Reviver o passado para compreender os sonhos do presente
– Estás perdida?
– Não. Ando só a passear.
– E como é que te chamas?
– Joana Sara.
– Quantos anos é que tens?
– Três.
– E qual é o nome do papá e da mamã?
– A minha mãe chama-se Elizabete e o meu Pai Beto. Estou na tenda do lote número 125.
– Pede-se a comparência dos pais da menina Joana Sara da tenda do lote 125 à recepção…
E lá ia a minha mãe buscar-me, pela milésima vez, à recepção do parque de campismo. O processo repetia-se até todos os funcionários me conhecerem e perceberem que mesmo sendo pirralha era perfeitamente capaz de dar as minhas voltas e regressar a poiso seguro.
Foi bom crescer assim com a rédea solta, autorizada a explorar, a não sentir medo, a não ser apaparicada a cada trambolhão ou a cada joelho arranhado. A desenrascar-me – um verbo que define não um, mas vários conceitos úteis que te permitem saltitar pela vida “graciosamente”.
…
Tinha conseguido convencer a minha mãe a juntar-se a nós e a partilhar um pedacinho deste sonho. Deste projecto levado a cabo pela paixão das viagens. Queria mostrar-lhe outro mundo fora das fronteiras do velho continente que ela ainda não tivesse tido a oportunidade de conhecer. Queria abrir-lhe o apetite. Queria matar saudades. E queria, sobretudo, que ela entendesse e sentisse na primeira pessoa o porquê desta escolha de vida. O porquê das viagens.
Deixámos as bikes em modo pausa em Koh Tarutao, uma ilha bem na ponta sul da Tailândia. Pusemos os alforges às costas e apanhámos um comboio cama para mais de 19 horas de viagem. Chegámos a Bangkok, uns dias antes da chegada da minha mãe, de onde partiríamos para três semanas a viajar na Tailândia.
Como perder uma mãe num aeroporto
Depois de mais de onze anos a usar aeroportos com regularidade julgava-me versada nestes edifícios de utilidade pública. Sítios de reencontro, de chegadas, de partidas, de boas vindas, de despedidas, até de solidão. Por isso, quando a minha mãe, preocupada, me disse do outro lado do telefone – e como é que a gente se encontra, aquilo deve ser grande? – Eu respondi no meu melhor tom de perita, cheia de segurança – Ó mãe, encontrar-nos-emos como sempre nos encontramos, lá estarei à tua espera, não te preocupes, é só um aeroporto, não é um ralo sem fundo.
Chegámos a tempo e horas ao aeroporto de Bangkok, no entanto, ficou claro que o reencontro não ia ser fácil, não só era gigantesco, como a área das chegadas era uma confusão de gente – a chegar; outro tanto de gente – a esperar com cartões a anunciando o nome dos recém-aterrados; mais todas as agências de câmbio, de transferes, de reservas de hotéis que se repetiam e intercalavam, tornando inútil usá-las como ponto de encontro ou referência.
Para tornar as coisas num desafio ainda maior o segurança não nos permitiu estar à espera em frente ao átrio das chegadas e, o crédito do telemóvel acabou algumas mensagens depois – pelo menos ficámos a saber que a minha mãe já estava à nossa espera.
Procurámos por todo lado. Subimos , descemos e voltámos a subir os seis pisos, e nada.
Era oficial – o aeroporto sempre era um ralo sem fundo por onde desapareciam mães.
E agora?
– Lembrei-me de fazer um anúncio nos altifalantes – qualquer coisa como – pede-se a comparência da mãe da menina Joana Sara ao ponto de encontro do piso 5, a sua filha está desesperada, por favor apareça!
Uma hora depois, mais coisa menos coisa, sem contar com o tempo de espera e sem recorrer a altifalantes, finalmente encontrámos a minha mãe calma e serena à nossa espera. Para quem tinha acabado de fazer uma viagem de 16 horas parecia que tinha acabado de sair da cama. Vinha cheia de energia e entusiasmo.
O abraço apertado que se seguiu conteve os onze meses de ausência física e as muitas saudades. A noite foi um espaço pequeno para pôr toda a conversa em dia e comer os mimos culinários que trouxe na bagagem que ela e a família enviaram.
Para que fique no registo e, para abrir os apetites, aqui fica a lista: carapauzinhos fritos, azeitonas da senhora da praça de Leiria, pastéis de bacalhau, pastéis de nata, pão caseiro, queijo da serra da Estrela (enviado pelo meu primo Nuno), broinhas de batata-doce (feitas para a ocasião pela minha tia Gabriela), duas chouriças, duas garrafas de vinho (uma de branco, outra de tinto) e, acho que me devo estar a esquecer de alguma coisa porque tivemos jantar e almoços para uns três dias seguidos.
