Mardin – a cidade e o tempo
As pedras das ruas estreitas terminavam no branco acinzentado da neblina, como se as casas que formavam estivessem por completar. Os ecos dos passos furtivos dos poucos pés que se atreviam naquela paisagem incompleta, materializavam-se em formas humanas para logo voltar a desaparecer – projecções holográficas, imateriais – apenas significantes no contexto do imaginário. Chegámos a Mardin no final do dia e as últimas horas de luz foram perdidas a tentar encontrar sítio barato onde passar a noite.
Na manhã seguinte, debaixo do tecto sobre as nossas cabeças e, sobre as camas estreitas do quarto mais barato que encontrámos na cidade, esperámos que as mil águas do mar ao contrário em que o céu se tinha tornado, vertessem. Com o ribombar de dois ou três trovões, espremeram-se as últimas gotas e ficaram as nuvens e o silêncio do céu, agora desanuviado.
Saímos pelas ruas molhadas em busca da cidade que desaparecia e reaparecia no bailar das nuvens que a coroavam, no alto do monte orgulhoso onde estava empoleirada. Aos seus pés, as planícies da Mesopotâmia, entre os rios Tigre e Eufrates, estendidas sem que a vista lhes alcançasse o fim; manancial milenar, fruto dos dias em que o homem desafiou a ordem da vida deambulante e recolectora. Algures ali, naquelas planícies estendidas, se atiraram as primeiras sementes à terra – porventura, o acontecimento mais transformador da humanidade… e ali, se desenhou um novo rumo na história – a história que se conta, como uma árvore que bifurca, das gentes que deixaram de ser itinerantes e que no excesso alimentar que produziram, fizeram nascer civilizações, impérios, religiões – a hierarquia, a burocracia, a ordem criada por quem fica, contra a liberdade, a incerteza e a ligeireza de quem itinera.
Subimos e descemos escadarias. Perdemo-nos nas vielas e nos becos sem saída daquela cidade de pedra. Tal como na vida, às vezes é bom andar perdido para sentir a intensidade do encontro.
Mardin e as cidades que visitámos no leste da Turquia, como Mydiat, Urfa, até a pequena vila de Savur são fénix que renasceram das cinzas. Há poucos anos reinava o caos e a incerteza – o legado que a guerra deixa na sua passagem. Os turistas por ali não ousavam. Agora regressou a paz, pelo menos aparente, nestas povoações profundamente amarradas à história milenar que as toldou e que as fez ser centro de confluência de diferentes credos e destinos.
Limparam-se-se as fachadas. Abriram-se as janelas. Os vasos regressaram aos beirais e deles brotam flores da primavera destes dias. Reabriram-se os velhos bazares. Um ou outro hotel, que agora se chama “boutique” à conta dos quartos desiguais com detalhes únicos que os distinguem dos demais e que se vão preenchendo com corpos viajantes. Os artesãos, os comerciantes, as crianças, os empregados de mesa com copos de chá escuro engalanados nos tabuleiros, enchendo os passeios. As suas vozes, os seus risos, os seus gestos, os seus olhares. Tudo é movimento. Tudo é vida… e andam os turistas que, como nós, se misturam e pertencem também, mesmo que por instantes fugazes, a estas cidades de pedra e tempo.
Em Urfa, deixando a vida passar
De Mardin à cidade histórica e simbólica, de SanlIurfa (para os preguiçosos da fala, que somos quase todos – abreviada para Urfa), onde as fés católica, muçulmana e judaica partilham crenças e passados, foram dois dias de pedaladas longas, planas e fáceis. Os 200 quilómetros repartiram-se pelos montes ondulantes do crescente fértil, uma estrada feita recta interminável, com camiões e, uma boa berma para manter a relação saudável – camiões e bicicletas querem-se a uma distância q.b., já que proximidades físicas geralmente têm maus resultados.
Em Urfa deixámos os dias passar.
