Quirgui o quê?
Confesso: se há uns meses atrás me perguntassem onde ficava o Quirguistão, ou qualquer outro dos seus países vizinhos, a minha resposta seria um vago – “algures na Ásia Central…. Um daqueles países que surgiram depois do desmembramento da União Soviética, entre a Rússia e a China, talvez?”. Depois, a esse espaço obscurecido no meu mapa-mundo mental, a minha imaginação adicionaria imagens de céus pardos, cidades cinzentas, prédios cimentosos com a densidade do inverno urbano, povoadas por gentes com ar sério e pesado.
A imagem real do país não podia ser mais diferente. O Quirguistão é quase o oposto – as cidades são poucas e sim, são cimentosas, mas o cimento está escondido por carvalhos majestosos que alinham as ruas de uma arquitetura que nunca foi bonita, mas que de qualquer forma não obscurece o azul do céu. As pessoas, longe do ar sério e pesado, são simpáticas e curiosas ainda não totalmente afetadas pela indiferença que se sente nos grandes centros urbanos e, o país grita natureza em estado pouco alterado.
E afinal este é o país dos pastores nómadas com chapéus de gnomo (o al-kapak), que os séculos não vincaram à invasão dos impérios passageiros e dos seus déspotas e, que ali metidos entre montanhas, como centauros conduzindo manadas de yaks, vacas, ovelhas, vivem uma vida onde os ponteiros do relógio apontam não a números mas à chegada do inverno com as suas neves, quando é tempo de levar as manadas para terras mais baixas e desmontar a casa móvel de feltro e peles (os yurts) e o regressar às pastagens quando estas voltam a estar abundantes e o sol e a temperatura do termómetro sobem por estas acima.
Da fronteira a Sary Tash e os planos de viagem no país
– Bem vindos ao Quirguistão! disse-nos o oficial de bochechas vermelhas, com um chapéu de pele ao estilo russo enfiado na cabeça, da janela de um vagão de comboio reciclado como escritório de posto fronteiriço, ao qual se chegava trepando uns quantos pneus a fazerem de escada.
– Ah, Portugalia! Uhmm Cristiano Ronaldo, Figo, harashó, harashó (bom em russo)…
Da sua boca irradiou um sorriso difícil de evitar olhar sem esbugalhar os olhos por se encontrar recheado de dentes de ouro. Mais uma vez os heróis contemporâneos do nosso país aproximavam as nossas fronteiras e a arrecadavam-nos sorrisos (mesmo que amarelos).
Passaporte na mão, carimbo fácil de entrada – o único que obteríamos desta forma no seguimento da nossa passagem pela Ásia Central – seguimos estrada fora com o sol a meio círculo por detrás do maciço rochoso ondulado coberto de neve que eram as Pamir e as Altay, as montanhas que nos rodeavam.
O primeiro acampamento foi a poucos metros da estrada e a poucos quilómetros da fronteira, escondidos, como nos foi possível, por uns arbustos e um rio seco. O plano era chegar no dia seguinte a Sary Tash, uma pequena povoação no cruzamento de estradas que nos levaria, quarenta quilómetros depois até ao Tajiquistão, mas o vento forte de frente e a subida interminável ditaram mais um dia de pedaladas e mais um acampamento na altitude e no silêncio.
Os nossos dias e os nossos quilómetros pedalados no Quirguistão seriam breves porque explorar o país a norte ficava fora de rota, mas antes de seguir para o próximo, tínhamos ainda que fazer um desvio até à capital, Bisqueque, para arranjar o maior número possível de vistos, sobretudo o do Tajiquistão. Esse desvio seria feito em transportes públicos, numa viagem repartida entre Osh, a segunda maior cidade do país, e a capital.
Osh, a beleza nem sempre é obvia
A nossa passagem por Osh foi breve. Osh é uma cidade difícil de descrever, mas numa tentativa diria que é a mistura entre uma cidade de pós guerra (curiosamente, embora não seja por essa razão, de quando em vez há aqui confrontos violentos entre a população quirguiz e a população uzbeque), pós soviética e pós rota da seda.