Começar em Bangkok
Três semanas é um período de tempo razoável para explorar a Tailândia com a mochila às costas, mas não dá para ver tudo. Para onde ir? – como o norte era longe, potencialmente muito turístico e afastado das praias, decidimo-nos pela parte a oeste de Bangkok.
Natureza e sítios pouco turísticos eram os requisitos da minha mãe, mas havia também toda a riqueza cultural e humana do país. Banguecoque foi um bom sítio para começar.
Como ficámos perto da chinatown, deambulámos pelas suas ruas onde os negócios são oficinas, lojas e casas – espaços multi-facetados – apesar de serem um só. A arquitectura é caótica e desarrumada e prescinde-se da privacidade e do espaço, mas nunca do sentido de comunidade e de família. Este aspecto, o da família, o da aldeia dentro da grande cidade, são parte íntegra da manta de retalhos gigante que é esta metrópole asiática.
Apanhámos um barco, em direcção ao Grande Palácio, no rio transbordante, denso de cor acastanhada, com trânsito flutuante tão intenso como uma estrada em hora de ponta e que divide a cidade – o Chao Phraya .
Prescindimos fazer uma visita à moradia oficial do rei assustados com as filas longas e os autocarros carregados de turistas à espera para entrar. Fomos ao templo Wat Pho, mesmo ali ao lado e com um número consideravelmente menor de visitantes. Neste, diz-se que existe o maior Buda reclinável de Banguecoque, e sim, atesto que é grande e forrado a ouro. E existe também um Buda em esmeralda e outras centenas de Budas dourados espalhados pelo complexo.
É impossível não ficar impressionado com toda decoração exótica e intricada do lugar e ver beleza naquele arraial de cores e formas tão diferentes da arquitectura ocidental. Mas parece-me ironia do destino e, certamente um grande mal-entendido, que os profetas das religiões principais do mundo, Buda incluído, tenham apregoando aos valores da simplicidade e da humildade e, os edifícios que se constroem em seu nome, e em nome dos valores que representam, sejam precisamente o oposto.
Ainda fomos dormir a sesta num dos poucos jardins. Depois visitámos mais mercados e fizemos a viagem de regresso de barco. Era fim de tarde e o céu tinha uma luz rosada que reflectia os templos e os edifícios da margem do rio nas suas águas.
Depois de uns quilómetros valentes nas pernas estávamos prontos e desejosos para o segundo round de culinária” lusa import-export”.
Portugal na Tailândia
De uma cidade viva seguimos de comboio para uma cidade em ruínas – Ayutthaya, que se pronuncia aiutia. Refraseio. A cidade em si não está em ruínas, está bem viva e a mexer, o que está em ruinas são alguns templos, palácios e áreas urbanas que fazem parte dos vestígios do que foi, a partir do século doze ao seculo dezasseis, a capital do império de Sião que chegou a dominar partes da Birmânia, do Laos e eventualmente, do Camboja. Posteriormente destruída por invasores birmaneses e reconstruída na actual Bangkok.
Nos dias de hoje, as ruínas que sobrevivem, e o que resta desta cidade histórica, fazem parte do património da humanidade.
O que descobrimos também com interesse, foram as ruínas e os restos de um bairro Português. No complexo arqueológico as ossadas dos nossos antepassados, as estruturas de igrejas e conventos e, uma pequena capelinha onde alguém ainda vai acender velas, atestavam ao passado da diáspora Portuguesa. Viveram ali mais de 3,000 conterrâneos entre os séculos quinze e dezasseis. Eram comerciantes, construtores de barcos, mercenários e clérigos, representando o que foi a primeira nação ocidental com um entreposto na capital do reino. Quando vieram as invasões birmanesas, muitos ficaram e perderam a vida a defender a cidade..
Mas estas são glórias de outros tempos. Tudo acabou, como sempre acaba. Ou melhor. Tudo mudou…como sempre muda.
Natureza e turistas russos – uma má combinação
Com a nossa curiosidade, por cidades, templos, ruinas e confusão, saciada decidimos ir até ao Parque Nacional das Erwan Falls na expectativa de escapar às hordes de turistas que pareciam acompanhar-nos onde quer que fossemos.
