De Khorog a Dushanbe – o erro de pensar que o mais difícil está feito…
Há alturas em que tenho a sensação de estar num sítio maior do que nós e a nossa compreensão das coisas, um sítio tão para lá do espaço, do tempo, da dimensão real… um sitio à parte, como uma catedral de proporções infinitas com tecto de céu. É como se a nossa presença ali fosse um sacrilégio, que os ruídos dos solavancos das bicicletas, o chiar da correntes com a falta de óleo, as respirações ofegantes nas subidas, os nossos corpos sem dias de banho – quando tudo ali devia ser pureza, excepto o som das admoestações do vento, do canto efervescente da água no seu longo percurso rumo ao oceano, do chilrear dos pássaros com o seu picotar agudo do silêncio. A estrada que pedalámos de Khorog a Shuroabad rumo a Dushanbe, atravessa um desses sítios raros, onde nada importa, só o que nos rodeia. Um sítio onde nos esquecemos de tudo para viver apenas no seguimento do que se encontra ao longo do que a estrada trilhou.
Quando deixámos Khorog, depois de quatro dias de descanso a aguardar um dia bonito de sol para partir, fomos com a mente vazia de expectativas. Não fazíamos ideia do quão bonito ou quão duro os próximos quilómetros seriam. A estrada que aguardava por nós era mais apropriada a veículos numa missão a Marte, do que bicicletas, ou camiões, ou ” Ladas” – estava num estado terrível, e as imagens que de lá guardamos são mais coerentes num universo fictício do que nas imagens naturais de um mundo real. Mas neste ponto é curioso notar também a correlação entre dificuldade física e beleza, como se fosse algo que tivesse que ser merecido.
Andar no topo das montanhas das Pamir tinha sido os ponto alto esperado onde o pior das nossas expectativas não se tinha concretizado. A etapa que se seguiu foi o revés, sem grandes expectativas, o mais impressionante, ainda estava por pedalar e revelou-se nos vales profundos cavados pelo rio Panj e a vida de outro país, que víamos mas não tocávamos – o Afeganistão.
“Voyeurismo” de viajantes: Afeganistão, o país do outro lado do rio
Nunca antes viajar num país se assemelhou tanto a viajar em dois (e ao mesmo tempo).
O Tajiquistão e o Afeganistão partilham fronteiras numa linha que os separa ao longo de mais de 1300 quilómetros – grande parte dos quais ao longo do rio Panj. Pedalámos quase 400 desses quilómetros numa estrada que ficará para a história das nossas viagens como das mais marcantes. Um parapeito sobre o rio Panj e o Afeganistão.
As pedaladas começaram tranquilas com a estrada a subir e a descer suavemente, ainda sobre um tapete meio esburacado de alcatrão, ao longo do qual, sempre que as margens do rio o permitiam, se aninhava uma aldeia. À hora de almoço comemos num areal junto ao rio, com os olhos postos no outro país. Um jovem apareceu na outra margem e acenou, tentando encurtar a distância que pouco mais era do que 50 metros de água.
No final do dia, as margens estavam já reduzidas ao espaço criado pelas estradas na confluência de duas montanhas empinadas, separadas apenas pelo turbilhão aquático que era o rio.
Na manhã seguinte o sol demorou a espalhar os seus raios na direcção da nossa tenda porque as montanhas faziam de cortinas que não se abriram. Desistimos de esperar que o sol nos aquecesse, e fizemo-nos à estrada assim que terminámos o pequeno almoço .
O vale foi apertando e as aldeias, na falta de espaço, desapareceram, nele, o movimento de luz e sombras mudando de posição como um relógio solar de proporções colossais. Seguimos sentindo que era no nosso corpo que se estava a dar aquela redução de espaço, aquele apertar de encostas . E seguimos com os olhos postos na outra margem, onde agora em vez de estrada havia apenas o espaço para um par de pés (dois, quanto muito) caminharem , entre a parede vertical e o precipício para o rio. Era um fio ténue onde a vida circulava como se por um fio, como se o único que aquela gente soubesse fazer fosse viver a vida numa acrobacia eterna entre penhascos.
Ocorreu-me pensar que aquilo era uma ilha escarpada totalmente isolada do seu centro, onde habitava o monstro (a guerra que grassa o país desde há séculos) e que os riscos e as limitações de se viver ali, se sobrepunham ao de viver em guerra.