Do passado já pouco ou nada resta e só mesmo com muita imaginação se conseguem visualizar as caravanas carregadas com especiarias, ouro,vidro, seda, entre outros, que faziam a ponte entre o ocidente e o oriente, a passar por aqui a caminho de Kashgar. Para remanescer à rota da seda, resta um bazar distribuído por contentores que fazem lembrar um centro comercial num bairro de lata, onde mal passam duas pessoas lado a lado, quanto mais camelos. Os ” boulevards” e os prédios em cimento decrépitos -noutros tempos símbolos da funcionalidade arquitectónica soviética, mais não são agora que meros fantasmas que ainda assim albergam famílias e lhes servem de casa. Mas a cidade está cheia de vida e gente nas ruas, como se a decadência do que as rodeia estivesse a acontecer noutro sítio. E dando algumas concessões às convenções estéticas, de certa forma Osh, mesmo não sendo uma cidade bonita, é pelo menos uma cidade interessante.
Bisqueque e a nossa lista de coisas para fazer
Fomos recebidos por um par de olhos cheios de brilho, um sorriso caloroso e um ” ponham-se à vontade, como se estivessem em vossa casa”. A Angie, uma jovem, energética búlgara a viver e a trabalhar em Bisqueque, na Universidade Americana como professora de Tecnologia da Educação, decidiu abrir as portas do seu pequeno apartamento a ciclistas e ciclovagabundos, quando se mudou para a cidade, há dois meses atrás. E entre a cozinha, onde nos preparou um “plov” de vegetais delicioso e a pequena sala, que servia também de quarto, comemos, contámos histórias de vida, aventuras de ciclo deambulações – conversa aliás, foi coisa que não faltou até às altas horas da noite, nessa, e nas oito noites seguintes que passámos na sua casa, depois de nos sentir-mos verdadeiramente bem vindos.
Na manhã seguinte, a lista de coisas a fazer era extensa e ambiciosa, estávamos ali com uma missão. Havia que fotocopiar passaportes, tirar fotografias, comprar dólares, ir à embaixada Tajiquistão, ir à agência do Irão, telefonar à embaixada do Uzbequistão para pedir uma entrevista, arranjar o eixo da roda traseira da bicicleta do Nuno. Não fomos bem sucedidos em todas as nossas missivas, mas o selo para o Tajiquistão mais a autorização para atravessar as Pamir (menos 130 euros) já ocupava o lugar de duas páginas nos nossos passaportes e isso era o mais importante.
Para lá da arquitectura soviética – viagem à minha infância
Bisqueque vista a olho nú é mais uma cidade pós-soviética construída nas franjas do império e à qual não parece ter sido dada grande atenção salvo por um ou outro monumento mais refinado e um ou outro edifício governamental mais elaborado. Ainda assim, numa malha tipo “waffle” belga, existem ruas longas e largas, onde grandes árvores que projectam sombras no chão e nos edifícios os enchem de formas que parecem origamis abstractos. Nos dias de sol que lá passámos, eram muitos os cafés e as esplanadas de ar quase mediterrâneo onde homens e mulheres, alheios aos pudores da religião que dita regras de conduta no resto do país, conviviam e socializavam e onde ao contrário do resto do país, os cabelos longos das mulheres esvoaçavam ao vento sem os lenços a interromperem-lhe o trajecto.
Um dia, quando regressava a casa da Angie, a meio da tarde, entrando pelo gradeamento enferrujado do condomínio onde vivia reparei numa coisa que me parou no tempo e me transportou directamente à minha infância: ali, escondido nas traseiras dos prédios feios deixados pelos russos, onde cresciam árvores e canteiros mal plantados – duas ou três crianças brincavam num canto de um passeio com uma construção feita de brinquedos partidos mas reutilizados e roubados às suas cabeças e imaginações.
