam – a confirmação desnecessária de que para alcançar o melhor do mundo – tem que se sofrer.
Agora é sempre a descer…
Levámos quatro dias a pedalar uns meros cento e poucos quilómetros de subidas infindáveis. Depois de mais uma curva sem visibilidade que nos fazia prometer ao corpo ser a última, vinha outra que revelava mais um possível passe distante e incerto. O desafio final veio na forma de vento contra que nos obrigou a fazer os últimos quilómetros a empurrar as burras, mesmo quando a estrada já estava suavemente alcatroada. O passe régio coberto de neve, como a cobertura de “chantilly” de um bolo de chocolate imensurável…e a estrada da descida, a fita de cetim cinzento alcatrão arremessada à montanha, pela qual as nossas bicicletas deslizariam, agora sem esforço. Nos próximos dias reinaria a descida, na sua breve e fugaz recompensa.
Nooshin era a versão Iraniana da Sofia Loren, lábios carnudos, olhos misteriosos, rosto amendoado e pele dourada. Veio ter connosco quando vitoriosos tirávamos fotos “cliché” no passe final – o esforço para lá chegar não nos deixava imaginação para mais. Fez-nos as perguntas da praxe e depois de saber que íamos passar na cidade onde vivia com o marido, Shahoo, deixou-nos o número de telefone para que os contactássemos quando chegássemos a Marivan – faziam questão que ficássemos em sua casa.
Foi o que fizemos depois de uma noite passada na aldeia de Dareki, também na casa de uma acolhedora família – a do senhor Ahmed. Ao final desse dia parámos num café-restaurante para aquecer as mãos na sua salamandra, depois destas terem congelado no “downhill”. Em menos de dois minutos tínhamos um chá quente nas mãos e pessoas à nossa volta a debaterem entre si quem ia ter o “previlégio” de dar abrigo aos ciclistas vagabundos, isto quando ainda estávamos a pensar em avançar e procurar um lugar para acampar. A coisa resolveu-se, ao que nos pareceu, de forma civilizada. O rapaz que era o dono do restaurante e o primeiro a oferecer alojamento, aceitou não nos ter a pernoitar na sua casa mas ser ele a fornecer a janta em casa do senhor Ahmed – apareceu umas horas depois com uns “kebabs” deliciosos e o pão.
Partilhámos assim mais um jantar na companhia de mulheres, filhos, mães, irmãos, sobrinhos, vizinhos que não eram os nossos por elo familiar, mas eram nossos no coração e, apareceu também o tradutor – um homem carinhoso e paciente marcado pela poliomielite e um acidente de mota que o pôs de moletas. Asad, contou-nos entre outras peripécias da sua história de vida ainda curta, mas já bem recheada por acontecimentos infelizes, como já tinha gasto mais de 3000 dólares na esperança de que o levassem (embora a palavra correcta aqui seja, traficassem) até à Alemanha, onde esperava, poder ter acesso a um melhor sistema de saúde e a uma vida melhor. Quando se sente que nada mais há a perder, o risco de perder a vida (tendo que pagar pelo privilégio) é tido apenas com pragmatismo. “Não tenho outra escolha. Ficar aqui na aldeia é uma morte lenta em si…”
Mais uma família que nos queria por mais tempo, mas os nossos dias no país estavam contados…havia que partir.
A arte do piquenique
Se Nooshin e Shahoo não nos tivessem convidado não teria sido difícil encontrar anfitriões, nos breves 15 minutos que aguardávamos a chegada de Nooshin ao local de encontro, recebemos pelo menos três convites.
Nooshin e Shahoo eram um casal jovem e moderno, fotógrafos de profissão, ecologistas de coração e acção, amantes da natureza e da escalada. Viviam num pequeno apartamento acolhedor, nas paredes do qual havia fotos da sua arte que nos ofereciam uma imagem intima do seu casamento, do seu amor…apartamento onde fomos recebidos e nos fizeram sentir como se estivéssemos na nossa própria casa.
No dia seguinte à nossa chegada a Marivan, apesar de termos planeado ficar só uma noite, não houve como recusar o convite para um piquenique em família. Alguém que tenha tido a sorte de ser convidado para um piquenique no Curdistão Iraniano sabe que este é um acontecimento familiar irrecusável. É em si, poder-se-ia dizer, uma espécie de composição viva coreografada onde tudo parece ter o seu tempo e as suas regras para culminar numa refeição tão deliciosa como animada.