A estrada do nosso lado eventualmente deteriorou-se para se tornar numa linha branca de altos e baixos irregulares, proporcionados pelas derrocadas e as pedras soltas que agora preenchiam o percurso. Sujeitos também aos humores inconstantes do tempo, que umas vezes nos brindava com mini-tornados poeirentos, outras com chuva torrencial que desaparecia tão rapidamente quanto aparecia -perdemos a noção do tempo, e tal como os afegãos do outro lado, também nós flutuávamos na estrada como se não fossemos nunca sair dali.
Quantas vezes parámos hipnotizados com o que víamos na outra margem? E quantas vezes parámos para dizer adeus, ouvindo o eco das nossas vozes e das vozes do outro lado? – é difícil de dizer… assim como é difícil imaginar os seres pequenos com molhos de lenha às costas, maior do que o volume dos seus corpos, percorrendo ágeis o pequeno carreiro esculpido. Ou os homens de turbante na cabeça e vestes longas, guiados por burros e as suas cargas. Ou os rebanhos numerosos, deixando na sua passagem nuvens de poeira, trepando o caminho estreito. Ou a escola feita em adobe de onde no final da lição as crianças saíram a correr. Ou as aldeias em escadarias que mal se distinguiam das montanhas onde estavam incrustadas.
Quando finalmente a nossa estrada se afastou do rio e como consequência, do outro país que viajávamos com os olhos, fê-lo presenteando-nos com uma subida dolorosamente íngreme e esburacada, como um obstáculo à nossa partida.
Guia de sobrevivência : controles policiais
Controles policiais são parte incontornável da vida de um viajante na Ásia Central . Na área em que o Tajiquistão faz fronteira com o Afeganistão esse controlo é redobrado como forma preventiva da entrada de radicais islâmicos e substâncias ilícitas – nomeadamente a heroína.
Ter um sorriso amarelo a jeito, embora não essencial, assim como dois dedos de conversa, parecem fazer com que o processo se desenlace com a maior brevidade possível. Para quem não fala russo, que é o nosso caso, um “ruski –niet” reduz a conversa a um dedo, o que parece também chegar.
Para se ficar com uma ideia do que são estes encontros, passamos a descrever cenários possíveis e variantes, que vivemos nos postos de controle do Tajiquistão ao longo da nossa viagem entre Khorog e Dushanbe.
O mais comum…
Chega-se ao posto, que é normalmente uma casota em ruínas, com uma cancela ferrugenta, de onde sai um guarda barrigudo com dentes de ouro e um chapéu na cabeça que parece uma antena parabólica da TV Cabo.
-Assalamalecum, dizemos nós (a paz esteja consigo )
-Alecumsalam, responde o guarda (que a paz esteja com vocês também)
– Genaa? e aponta para mim, olhando para o Nuno, ao que eu respondo: da, mooch. E aponto para o Nuno.
(referem-se ao nosso estado marital, genaa –mulher e mooch-marido, não o somos, que fique claro, mas para estas circunstâncias passámos a ser)
Depois pedem o passaporte, perguntam a nacionalidade, falam do Cristiano Ronaldo. Quando o passaporte é entregue e a palavra “dasvidania” (adeus) é proferida, sabemos que estamos livres para partir.
Ou, se está frio; ou se o guarda é preguiçoso; ou se quer impressionar os colegas com os ciclistas vagabundos que encalharam na cancela, levam-nos posto adentro (a tal casota em ruínas que parece ser o estado geral destes edifícios), apontam os detalhes do nosso passaporte, num livro que parece um livro de visitas, numa escrita que parece a letra de uma professora primária – bonita e cheia de arabescos. Fazem exactamente as mesmas perguntas e perguntam também se lhes vendo o meu anel! Desta vez o polícia era alto e magro, mas com os mesmos acessórios (dentes de ouro e antena parabólica na cabeça) e não tirava os olhos da minha mão. Antes de começar a ficar preocupada, apontou-me para o dedo onde o bendito anel estava e começou a fazer gestos com as suas mãos, parecidos com o gesto rudemente usado para a copulação…voltei a ficar preocupada, até perceber que queria que tirasse o anel para o ver. Sem outro remédio passei-lho para as mãos e o homem perecia verdadeiramente impressionado com o que via –“harashó, harashó” (bom,bom). Quanto é que eu queria para o vender ? Niet, niet,…grandmother, grandmother, family, não to posso vender, é um anel de família. – Money, money. – No, not possible, niet money, niet money. Eventualmente desistiu da compra. Ainda levou o anel à dentuça de ouro para confirmar a sua qualidade e disse algo que me pareceu, “que pena”, antes de o devolver. Limpei o anel às calças antes de o enfiar no dedo (eu sei que as cáries não são contagiosas, mas nunca se sabe). O engraçado da história é que tinha comprado o bem fadado anel há uns sete anos atrás numa loja de coisas em segunda mão – custou-me uns 5 euros…nem sequer é de prata ! Mas é uma parte tão integrante do meu dedo médio esquerdo,que é como se fosse uma segunda unha. Nunca venderia esta parte tão integrante de mim a um guarda com ar de mafioso. Mas fosse eu mais despegada das coisas, cheira-me que tinha feito um bom negócio.
