Hosgeldiniz (bem-vindos)! – ou nem por isso…
Se quando se entra num país a primeira coisa que nos acontece, ainda o guarda fronteiriço parece estar a acenar e as suas palavras sejam “bem vindos” (hosgeldiniz) ressoam nos nossos ouvidos, é levar com pedras – que falharam o alvo por milagre –“ bem vindos”, mesmo com os desejos protocolares, é coisa que é difícil sentir.
Recuperados do susto, uns quilómetros mais tarde, ainda a estrada na faixa oposta era uma linha de camiões à espera para entrar no país que acabávamos de deixar – o Iraque, e o Nuno seguia na sua distância costumeira, fui abordada por dois pirralhos (não teriam mais de 12, 13 anos) que decidiram seguir-me nas suas bicicletas esgroviadas, gritando por dinheiro como se me estivessem a declarar guerra. Como a perseguição e o berreiro não cessavam, decidi parar para ver se os conseguia fazer entender que estavam a ser chatos e mal criados. Quando a mão de um deles se fez ao meu cesto da frente, como se o que houvesse lá dentro fosse propriedade privada sua, percebi que a minha missão estava destinada ao falhanço. Foi a minha vez de fazer barulho e mandar um berro para chamar o Nuno, mas o berro saiu-me tão alto que os pirralhos se assustaram e puseram-se em fuga e, o Nuno, parou automaticamente lá dos seus 300 e muitos metros de distância, também ele assustado.
Os catraios ainda se atreveram a atirar um calhau considerável como retaliação, mas ou não tinham muita força, ou a pontaria era pouca e a pedra foi estatelar-se a poucos metros da minha roda traseira. Os putos desapareceram com as suas bicicletas ferrugentas, mas as palavras incisivas da Heike sobre a Turquia começaram a reverberar notas familiares…
“Sinceramente, não gostei. Fui ameaçada com uma navalha e roubada – levaram-me o telemóvel. Fui apalpada por dois homens em cima de uma motoreta. Perseguida por cães, os miúdos atiraram-me pedras. Não tenciono lá regressar!”
Conhecemos a Heike, ciclo viajante Alemã em Yazd, no Irão, e voltámos a encontra-la por acaso em Esfahan. Quão diferentes eram as suas impressões das impressões superlativas daquelas terras e das suas gentes, que nos chegavam de outros viajantes e, do Nuno, que a tinha atravessado de bicicleta há 15 anos atrás.
Ao início da tarde parámos à beira da estrada para um almoço tardio. Um homem simpático e bem disposto obrigou-nos a aceitar o que é, porventura, a oferta espontânea mais bizarra que alguma vez recebemos: uma bengala com a dupla função de lança?! Qual quer que que fosse o sentido naquela oferta (se é que havia algum), para nós ela acabou por simbolizar a peça do puzzle que, quer por recém-chegados, quer pela falta de tempo para digerir o que nos estava a acontecer, estava a faltar – o contexto.
O contexto…
É claro que, num país com uma área de 783.562 quilómetros quadrados e com uma população de 74 milhões – e a crescer, não possa ser tudo mau – no caso da Turquia, possivelmente, é bem o contrário. E, se é certo que existe uma tendência geral para deixar os maus momentos timbrar a memória, como no caso da Heike, também é importante tentar perceber porque é que as coisas são como são.
Acontece que, postas as coisas no tal contexto, entrávamos no país por uma das suas portas traseiras – Çisre, onde a Turquia que ali existe é uma Turquia empobrecida e sob pressão. É por lá que entram os que já são mais de 500 mil de refugiados do conflito armado na Síria, país com o qual a Turquia partilha a sua mais extensa fronteira terrestre, já para não falar de umas quantas escaramuças entre vizinhos. Ali se concentra também cerca de 15 por cento da população Curda, negligenciada durante séculos. Correntemente em processo de sanar as feridas resultantes do conflito recente entre o exército Turco e a guerrilha separatista curda que abalou a área por mais de trinta anos.
A Turquia que se vê e se sente por ali é de tradições e ruralidades. É uma Turquia conservadora, que não apanhou o comboio das mudanças que o pai da nação – Kemal Ataturk , sonhou e ditou para o país que resgatou do que sobrou do Império Otomano, há 91 anos atrás. Foi uma nação que preconizou moderna, ocidentalizada e secular, mas cujos os desejos parecem não ter passado de meros ecos nesta parte do país.
Esse conservadorismo acaba por resultar num quadro lúgubre que combina fervor religioso com o chauvinismo machista. As mulheres, nas suas funções bem delineadas (por elas, ou não), trabalham os campos, mantêm as casas limpas e a sua presença nas ruas é escassa. Andam discretamente pelas ruas nalguma missiva de lenço à cabeça, mas, sobretudo, com chador negro a cobrir-lhes o corpo. Procriam famílias numerosas onde as crianças providenciam um par de mãos para ajudar onde é preciso (quantas vezes oferecendo exemplos visíveis de trabalho infantil pesado), ou então, estão aborrecidas e negligenciadas, sem nada para fazer, divertindo-se a…atirar pedras aos turistas.
