A realidade entre boatos e exageros
Poucas são as nações envoltas numa nuvem tão abundante de mitos, histórias e anedotas como o Turquemenistão. Ainda a muitos países de distância já ouvíamos relatos de teor tragicómico contados pelos poucos viajantes que passaram no país e com os quais cruzámos caminho. Estes incluíam contos de investidas homossexuais não requisitadas por parte de companheiros imprevistos de quarto; dificuldades em conseguir bilhetes de comboio e outras formas de transporte; deportações; impossibilidade de encontrar quartos baratos e ou ser aceite nos mesmos; à “Las Vegas” em mármore que é a capital – Ashgabat, que conta com, entre muitos, um monumento peculiar (agora removido, ao que parece pelo novo ditador, para uma localização menos proeminente) do velho ditador apontando para um sol em ouro que girava em seu redor ; à estranheza das pessoas e da sua indiferença para com os visitantes. Seguindo-se a irregularidade dos humores policiais e encerrando-se o círculo das histórias e bizarrarias, com o regresso ao tema recorrente das investidas homossexuais, desta vez por parte dos condutores dos camiões e outros veículos, aos viajantes que acabam a pedir boleia para sair do país a tempo.
Algumas das histórias serão ampliações de quem se entusiasma nos relatos de viagem ansiando por obter a admiração e a risada dos companheiros de hostel. Outras tantas acontecem noutras partes do mundo e não é justo apontar o dedo como se fossem ocorrência exclusiva nacional. Outras, nem serão em primeira mão… mas haverá também alguma verdade no meio de tanta história, com certeza.
Uma coisa é certa: o Turquemenistão não é um país convencional e a maioria dos que por lá passam fazem-no porque fica em rota para o seu destino seguinte – quer de saída da Ásia Central (como no nosso caso), quer na sua entrada. O visto que geralmente se obtém é o de trânsito. Corresponde por norma a 5 dias, mas também os há de apenas 3 (o que parece depender do temperamento do cônsul e de onde se faz o visto). E, se é certo que os pontos de interesse se possam amealhar num número idêntico, ter apenas 5 dias para explorar um país com uma área de quase 500,000 quilómetros quadrados é insuficiente para ficar com uma ideia justa do mesmo. Eu diria – em abono da verdade – para ficar com uma ideia justa de qualquer país. O visto turístico de três semanas é possível mas, com o preço fora das bolsas dos viajantes menos abastados, a necessidade de se obter uma carta de convite e, tendo que andar com um guia a tiracolo, que na melhor das hipóteses se expressa num inglês gutural “à la” Tarzan, não são muitas as almas abastadas que se aventuram no investimento. A mensagem, de qualquer forma, é clara: este não é país para se fazer sala.
Nós e o Turquemenistão
Já tínhamos decidido há algum tempo atravessar o país até à fronteira do Irão em bicicleta. Essa decisão acarretou prescindirmos descobrir os cantos e recantos do país de dito interesse turístico como a capital, Ashgabat; a cidade património da UNESCO de Merv; Dervaza – as portas do inferno (umas crateras peculiares onde a visão infernal resulta de uma explosão causada pelo erro humano numa exploração de gás natural que arde já há mais quarenta anos ); o desfiladeiro de Yangikala e mais uma cidade em ruínas – Konye-Urgench. Mas um país não se resume à soma dos seus atractivos turísticos e, neste caso, quisemos olhar a possibilidade de o atravessar como um desafio, sabendo de antemão que à nossa maneira, também descobriríamos o país – o nosso Turquemenistão – provavelmente um país bem diferente do Turquemenistão bizarro que nos relatavam outros viajantes.
O regime quase militar a que nos obrigámos, algo único nas nossas rotinas ciclísticas – de outra forma relaxadas, era necessário caso quiséssemos levar a bom porto a missão que tínhamos posto na cabeça. Em teoria não nos propúnhamos a grande coisa, eram apenas cerca de 500 quilómetros no que seria sobretudo estrada plana. Não seríamos nem os únicos, nem os últimos a alcançar o feito, isto é – partindo do principio que o alcançaríamos, coisa que nunca duvidámos antes de começar a empreitada. Era uma questão de acelerar a pedalada e não tirar dia de folga – fácil!
No entanto, sub-estimámos o poder dos dias curtos e frios de inverno, o vento que nem sempre nos ajudou nas planícies desabrigadas, o risco eminente do colapso da minha bicicleta, que agora sem grande parte das mudanças a entrar e com o aro rachado, tinha os travões da frente inutilizados e, mais inesperado, o meu joelho direito que me começou a doer sob o esforço do ciclismo mais ritmado, do frio e a humidade que fomos encontrar…no deserto.