Quando chegámos ao lago artificial da nova barragem, já o pai, a mãe e a avó de Shahoo estavam à nossa espera. Como numa peça de teatro, onde todos sabem o seu papel, juntá-mo-nos à beira do lago artificial azul, agarrámos em pedras e, sem excepção, tivemos que exibir a nossa proeza (ou a falta dela) a ver quem conseguia arrancar mais ricochetes às pedras que seguiam o seu curso natural rumo ao fundo do lago. Entretanto os homens mais jovens foram treinar passos de dança, que as celebrações do ano novo – “Nev Ruz”, estavam próximas, os mais velhos foram fazer da fogueira um braseiro e as mulheres, os kebabs onde em espetos metálicos se enfiaram linhas de tomates, outras tantas de cebolas e outras de carne de galinha marinada que ganharam cor e sabor nas mãos sábias de quem estava encarregue do grelhador . Foi-se servindo chá, comeram-se sementes de girassol – as pevides do médio-oriente – e, quando o cheiro denunciou o estado pronto a comer dos alimentos, pusemos o pão fino e redondo “nan-e lavash”, a fazer de prato, em cima da toalha, onde estávamos também sentados – uns mais confortáveis do que outros por terem de comer com as pernas cruzadas-, e devorou-se com avidez o que tinha acabado de sair das brasas. Sem pratos para lavar, serviu-se mais chá, e quando as chávenas estavam vazias, serviu-se a fruta da época: as laranjas e as maçãs antes de nos dividir-mos por grupos e ir-mos jogar jogos em família ou praticar mais uns passos de dança, ou simplesmente fazer uma breve caminhada pelas montanhas, que foi o que fizemos com Nooshin e Shahoo. Metade da população de Marivan, ao que parecia, repetia o mesmo ritual, cada qual no seio do seu grupo familiar. Depois do repasto, uns fumavam “nagrilé”, outros dançavam, outros jogavam, outros dormiam a sesta mas o ambiente geral era de unicidade e harmonia.
Quando o início da noite vincava já as sombras nas montanhas, regressámos à cidade. Mas fez-se, antes do regresso, mais uma pausa no caminho para exibir os passos de dança treinados e (no meu caso) aprendidos, recebendo os apitos de aprovação dos outros “piqueniqueiros” também no seu regresso à cidade. A música tradicional saia das colunas dos carros como um génio libertado espalhando o seu feitiço. Na esperança de que fosse também o génio dos desejos, pedi-lhe em segredo para que um dia pudesse ali regressar e para que nada mais do que felicidade e alegrias fosse a realidade daquela gente mágica.
A ideia que levamos deste Curdistão é que aqui há gente feliz, há gente que dança. Gente que não pede desculpa por viver à parte do preto e do acerbo religioso do outro Irão e gente no meio da qual se está muito bem.
Foi difícil partir. Se dependesse dos nossos anfitriões creio que ainda lá estávamos rendidos ao seu encanto caloroso. Mas o nosso visto estava a acabar e não nos restava mais do que um dia para sair do país, que foi o que fizemos como se tivéssemos deixado uma parte de nós, uma parte muito importante do que está a ser esta viagem, para trás.
Se a palavra hospitalidade é incompleta para conter a bondade, a generosidade e a hospitalidade espontânea e gratuita que recebemos no Irão, para o que vivemos no Curdistão Iraniano não existe ainda palavra – estas gentes foram consensualmente, na nossa percepção de viajantes e pessoas do mundo, as mais generosas, as mais hospitaleiras, as mais genuínas que encontrámos e, poder regressar um dia e revistar estes amigos ou tê-los perto de nós e partilhar um pouco do nosso universo, seria um momento muito feliz e fortuito nas nossas vidas!
Até que esse dia chegue seguimos nas nossas pedaladas rumo a casa, e as próximas seriam num país que atravessámos apenas por querer escapar ao Inverno da Arménia, da Geórgia e do Azerbaijão – o Iraque. Será que as gentes curdas deste país, na zona dos quais iríamos pedalar, seriam tão acolhedores? O que nos esperaria na única parte segura deste país assolado pelo conflito armado e a guerra civil? Mais na próxima história…