Não começou bem. À entrada do parque contamos mais de vinte autocarros de turistas russos. Possivelmente a pior espécie de turistas em massa que pode existir no mundo inteiro. Mal encarados, miseráveis e incapazes de respeitar os costumes locais. Os sinais sobre a etiqueta de vestuário eram bem claros – calções e t-shirt, ou saia e t-shirt – porque muitas partes do parque eram consideradas sagradas. O que se via era um espectáculo grotesco de homens de barriga rotunda sob calções de tanguinha speedo e mulheres roliças de bikinis quatro números abaixo do necessário. Ambos com o hábito bizarro de posar a cada cinco minutos como se as fotos fossem sair na capa da próxima revista Vogue.
O que nos valeu é que depois das três da tarde os autocarros com a turistada debandaram e pudemos finalmente ouvir o som da água, da passarada e do vento a restolhar as folhas das árvores – natureza sem gente. Finalmente.
E-Thong e Koh Chang, felizes nas montanhas, felizes no mar…
Seguimos à boleia para mais um parque Natural, o de Sai Yok, nas margens do rio Kway, o famoso rio da ponte. Aqui ficamos num bungalow agradável rodeado por árvores, casas de madeira flutuante e cascatas.
Continuámos depois para E-Thong, uma aldeia num canto remoto das montanhas que fazem fronteira com a Birmânia e, onde parte da população é birmanesa. É uma aldeia turística, mas sem turistas. Tem um templo pequenino no topo de um penhasco, com uma escadaria ladeada por estátuas de monges que parecem uns “dráculas” de dentes escondidos. As ruelas são estreitas e sinuosas, com crianças curiosas a espreitar das janelas e das portas. As pessoas são simpáticas e de sorriso largo. E os cães e os gatos preguiçosos a dormir à sombra.
Depois de um dia, uma noite e uma manhã a alternar entre vários transportes chegámos finalmente ao paraíso – Koh Chang – uma das muitas ilhas do mar de Andaman (que não é a mesma ilha homónima do mar do Golfo da Tailândia que parece ser o oposto pelas descrições).
Esta Koh Chang é uma ilha fora dos radares turísticos, supostamente porque o mar não é tão azul-turquesa como noutras ilhas. Azul ou não, para nós foi a ilha perfeita para passar um Natal exótico em família, pôr as leituras em dia, dar uns passeios pelo meio da selva, conhecer outros viajantes e claro, dar uns mergulhos refrescantes. Vida boa – resumindo e concluindo.
Adeus Mãe. Volta sempre!
O regresso a Bangkok foi por arrasto. Afinal ninguém regressa de boa vontade ao caos infernal de uma mega metrópole quando se esteve no paraíso.
Voltar a passar férias com a minha mãe foi uma experiência muito boa sobretudo porque era algo que não fazia há mais de quinze anos. O encerrar de um ciclo. Ums reflexão sobre quem sou, de onde venho…
Não creio que existam muitas mães no mundo ocidental da sua geração que não se importem de dormir em espeluncas baratas, que viagem em todo o tipo de transporte – não só não levantando nenhum tipo de obstáculo, como, sobretudo, disfrutando a experiência – à boleia, de moto, de tuk tuk, de autocarros de galinhas sobrelotados, de barco precários… (agora entendo de onde é que me vem este “abraçar” das situações).
Mas também foi interessante viajar com alguém que sai pela primeira vez para fora das fronteiras do velho continente. De sentir a sua curiosidade, o seu entusiasmo, a sua fome por sabores exóticos. É como viajar com um criança e reaprender a viver e a sentir as coisas como se fosse a primeira vez. Nunca experimentei tanta fruta nova, tanta comida diferente em tão pouco tempo ou falei com tanta gente para saber o nome das coisas e as direções. Fez-me reavaliar a minha forma de estar e de ser como viajante…
Uns dias depois recebia um e-mail seu …
“continua a saborear por mim, a água e os verdes da minha Tailândia. Quanto mais passa o tempo , mais gosto da minha viagem . Tanto exotismo! Gostei das pessoas. Adorei estar convosco. O balanço para mim foi 1000% positivo; superei as minhas expectativas. Agora sim, entendo melhor o porquê do vosso projecto!”
Estava encerrado este círculo mas abria-se um círculo de novas possibilidades para ambas. Sobretudo o de voltar a partilhar e descobrir o mundo juntas!
Obrigada por tudo! Obrigada por seres quem és – uma mulher muito especial e a melhor mãe do mundo! Obrigada pelo dom da vida!
E vê lá se começas a treinar, que a próxima é sobre duas rodas!