Seríamos capazes? Valeria a pena o esforço? Estas perguntas acompanharam-nos, como um peso adicional e, a resposta para as mesmas só chegaria cinco longos dias depois.
Em contagem decrescente…
Dia 1 – a 487 quilómetros de Saraghs (na fronteira com o Irão)
Para adiantar caminho decidimos acampar na faixa de 2 quilómetros e pouco, que é a terra de ninguém entre a fronteira do Uzbequistão e do Turquemenistão. Escondemos a tenda no meio dos arbustos rasteiro, as dunas de areia, o lixo e a linha de camiões que ocupavam o espaço sem dono. De manhã, no dia em que começava o nosso visto, sem que o sol saísse de trás das nuvens cinzentas para nos vir animar a jornada, desmontámos acampamento e seguimos diligentes até aos edifícios do controle fronteiriço na esperança de nos adiantarmos com o processo de entrada no país.
Os senhores oficiais tinham algo diferente em mente. Na espera incompreensível que se seguiu ao desaparecimento dos nossos passaportes até ao pagamento de 12 dólares, cada um, numa janela onde, por trás, estava sentado numa cadeira que parecia prestes afundar-se chão abaixo, um oficial tesoureiro de peso farto, mais a espera para que alguém pusesse a máquina do raio-x a funcionar, à inspecção arbitrária das nossas malas, depois da sua vistoria na tal máquina do raio-x, passaram duas preciosas horas, quantificadas nos nossos relógios em quilómetros não pedalados.
Seguimos o Amu-Darya, ou o Oxus como também é conhecido, o grande rio que atravessa a Ásia Central e do leito do qual se extraem as águas que irrigam as grandes planícies desertas durante quilómetros infindáveis de campos de algodão. Connosco, seguiram os camiões TIR nas suas travessias transcontinentais uniformizando necessidades de consumo pela Eurásia fora.
Chegámos aos arredores de Turquemenbad, a segunda maior cidade do país, ao início da tarde. Fizemos compras, atestámos as garrafas com água e almoçámos num “snack-bar” de beira de estrada. Na falta de menu e na incapacidade de nos fazer entender, calhou-nos um prato de “dumplings” generosos recheados com carne suculenta de carneiro salteado em cebola picada, que aqui se chamavam “mantis”, servidos sob o olhar atento das empregadas simpáticas. O evento, provavelmente único na história do estabelecimento – a passagem de dois estrangeiros sobre duas rodas – , foi marcado para a posteridade com as várias fotos que nos tiraram nos seus Samsungs Galaxys.
O centro de Turquemanbad passou-nos diante dos olhos e das pernas, no pára-arranca que foi atravessar as suas largas avenidas, preparadas para um numero de veículos que ainda não é o que existe e os muitos semáforos que presidem às intersecções semi-vazias. Os monumentos grandiosos com a fotografia do presidente no escaparate, como seria de esperar em mais um país regido por um sistema de democrático-ditatorial (lá fazer eleições fazem eles, só que a oposição” acobarda-se” e é sempre só um candidato, coitado, a levar com a responsabilidade de ser presidente, mais uma vez) e os blocos de prédios soviéticos com manchas de bolor – moradia de grande parte dos habitantes desta metrópole fleumática .
Com a saída da cidade e dos seus subúrbios de caos industrial fomos abraçados pelo deserto, as suas colinas e o frio que o manto de nuvens cinzentas fazia pairar. O final do dia chegou com 80 quilómetros nas pernas, o sol já escondido e um acampamento húmido por trás de umas dunas de areia que abafavam o som dos motores dos grandes camiões a deslizar planície fora a alta velocidade.
Dia 2 – a 406 quilómetros de Saraghs
O “titititi-tititi” agudo do despertador acordou-nos os sonhos ainda eles nos entretinham no escuro e no frio da noite. Aqueceu-se o café, sorvido como se fosse um cobertor interior para o corpo e a alma. Das nossa bocas saiam pequenas nuvens de condensação que desfocavam o pouco que víamos entre o foco das nossas lanternas. Substanciámos o pequeno almoço com papas de aveia envolvida em frutos secos e por secar e pão. Desmontámos a tenda e, quando nos fizemos à estrada, os primeiros raios de sol tentavam já despontar por entre a camada cinzenta de nuvens que os separava do céu azul que não se via.
Seguimos dia fora ritmados pelo “clic-clac” das correntes intercalando nos dentes mais largos da pedaleira, fazendo as rodas girar a uma boa rotação e do vento a tornar a pedalada mais árdua.