Os homens apoderaram-se das ruas, os passeios, os cafés. Nas aldeias e nas cidades – o mudo parece ser deles. Passeiam, muitos de mãos dadas, e jogam gamão, vigiando a vida e os que passam, entre goles de chá forte – o líquido âmbar, servido em pequenos copos bojudos que distorcem as transparências, e os bafos suspirados à vida, da ponta do cigarro. Entre conversas e esbracejados, parecem por o mundo no seu lugar – abstraídos de que o mundo se move com actos, mais do que com palavras e passividades das tardes passadas no café.
Na nossa passagem pela Turquia de Leste, mais pedras choveram, mais catraios descarados e mal criados se meteram connosco e até um cão ou outro nos arreganhou o dente de forma pouco amistosa.
Ser mulher emancipada e independente por aqueles lados não é coisa fácil, nem comum. A Heike, ao passar por ali sozinha de bicicleta a caminho da Austrália, fê-lo com uma dose soberba de coragem e determinação. A mim, valeu-me a presença reconfortante do Nuno. A distância entre as nossas pedaladas foi encurtada substancialmente – num mundo onde reina o macho, por via das dúvidas, o melhor é andar sempre com um por perto.
Munidos de uma arma em forma de bengala, que na realidade nunca nos serviu para mais nada do que para descanso da bike do Nuno – ainda serve, e para alguns arregalar de olhos, seguimos Turquia dentro, descobrindo no processo a verdadeira Turquia, que apesar das primeiras impressões, estava não só cheia de boa gente, como de lugares que marcam a história e a paisagem de forma indelével e onírica.
Hasankeyf – e tudo a água levará
O passado estorva. Em Hasnakeyf, estorva, mas não por muito mais tempo.
Decidimos fazer um desvio a Norte na nossa rota entre Mydiat e Mardin em direção a Oeste – duas cidades onde o tempo ainda se detém nas pedras das antigas igrejas ortodoxas, dos minaretes, dos bazares e da azáfama da vida de hoje que se assemelha à vida doutrora -, para visitar uma aldeia prestes a desaparecer submergida pelas águas do rio Tigre. (Dito assim, a inevitabilidade trágica ganha uma espécie de leveza.)
Hasankeyf é um local que o homem decidiu habitar há mais de 12,000 anos, e com boas razões. As gentes das civilizações que brotaram da Mesopotâmia usaram as cavernas do neolítico esculpidas nas encostas de rocha suave. Nelas viveu gente até há poucas décadas atrás e hoje são usadas para guardar rebanhos. Os romanos fortificaram o povoado, e quando o império se dividiu, transformando-se no império de Bizantino, a oriente, a povoação permaneceu. Vieram os árabes com as suas dinastias e a cidade transformou-se num entreposto – um elo de ligação na miríade de rotas comerciais, hoje prosaicamente referidas como a rota da seda. Destes tempos sobram os arcos de uma ponte Aturquida, os minaretes e as mesquitas do século XII e XV e o muito que vai ficar por escavar e descobrir.
E existe uma aldeia onde o sol se põem, alaranjando as casas cor de mel, avisando os rebanhos e os seus pastores que o dia de faina e ruminações está a terminar. Uma aldeia com crianças que vão à escola e brincam nas ruas, correndo e saltando entre as vielas e os becos sem saída. E há gente. E há turistas que ali chegam de autocarro e se vão embora depois das suas máquinas terem captado o que em breve os engenheiros da Republica Turca e o seu Primeiro Ministro, o senhor Erdogan, afundarão com orgulho e com pompa, na premissa simples de que o país necessita de energia.
Há relatórios oficiais que expõem a insustentabilidade do projecto – ecológica e socialmente, mas a maior barragem do país – a IIlisu a 90 quilómetros rio abaixo, estará concluída até finais do ano. As águas subirão e Hasankeyf desaparecerá.
Calcorreámos as ruas das casas em pedra até não haver mais aldeia. Depois, metê-mo-nos pelo desfiladeiro, onde avistámos a povoação na distância, ao entardecer. E tivemos que ficar mais um dia, queríamos que aquele lugar nunca nos largasse a memória. Andámos perdidos a entrar e a sair das cavernas labirínticas, algumas escavadas com dois e três andares. Atravessámos o rio várias vezes para ver a aldeia noutros ângulos, nas diferentes cores do dia. Fomos às mesquitas e aos monumentos que em breve estarão submersos. Sentá-mo-nos a beber chá com os locais, a ouvir os seus lamentos e a ver a vida passar, dos bancos baixos onde se vê a vida rasa, a vida “terra a terra”…e depois de três dias,voltámos para trás e deixámos a aldeia, a sentir que parte de nós também se iria afundar. Estes sítios que morrem são de todos e, quando eles desaparecem, revela-se, mais do que se esconde, do que somos e não deveríamos de ser. Parte do que permitimos em nome de pretextos confortos e necessidades que não devíamos de ter. Estes sítios falam, mesmo do fundo do rio, adormecidos pela sua corrente e… Falam da nossa passividade e indiferença, a nossa propensão para o esquecimento.