Observando os seus movimentos com mais atenção, vi como tinham criado cantinhos só seus à volta do bairro, como um esconderijo a um canto de um canteiro tapado com um saco velho de serapilheira, uma casa imaginária talvez, com mais restos de brinquedos e objectos defuntos – agora devolvidos uma nova vida e a uma nova função, ou até uma lojinha de flores na berma de um outro passeio.
Percebi várias coisas importantes nesse momento: uma delas é que a rua onde cresci e vivi grande parte da minha vida – a Rua João XXI, também era assim – não seria a mais bonita, mas nos meus olhos de criança isso pouco importava – o importante é que nela existiam muitos cantinhos, esconderijos e lugares só meus e dos meus amigos onde podia brincar e onde podia…viajar. E percebi também que na minha rua e nas ruas do mundo moderno já não há crianças a brincar nas ruas. Escondidas entre quatro paredes, no medo que os pais lhe incutem do mundo lá fora e dos estranhos, refugiam-se no mundo virtual dos jogos de computador, onde não se toca, não se cheira, não se saboreia…viajarão certamente numa realidade virtual feita para estimular o sentido visual, mas o mundo real deve parecer-lhes aborrecido e desmaiado por comparação. E percebi ainda que afinal viajar, este desejo que me vem movendo a vida, é tão simplesmente o desejo de voltar a ser criança, ou pelo menos, o desejo de recriar no contexto da minha vida adulta, o sentimento puro da descoberta, de ter um cantinho especial só para mim feito de mundo, de amizades, de explorar e de ter um universo diferente daquele que é o conforto do que se conhece.
Quando uma pequena intervenção médica nos faz lembrar a canção “Eu tenho dois amores”
Depois de vinte minutos de espera o Nuno deixou a sala do consultório com o diagnóstico confirmado e as curas possíveis. Vinte minutos antes tínhamos entrado no edifício da clínica, com cheiro a novo e com o chão a reluzir, onde fomos obrigados a calçar umas sapatas de plástico verde, daquelas que se usam para ir para as bancadas das piscinas e o Nuno, acompanhado por uma médica morena, alta e viçosa, e uma secretária loura, também alta e viçosa (que ia servir de tradutora), desapareceu corredor fora. Andava há já uns dias a queixar-se de umas dores no rabo e uma inspecção caseira mais detalhada deixou-nos preocupados ao ponto de termos decidido não deixar Bisqueque sem ver um médico.
Hemorróidal aguda – o nome pouco glorioso da maleita que lhe afectava o traseiro (glórias à parte, também Napoleão sofria desta pouco prazenteira condição). No cardápio das curas havia a opção de ir à faca, tendo de dispensar no processo 100 euros, ou fazer um tratamento com antibióticos que poderia levar até três semanas a surtir efeito, tempo durante o qual era altamente desaconselhado andar montado no selim de uma bicicleta. Com uma semana de recuperação e a possibilidade de fazer a intervenção no mesmo dia, os pós e os contra foram rápidos de calcular – à faca então!
De regresso ao consultório depois da decisão tomada, a médica fez-lhe uma outra proposta à laia de: “se me pagares directamente, dinheiro na mão, agarro no bisturi e faço-te a coisa por metade do preço, aqui e agora, sem mais demoras, assim como quem não quer a coisa”. Posta a coisa nestes termos, e um desconto é sempre um desconto, seja por uma peça de roupa ou para a remoção de um naco de rabo, e adicionada a dificuldade de recusar uma oferta feita de forma tão lacónica por alguém tão assertivo e bom de se olhar- o Nuno aceitou. A secretária, a loura também viçosa , serviu de enfermeira improvisada e reticente…não foi com entusiasmo propriamente dito que aceitou segurar as nádegas ao Nuno enquanto o bisturi nas mãos da médica se lançavam à veia extraviada, mas no meio daquele cambalacho, era o que se podia arranjar, e o Nuno coitado, dignidades de lado, podia usar os efeitos da anestesia e fantasiar, como o Marco Paulo, que tinha dois amores – um louro e outro moreno.