Almoçámos algures à beira da estrada protegidos por mais dunas, pontilhadas com embalagens e sacos de plástico que o vento e as mãos descuidadas de quem passava ia embutindo na paisagem. A pausa foi cronometrada:1 hora. Comi à pressa e aproveitei os 30 minutos restantes para por o sono em dia. Adormeci , enroscada em mim, a pensar nas semelhanças deste desafio com um dia na minha outra vida – a dos relógios e da rotina-, sempre com o tempo contado para tudo.
Seguimos rumo a um entardecer onde o sol veio finalmente dar a luz da sua graça – redondo e soberbo a tempo de iluminar uma manada de camelos que seguia na direcção oposta e, dos pastores que os guiavam nas suas motas. A beira da estrada tornou-se num parque de estacionamento onde os condutores e passageiros saíram para prestar cerimónias a Allah – na oração do dia que se faz quando o sol se põe. Buscámos acampamento no lusco fusco de mais dunas, montámos a tenda, cozinhámos e fomos dormir satisfeitos com o caminho avançado.
Dia 3 – a 287 quilómetros de Saraghs
Com a rotina já instalada, fizemo-nos à estrada quando despontaram os primeiros raios. No amarelo da areia brilhava o branco quase cristalino das gotas do orvalho e da geada cobrindo as areias densas do deserto sob a luz do sol que veio e ficou – finalmente o filtro cinzento com que víamos o país desde que nele tínhamos entrado, mudou para um filtro multicolor, com céu azul, nuvens brancas a dar profundidade à paisagem e os amarelos e ocres secos do deserto quebrados pelo passar de um carro ou camião de cor contrastante, em fuga.
Mas o deserto desapareceu e na paisagem plana de perder de vista, os campos de algodão, castanhos de inverno.
Chegámos a Mary, a nova cidade que cresceu ao lado da antiga – Merv – cidade com a grandeza de tempos idos, agora, caída em ruínas. Fica o selo do património da humanidade para que o tempo, a memória e a falta de visitantes não releguem ao esquecimento o que já foi uma cidade vibrante, das muitas que uniam os pontos das linhas do mapa das rotas da seda.
Fomos às compras. No pequeno mercado por onde buscámos batatas, pimentos, cenouras, tomates, nabos, maçãs, coentros e laranjas para fazer o jantar e abonar o pequeno almoço, havia apenas duas bancadas abertas. Nelas, duas vendedoras que as comandavam, falando incessantemente para nós, mesmo quando era óbvio que não nos entendíamos. Curiosas e incrédulas, apontavam para as bicicletas, antes de recomeçar mais um monólogo incompreensível, cada uma na sua bancada.
Deixámos as senhoras e os seus brados com os alforges a transbordar de vegetais, alguns acrescentados depois das contas já pagas. Mary era uma cidade grande. No seu centro, para além de uma rotunda intersecção, onde estive quase 10 minutos a ganhar coragem para a atravessar e depois o fiz, tipo “kamicaze”, já pouco importada se me abalroava um SUV ou um Lada, dos muitos frenéticos que se moviam pela cidade, havia uma mesquita, branca, nova e opulente. E, haviam também uma série de outros monumentos, tais naves espaciais aterradas por tempo indeterminado e sem perspectivas de regresso à galáxia distante de onde nunca deveriam de ter saído.
Andámos à procura de hotel para a noite. A quem perguntámos não faltou vontade de ajudar, mesmo não sabendo em que direcção nos haviam de mandar . Fizeram-se telefonemas. Apontaram-se braços e finalmente apareceram dois catraios em duas bicicletas, que nos foram levar até ao hotel. Uma das bicicletas, era amarela e tinha umas luzinhas a piscar nas rodas e um apito de vuvuzela. Cada vez que era accionado os transeuntes e motoristas ficavam à procura do camião que afinal era uma bicicleta (quero um destes para mim). Deixaram-nos no hotel, mas era caro para as nossas economias e seguimos cidade fora já de noite posta.
Queríamos acampar mas não havia onde nos subúrbios intermináveis da cidade e os campos de algodão que se estendiam infinitos. Não nos restou alternativa senão seguir na escuridão da estrada iluminados pelas luzes erráticas dos camiões – missão suicida – diria quem nos visse avançando na beira da estrada a passo de caracol. Será uma mota? Será um animal? – Não. São dois loucos montados em duas bicicletas, a jogar um jogo perigoso de cabra cega.