E aconteceu-nos ainda…
Num dia em que passávamos já pelo segundo posto de controle num espaço de 500 metros, com todas as situações acima mencionadas a repetirem-se (excepto a venda do anel): o estado marital, o pedido de passaporte, a nacionalidade, o Cristiano Ronaldo…e com a nossa paciência já atingir os limites, os passaportes desapareceram com o guarda, que era um militar enquanto esperávamos em frente à cancela. Regressam um minuto ou dois depois acompanhados por três pães ainda quentes, que nos foram oferecidos.
– Goodbye and enjoy Tajikistan.
– Will do sir! Rahkmat, spaciba, thank you e obrigado!
Não queríamos acreditar no que nos tinha acabado de acontecer– um militar num poste de controle ofereceu-nos três pães ! As sandes de pão quentinho que fizemos uns 10 minutos depois, confirmaram que sim, e confirmaram que se há algo a aprender no que respeita a postos de controle de passaporte é aprender a não esperar nada…porque pode acontecer de tudo!
O hotel “dengoso”
Poder-se-ia acrescentar “hotéis da era soviética” à lista de inevitabilidades de um viajante na Ásia Central, mas vistas bem as coisas, num hotel só fica se assim se desejar, ao contrário de um controle de passaporte.
Depois de ultrapassadas as Pamir, os vales inclinados do rio Panj e dizer adeus ao país ao lado, no qual ficou a sensação de se ter andado a viajar – o Afeganistão, a paisagem cobriu-se de searas secas no final da estação com rebanhos lânguidos a intercalar o amarelo. Na mesma proporção em que a paisagem perdeu interesse ganhou trânsito e as aldeias foram aparecendo em intervalos cada vez menos curtos. No final de pedaladas de um desses dias anónimos em que o mais marcante que nos acontecia no final de cada dia era estarmos mais próximos de Dushanbe, fomos acabar o dia numa vila de nome prometedor – Dengara. Como sabíamos que depois dessa vila nos esperava uma subida decidimos tentar a nossa sorte e procurar hotel – seria o primeiro onde ficávamos depois de nove dias, e a ideia de um banho quente, sobretudo com as nuvens cinzentas que agouravam o horizonte, tornaram a missão mais aliciante.
Como no desdobrar de uma concertina a pergunta – hotel? levou-nos de pessoa em pessoa a um edifício de cimento com quatro andares. Um rapaz levou o Nuno num “tour” do velho hotel e quando regressaram as notícias não eram as melhores. A começar pelo preço exorbitante que nos foi pedido inicialmente e que depois conseguimos negociar (embora o sítio fosse tão mau que o mais lógico era que nos pagassem para ficar e não o contrário)… mas vamos por partes: o quarto ficava no quarto andar e olhando à primeira vista até passava por aceitável com os cortinados barrocos e a mobília de plástico e contraplacado de influência neo-clássicas, isto até se começar a reparar nos pormenores, como a alcatifa com tanto cabelo que parecia poder fazer-se uma peruca, ou as crostas de pão bolorento, as cascas de melancia e as pontas de cigarro que faziam as vezes de “bijous” nos topos poeirentos da mobília. A casa de banho ficava ao fim do corredor, chuveiro talvez tivesse existido, noutra encarnação…e a retrete (claro): uma verdadeira obra prima “à la” Jackson Pollock, onde predominava o uso abusivo da cor castanha, como base cromática principal da obra. Pelo menos, não se pode dizer que o rapaz que tomava conta do hotel não fosse prestável –quando lhe perguntámos pelo chuveiro, desapareceu por uns minutos e reapareceu no quarto com um balde metálico e uma resistência eléctrica – a água era para se ir buscar ao terceiro andar – com o balde. E a resistência eléctrica para enfiar lá dentro e esperar que a água aquecesse. Pelo menos começou a chover para nos demover da vontade de agarrar na tenda e nas bicicletas e fugir dali a sete pés.