Um “pós operatório” pouco auspicioso
Não devem ter passado mais de trinta minutos entre a entrada do Nuno na sala de consultas para a pequena intervenção cirúrgica e o seu regresso. Vinha com um ar atordoado, como era de esperar, mas assegurou-me que estava bem e que a médica tinha dito que podia ir-se embora. Descemos as escadas da clínica avançando lentamente rua abaixo. Já íamos a uns bons metros de distância quando me diz que não se está a sentir bem. Consigo convençê-lo a caminhar de regresso à clínica, mas não chegamos a tempo – desmaiou ali no meio da rua nos meus braços. Como demorava em recuperar os sentidos, esbracejei feita doida à primeira pessoa que ia a passar, um rapaz curiosamente vestido de branco, e vou a correr para a clínica pedir ajuda.
O Nuno, desperta uns segundos mais tarde nos braços de um estranho vestido de branco, sem saber o que lhe tinha acontecido. Mas antes que as suas preocupações o deixassem ainda mais desorientado, reapareci com um batalhão de enfermeiras que o levaram a braços de regresso à clínica. Deitaram-no numa sala médica e ligaram-no a uma série de cabos enquanto me faziam perguntas sobre possíveis causas do desmaio e se asseguravam de que não havia nada mais grave. No final dos resultados da maquinaria avaliados, tensão baixa, foi a explicação encontrada para o desmaio. A médica entretanto reapareceu, com a preocupação estampada na cara – era óbvio que a operação feita ao turista “por baixo da mesa” de forma discreta era agora conhecimento geral da clínica. Mas procedimentos pós operatórios duvidosos e esquemas à parte o certo é que a médica nos levou a casa e nos foi visitar dois dias seguidos para fazer o tratamento ao Nuno em pessoa e assegurar-se que recuperava sem mais imprevistos.
E assim foi. Depois de quatro dias o Nuno estava como novo e nós prontos a regressar às nossas bicicletas para enfrentar os colossos montanhosos que são as míticas Pamir.
Contas feitas à vida
No meio do azar, e certamente por não ter sido o meu rabo que foi à faca, pareceu-me que tivemos uma sorte tremenda. As coisas podiam ter corrido infinitamente pior estivéssemos nós no meio das montanhas, a horas, senão dias, do próximo sítio médico decente. Por outro lado, se tivéssemos num país moderno, uma pequena operação como esta tinha-nos saído uma pipa de massa e, dadas as circunstâncias, uma operação em modo desconto, mesmo com desmaios imprevistos, até acabou por calhar bem, financeiramente falando. Mas sobretudo e, este é sem dúvida o aspecto mais importante – estávamos em casa de uma amiga – um anjo na verdade -que recusou que fossemos para um hotel recuperar da operação, mesmo tendo que estender por mais dias a nossa já longa estadia, e coincidir com outro ciclista – o Moritz, com o qual já se tinha comprometido alojar. Quando a bondade é muita, não há casa que seja pequena. São estas amizades que vamos estendendo como uma manta de retalhos quentinha e colorida pelo mundo fora, o que de melhor retiramos destes contratempos e certamente, desta viagem.
Entretanto, conseguimos encontrar uma peça e um mecânico bastante decentes para arranjar o eixo da roda traseira do Nuno – estava como nova; tínhamos tratado da carta de convite para o visto do Uzbequistão através de uma agência (não nos cediam entrevista caso não tivéssemos esta carta) e, através de outra agência, a carta de convite para o Irão. Só poderíamos tratar destes vistos, assim com o do Turquemenistão em Dushanbe, a capital do Tajiquistão, e rezar para que corresse tudo bem, se não, mais uma vez, teríamos que pensar em alguma rota alternativa, ou pior, ter que por as bikes num avião.
Com o Nuno de volta ao normal, seguimos para Sary Tash, rumo às nossas bicicletas para dar início a uma das etapas mais antecipadas da nossa viagem. Na próxima história – o Diário das Pamir.