Apareceu um restaurante onde camionistas, condutores e passageiros paravam para dar conforto ao estômago. Na ementa: frango assado acompanhado com pão e…chá. Fizemos o mesmo na esperança de que com a barriga cheia pudéssemos avaliar melhor o que fazer. No fim da refeição, sem ideias mais iluminadas, fomos perguntar ao rapaz que nos serviu o frango, que por sinal estava delicioso, se havia onde dormir. Ele disse que sim com a cabeça e levou-nos para as traseiras do restaurante onde apontou para um lugar debaixo de um holofote.
Ali – podíamos acampar ali – na luz da ribalta, com o trovoar dos camiões que passavam do outro lado e do cheiro a frango assado. Regressou ao restaurante. Fomos investigar melhor os nossos aposentos e decidimos avançar para o terreno contíguo. Tínhamos já encontrado um canto, que não sendo ideal beneficiava da obscuridade e das neblinas que se tinham aninhado à nossa volta quando o empregado regressou preocupado e com os braços a abanar. –“No, no.” – Pôs as mãos nas orelhas como quem faz a mímica para representar um animal e depois especifica a categoria com a vocalização do ladrar – “Auf, auf, auf…”. Não tínhamos visto cão nenhum, por isso decidimos ignorar os avisos do rapaz que regressou ao restaurante de ombros encolhidos. Já com a tenda montada o vulto de dois cães, por sinal bem grandes, apareceu. Não estavam muito contentes em nos ver por ali. Lembrei-me do jeito que nos davam agora os ossos que sobraram do jantar para comprar o silêncio e amizade dos animais, mas sem nada à mão para apaziguar a insatisfação canina mais remédio não houve do que adormecer com a banda sonora do seu ladrar, incessante, praticamente até que se fez dia.
Dia 4 – a 174 quilómetros para Saraghs
E o prémio de pior acampamento da viagem (até ao momento) vai para? – a noite passada. Fria, húmida e barulhenta. Os cães foram pregar para outra freguesia só ao amanhecer – o seu fado canino manteve-nos num estado semi desperto praticamente a noite toda e, foram substituídos pelo ruído intenso de maquinaria pesada quando o sol não despontou, porque adormecemos e acordámos dentro de uma nuvem rasteira. Só percebemos que tínhamos acampado quase em cima das obras de uma estrada em construção quando abrimos o fecho da tenda, acordados com o som metal-tecno-industrial das retro-escavadoras e dos camiões a carregar e a descarregar terra.
Para acrescentar azar ao infortúnio, o meu joelho latejou essa noite, eu diria quase que ao ritmo do ladrar dos cães. O que começou com uma dor mais ou menos suportável mesmo com o esforço mais intenso das pedaladas e do frio dos últimos dias, carimbou-se com certezas no meu joelho e, nesse dia com tal força e precisão que não tive outra escolha se não começar a enfrascar Paracetamois.
Descrever este dia é fácil: cinzento, chuva, camiões. Cinzento, chuva e vento. Cinzento, chuva e frio. Cinzento, chuva e dor…Dia difícil, carregado de dúvidas e desânimos.
…e não rendeu. O joelho doía-me cada vez mais, o nosso ritmo não tinha ritmo, parecia um “walkman” sem pilhas. Pedalávamos ao lado de terrenos alagadiços, agora afastados da estrada principal, num desvio que nos encurtaria o percurso por 30 ou 40 quilómetros. Ia fazer-se noite e não íamos encontrar sítio seco onde montar a tenda…mais uma noite desgraçada. O Nuno parou num casebre isolado – uma mercearia, para comprar tabaco. Já de maço na mão, avançou enquanto eu continuei a dar festas ao cão da mercearia. Na minha direcção vieram duas raparigas, as da mercearia. Sorrio e, uma delas, aproxima-se. Pergunta algo que não entendo e depois põe as duas mãos ao rosto como quem assinala dormida. Se das suas costas saíssem duas asas, não estranharia – só um anjo podia ter lido os nossos pensamentos e compreender que se havia algo que precisávamos desesperadamente era sítio abrigado para passar a noite.
Quando entrámos na divisão por baixo do pequeno estabelecimento comercial, fomos abraçados pelo o calor do aquecedor a gás. Com ele dissiparam-se as tensões e as preocupações do dia. Amanhã seria outro dia, o resto não importava. Foi-nos servido chá e sopa de borrego e nos sorrisos cúmplices dos nossos anfitriões, um casal ainda jovem claramente apaixonado e, da outra rapariga que não conseguimos discernir o grau de parentesco, mas que tomava conta da mercearia, porque que o casal, que eram os donos, viviam em Mary e estavam só de passagem, recuperámos forças e ânimos. Depois do jantar, tiramos fotos, mostraram-nos fotos do casamento deles, de mais uns quantos irmãos e primos, uns outros tantos vídeos de músicas que tinham no telemóvel e quando não conseguimos já esconder os bocejos, perceberam que era hora de nos deixar dormir. Foi o que fizemos sem cerimónias.