Na preguiça da cidade do profeta Abraham – que se atirou do monte do castelo do irado rei Nimrod e foi cair na cidade em chamas, transformando o local da sua queda num lago onde nadam peixes sagrados, numerosos e anafados – mais do que a visitar mesquitas e monumentos que nos recomendava o nosso guia, passámos os dias nas varandas dos cafés, simplesmente a ver a vida dos outros a acontecer à nossa volta. As famílias a pique-nicar nos jardins, compostas por mulheres buliçosas de lenços à cabeça e sorrisos fartos chamando os filhos, quando estes saiam do seu raio de visão ou se preparavam para alguma traquinice. Os namorados de mão dada e olhares cúmplices trocados com pudor. Os turistas, de andar perdido, sobressaindo, com as suas roupas funcionais e sandálias de aventura, ajustáveis ao pé mais desajustado, com a meia a marcar uma moda que nunca o foi. E no lago Balikligol, as mãos dos transeuntes, que são muitos, a atirar migalhas da sorte aos peixes milagrosos, como se no acto de alimentar peixes se semeasse a esperança no fio condutor que é a água.
Nos bazares, a azáfama usual e uma mescla menos usual das gentes árabes e curdas que são a maioria por estes lados. Nos escaparates os bens baratos chineses e o outros mais requintados, geralmente das Ásias mais a Ocidente, feitos por mãos sábias e artesãs; o cheiro a especiarias e a narguilé, os becos apertados e escuros entre as bancadas e as portas das pequenas lojas onde os vendedores esclarecem a clientela, ou fazem mais um desconto para incentivar a compra. Nas arcadas centrais- o epicentro da vida social da cidade, pejada de homens – novos e velhos, todas as gerações presentes – sentados em bancos pequenos, debruçados sobre tabuleiros de xadrez ou cartas de mais um jogo de sorte. A brilhar sobre as mesas pequenas, os copos de chá e os olhos nas conversas vivas.
Gobekli Tepe, as ruínas onde o tempo parece ter começado
De partida, depois de quase uma semana, fomos montar acampamento ali ao lado, num pinhal a pouco mais de 17 quilómetros de distância da cidade de Urfa. Fomos visitar Gobekli Tepe.
É o sítio religioso mais antigo que se conhece, redescoberto por um arqueólogo alemão em 1996. Precede Stonehenge em pelo menos 6500 anos. No que já se escavou, na geometria das formas humanas e animais das pedras descomunais em forma de T, no pouco que se compreende, ainda é fácil deixar a imaginação preencher o vazio. Aquele é um local primordial da história humana, que permite o pensamento deambular no facto de que há já muito que namoramos o que não entendemos. Que há muito que erguemos pedras ao invisível e à grandeza do que não alcançamos no universo (que é tanto), empoleirando-as no que agora nos parecem formas misteriosas, indecifráveis e impossíveis para as limitações técnicas desses tempos. A descoberta deste lugar lança uma nova questão a um período da história humana que permanece tão obscuro: a religião precederá as sociedades organizadas? Ou será que continuamos a montar o puzzle do nosso passado com as peças erradas?
Os arqueologistas ainda têm muito trabalho por fazer ali – mais de 95 por cento continua por escavar-, mas os curiosos já começaram chegar, sem no entanto o invadir desmedidamente. Permanece um local discreto, onde se comunga facilmente nas abstracções do passado e se deambula entre pedras e campos de flores pequeninas amarelas, sem perder de vista o silêncio, a tranquilidade e o sentimento de que aquele é um lugar especial.
Quem não arrisca…tem que voltar atrás – nas margens do Eufrates
Turquia adentro, rumo ao mar e às praias mediterrâneas que desaguam na costa sul deste país, tínhamos ainda muita colina por atravessar. As estradas foram perdendo o conforto das bermas e a proximidade dos camiões, a trepidação das frágeis bicicletas na sua passagem, o bafo quente dos seus tubos de escape feitos gárgulas vomitando fumo preto, fizeram-nos reconsiderar a rota e pedalar por estradas de campo, obscuras no mapa e carregadas de incertezas…
– É por aqui…o gps está a dizer que é por aqui.
Olhei para o caminho estreito em terra batida com um palmo de erva no meio, na parte onde as rodas do tractor que o percorria deixava intacto.
-Por aqui?! E o rio lá à frente?
-O gps, diz que há uma ponte…
-Uma ponte? Deves estar a gozar…e já agora uma portagem.