Dushanbe, ditaduras, vistos e outros estrangeiros
Chegámos a Dushanbe ao final da tarde. Os últimos dias de pedaladas tinham sido miseráveis e molhados partilhados com os camiões e os muitos carros que iam, como nós, rumo à capital. De resto, uma ou outra subida para aquecer os espíritos e dois túneis longos sem bermas, que tivemos que pedalar sobre uma plataforma erguida usada para o escoamento de águas – uma dose final de adrenalina. Curioso notar também que um dos passeios nacionais parecia ser precisamente ir até aos túneis novos feitos pelos chineses, tirar a fotografia de família e atravessar o túnel em grande velocidade a apitar- fazendo creio eu – o teste à acústica da construção e à resistência dos nossos tímpanos.
Dushanbe é uma cidade estranha. Tem a característica rara de parecer não fazer parte do país à qual preside e é capital – pelo menos para quem se movimenta na sua rua principal – a Rudaki. É uma amalgama de edifícios grandiosos que jazem vazios, sem que o fim para que foram construídos seja evidente. É impossível não ser cínico relativamente a este esbanjamento de cimento e dinheiro em edifícios públicos de fachada quando o país está entre os mais pobres do mundo e quando essa realidade é bem palpável . Mas à parte de meia dúzia de intelectuais e dissidentes, as pessoas no geral, parecem contentar-se com as limitações do regime totalitário do senhor Rakhmov e, sobretudo, com a paz que o regime parece ter trazido. Os grandes do mundo também gostam dele, da sua personalidade fácil e moldável aos seus interesses. Neste cenário as coisas num futuro próximo continuarão como sempre foram – democracia de fachada, tal como os edifícios inúteis que se constroem na capital.
Foi em Dushanbe que obtivemos com sucesso os vistos para os próximos países: Uzbequistão, Turquemenistão e Irão, não sem algumas correrias e um avultado fundo de maneio – cerca de 350 euros por pessoa . Não é a brincar que dizemos que é bom que estes países sejam, no mínimo, extraordinários, se não, queremos o nosso dinheiro de volta.
Tivemos a sorte de ter ficado em casa da Christine, uma francesa simpática a trabalhar no Tajiquistão num projecto de uso de energias alternativas. Com ela viviam mais quatro estrangeiros a trabalhar no país envolvidos em projectos semelhantes – a Audrey, o Darragh (que foi o nosso guia cultural e histórico da cidade e arredores) e a Lisa, a sua namorada. Foi bastante interessante ter tido acesso às suas experiências, ideias informados sobre a vida e o mundo e ter conhecido os seus amigos locais – deixávamos o Tajiquistão com a sensação de ter tido a oportunidade de o ver sob um prisma de várias luzes.
Tajiquistão o país ao qual ainda não chegámos tarde
O Tajiquistão é um país que nos faz sentir pequenos. Pequenos porque a paisagem contida nas suas fronteiras é incomensuravelmente grande. Pequenos, porque as suas gentes são espontânea e gratuitamente das mais hospitaleiras e generosas que alguma vez conhecemos. Pequenos, pelo parco conhecimento que tínhamos sobre o país e o tanto que este tem para oferecer. Pequenos, na descoberta de termos encontrado finalmente um país ao qual não chegávamos demasiado tarde, onde as coisas ainda eram o que deviam de ser, sem que o turismo desmedido e sem regras lhe tenha roubado a alma. É difícil dizer por quanto tempo permanecerá assim – seria bom que para sempre, mas se o segredo deixa de o ser, suspeitamos que em breve o Tajiquistão virá no topo lista de países a não perder no espaço de uma vida. Vamos manter então o segredo?
Dushanbe está a um dia de ciclismo da fronteira com o Uzbequistão, que se transformou-se em dois. A corrente da minha bike, depois de tanto mau trato e abuso, partiu. O Nuno conseguiu voltar a uni-la, mas voltou a partir-se. Decidimos que o Nuno tomaria as rédeas à minha burra e eu à dele. Os dois dias até à fronteira seguiram aos solavancos marcados pelas paragens constantes para remendar a corrente e a vê-la reduzir de tamanho a uma velocidade preocupante.
Problemas com a corrente à parte, não podíamos ter deixado o país numa nota mais positiva: a nossa última noite foi passada em casa de uma família simpática que nos acolheu quando buscávamos sítio, numa aldeia junto à estrada, para por a tenda. A sua alegria, a sua simpatia, sua generosidade irá connosco onde formos.
Fica um Obrigado sentido ao Tajiquistão e às suas gentes! Um dia voltaremos.
As próximas histórias virão do Uzbequistão, com novos capítulos na nossa saga com agentes da autoridade, mais generosidade alheia, o drama não resolvido da minha bicicleta e as cidades históricas da Rota da Seda.