Dia 5 – a 95 quilómetros de Saraghs
Saímos bem cedo, depois do pequeno almoço, deixando os nossos amigos para trás. Tinha nevado na noite passada e ao ver o manto branco que cobria o chão enlameado percebemos a sorte que tínhamos tido por nos ter sido oferecido alojamento.
Apesar de não me ter doido o joelho durante a noite, assim que fiz força no pedal compreendi que a coisa não estava melhor. Engoli mais um Paracetamol e por uma hora consegui enganar as dores e ter a ilusão de que talvez ainda fosse possível chegar a tempo à fronteira. O silêncio e o cinzento entre-cortados pelas nossas formas e o som da nossa respiração… e os campos de não sei o quê, escondidos na lama e na neve, que a estrada esburacada emoldurava. Mas a dor regressava, com mais intensidade. O conta quilómetros parecia um conta gotas avariado. Os números recusavam aumentar. Mais um Paracetamol. Na planura que era a estrada mais não conseguia fazer do que 10, 9 quilómetros por hora e ainda tínhamos tanto para pedalar.
Ao início da tarde, com uns quarenta quilómetros ainda por fazer e a dor impossível de esconder nas expressões da minha cara, o Nuno sugeriu que tentássemos apanhar boleia. Não sei o que me doeu mais: o perceber que íamos desistir tão próximos do nosso destino, a decepção ou o joelho. Não queria apanhar boleia. Não queria desistir. Não queria falhar. Não queria… Uma lagrimita, ou duas rolaram rosto abaixo, que escondi. A boleia não apareceu – pedalávamos numa estrada praticamente deserta.
Continuámos compassados pelo meu ritmo lento. Não íamos conseguir, mas, fosse como fosse, na ausência de alternativa, tínhamos que continuar.
Num acto de desespero, de loucura e amor, o Nuno mandou-me parar, tirou-me os alforges traseiros, os mais pesados e empilhou-os em cima da sua carga traseira já abundante.
Com o aliviar da carga e o sol que veio ver o que se passava, ergueram-se os ânimos para um esforço final já rendidos à atitude de que não tínhamos nada a perder (excluindo a possibilidade de repatriação ou do pagamento de uma multa avultada). Chegámos a Saraghs, a cidade de fronteira, uma hora antes do posto fronteiriço fechar. Íamos conseguir afinal.
Mas perdemo-nos. O GPS mandava para um lado, as pessoas mandavam-nos para outro, nem um, nem outro faziam sentido. Decidimos nós ir por outro caminho, mas a fronteira, que normalmente surge seguindo uma estrada óbvia, não se materializou. Andámos perdidos avançando como loucos para onde nos apontavam os braços, já sem conseguir fazer muito sentido das direcções dadas. Andámos por bairros residenciais sem saída, voltámos para trás, empurrámos as burras entre os carris, atravessámos uma área militar e uma área de cultivo e chegámos, finalmente e, pelas portas das traseiras, à bendita fronteira sem saber muito bem se ainda estaria aberta e se ainda íamos a tempo. Estava. O carimbo de saída assentou no nosso passaporte aos quatro minutos para as 5 da tarde. Ás 5 fechava a fronteira.
Missão cumprida. O sabor doce dos objectivos alcançados.
Se agora me perguntarem como conseguimos? Porque é que o fizemos? Só posso responder que com uma dose grande de loucura, um outro tanto de teimosia e uma grande pitada de amor e sentido de companheirismo. Valeu a pena? Claro que sim, mesmo não tendo sido um esforço totalmente necessário, há coisas que uma pessoa mete na cabeça e têm que ser feitas. Chamem-lhe teimosia, orgulho, o que for… e por tudo o que tínhamos visto e vivido na intensidade daqueles cinco dias, acabámos por descobrir um país tão mais humano e real do que o que nos haviam pintado – havíamos descoberto o “nosso” Turquemenistão. Talvez a bicicleta, na sua estrita simplicidade, seja um objecto que nos aproxima e nos desmitifica, como estranhos expostos aos outros, em seres igualmente simples e semelhantes – uma espécie de linguagem universal, que todos parecem compreender.
Turquemenistão feito. Como seriam os dias seguintes no novo país – o Irão, com o meu joelho e a minha bicicleta em estado de desarranjo? A saber nas próximas histórias.