Não era tanto o ter que seguir o caminho para chegar à conclusão óbvia de que terminaria no rio. É que era a descer e com inclinação e em mau estado suficientes para saber que não iria ser fácil voltar a subi-lo, sobretudo porque teríamos que empurrar.
-Só se quiseres voltar para trás, para a estrada principal.
-Ok, vamos lá ver então essa ponte.
Pelo caminho que se foi desarranjado à medida que o íamos descendo, ficou óbvio que no final daquela estrada nunca houve ponte alguma. O rio era demasiado largo e caudaloso para tentarmos uma travessia com as bikes. Na outra margem, a que não alcançávamos, havia uma estrada branca que chamava por nós, como uma ninfa dos rios.
Olhámos para trás, para o que já tínhamos descido e olhámos para o relógio – pelo menos uma coisa boa: era hora de almoço. O regresso penoso até à estrada principal, certamente a puxar as bikes em calhaus rolados, podia esperar.
De barriga cheia, o sol da primavera nas primeiras horas da tarde, convidavam à sesta (o Nuno), ou à leitura de um livro (eu) – desculpas do inadiável.
Depois de umas boas páginas lidas e o Nuno com a sesta terminada, voltei a olhar o rio.
– Amor! O que é que aconteceu ao rio? Baixou!
-Olha… pois baixou! …e em que é que estás a pensar? Não! É muito perigoso.
Ambos pensámos o mesmo: na noite anterior acampámos perto da barragem de Ataturk – a maior do país e uma das grandes barragens do mundo. A parede de cimento e a água borbulhante que se despenhava na base fizeram-nos perceber que no caudal que obstruía – o do grande rio Eufrates – e as descargas que resultassem da abertura das comportas da mesma, não eram coisa que se quisesse desafiar. A redução abrupta do caudal do rio afluente que tínhamos à nossa frente eram prova disso. Mas como quem não arrisca…tem que voltar atrás, fizemos o resto da descida e fomos avaliar as condições do rio semi-desaparecido.
Da avaliação concluímos que em partes o rio permanecia bastante fundo e com corrente, mas na parte mais larga – a que tínhamos visto do cimo do monte do almoço – a água não nos passava dos joelhos e dava para passar. O desafio maior era atravessar sem escorregar onde o fundo estava forrado a pedras e lodo. Decidimos levar uma bicicleta à vez. Se as comportas abrissem tão de repente como tinham fechado lá iriam dois ciclistas desaguar ao Eufrates e fazer primeira página de algum jornal local. A travessia foi um sucesso, escorregadio, mas um sucesso. Com a estrada branca, agora na margem certa e, sem mais obstruções aquáticas, ficou apenas a sensação boa reservada aos que arriscam.
Ao nosso acto ousado seguiu-se o sobe e desce das estradas perdidas nos campos da grande Anatólia. Não vêm nos mapas. Se calhar, só existem nas nossas cabeças, nas nossas pernas, nos nossos quilómetros pedalados – nosso mapa mundo pessoal.
O rio Eufrates aparecia e desaparecia . No intervalo das suas aparições tivemos uma visão: acampar ao lado do rio icónico, banhado de azul esverdeado, pilar do destino humano.
Empurrámos as bicicletas pelos campos de cultivo, ainda em repouso e, num penhasco panorâmico debaixo do qual passavam as águas pardacentas do grande rio, montámos poiso.
Não era a” insustentável leveza do ser”, como lhe chamou Kundera por razões distintas…era a inimaginável leveza do ser…a felicidade em estado bruto, o nosso estado mais leve e feliz. A alma forrada a vermelho carmim das papoilas à nossa volta, o som dos xilofones descoordenados que eram os sinos das ovelhas na outra margem. A vertigem do precipício onde montámos a tenda – um dos acampamento mais especiais da nossa viagem.
Na manhã seguinte acenámos ao agricultor em cima do seu tractor – não deve ser todos os dias que aparecem dois turistas a puxar duas bicicletas carregadas campo acima-, como se fosse o nosso vizinho e seguimos rumo a mais dias desta vida, por sinal nada má, que nos liga ao mundo, a nós, e às nossas bicicletas!
Nas próximas aventuras continuamos Turquia adentro até chegar ao mar mediterrâneo, com mais histórias, castelos e encontros…