Sukru e os paradoxos da nação
-“À noite, no verão, quando tinha uns seis, sete anos, íamos dormir para o telhado. O calor era muito e ali era o único lugar onde conseguíamos dormir. Naquele monte – e apontou o braço para o seu lado direito onde se via o perfil de uma das montanhas que abraçavam a pequena aldeia enfiada no fundo do vale – era onde estavam as forças do PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão). Naquele outro monte, no lado oposto – agora apontando para o seu lado esquerdo – o exército Turco. Adormecíamos no telhado a ver a noite iluminada pelo traços do tiros nos céus, como estrelas cadentes… de um lado para o outro.”
– “E não tinham medo que vos caísse um tiro ou uma bomba em cima?”
– “Na verdade era tão normal, que nem pensávamos muito nisso. De manhã, geralmente, era como nada se tivesse passado… Foram anos difíceis. Alguns morreram, outros, levaram-nos para interrogações, foram torturados. Grande parte acabou por emigrar. As coisas estão bem melhores para os Curdos…eu sei que muita gente é contra este governo, mas os Curdos têm beneficiado. Agora há mais trabalhos. O Curdo já é ensinado na escolas. Temos mais direitos reconhecidos… mais dignidade.”
Fomos parar à casa do Sukru no final do dia quando passámos pela sua aldeia –Pinardere, em busca de uma mercearia para acrescentar ingredientes ao jantar da noite. Um convite para um chá tornou-se num convite para o jantar e para passar a noite e, com as nuvens cinzentas a prometerem chuva, o convite não podia ter surgido de forma mais oportuna.
Sukru era um homem novo, moreno de olhos sagazes com voz rouca de timbre sedutor. Na sua boca formava-se um sorriso bonito de gaiato traquino quando falava das coisas que o faziam feliz, como a sua mulher Eylif, a sua pequena filha de ano e pouco – Ada, as suas galinhas e os seus estudantes. Não era muito alto, mas a forma gingona como andava e as roupas que vestia, destacavam-no dos outros habitantes da pequena aldeia, como alguém moderno e progressivo. Entre a sua boca e as suas mão parecia haver um cigarro constante.
Ficámos surpreendidos com o inglês que falava, preenchido com os maneirismos da classe trabalhadora britânica que invade os resorts da costa sul da Turquia, num pacote que lhes encapsula 10 ou 15 dias da vida com sol barato que lhes tosta a pele branca; a praia de postal e mar turquesa (embora a piscina acabe por ser mais conveniente); os restaurantes com menus de comida inglesa; os bares com as mesmas músicas que ouvem nos bares em casa; as ruas de luzes fluorescentes de souvenirs com imitações baratas das marcas que veneram; e a hospitalidade Turca, essa gente simpática, hospitaleira que nunca chegam realmente a conhecer, salvo pelos empregados de mesa que os servem e lhes entretêm os serões. Foi assim que Sukru aprendeu os seus “init mate”,”luv”,” awight” e outras preciosidades da oralidade como manifestação separadora das classes (leia-se tribos – que soa bem melhor) humanas.
-“Foram anos loucos,com muita festa, muitas noitadas…tudo muito intenso, init?”
(Dá para imaginar).
De regressou à pequena aldeia de Pinadere, casou com a vizinha, a bela Eylif, uma rapariga pacata e muito simpática, de olhos grandes e intensos e uma tendência obsessiva para as limpezas.
– “ O trato que tenho com a minha mulher é simples: ela é responsável por manter a casa limpa, cozinhar, tomar conta da pequena Ada. Não quero que trabalhe fora de casa. Eu trabalho e sustento a família. Acho que é um bom trato.”
(Certo).
O que pensava Eylif sobre o trato nunca o chegámos a saber porque o seu inglês era praticamente inexistente. Mas o paradoxo era evidente: ao cavalgar a onda que a leva em direcção à grande potência económica e país moderno que pretende tornar-se e ao ser confrontada com outras realidades e outros contextos sociais é curioso notar que a Turquia se está a tornar numa nação extremamente conservadora. Dizem que a culpa é do governo que parece caminhar em direcção ao governo vizinho Iraniano no que toca à aniquilação do estado secular. A familiarização com as realidades e, sobretudo as liberdades do mundo dito ocidental, não fazem mais do que repelir a vontade de espelhar essas liberdades – Sukru espelha bem isso. Nem sempre as liberdades fazem sentido, ou porque não se está preparado para elas, ou porque não se consegue fazer sentido delas, ou simplesmente porque como homem, essas liberdades, ainda podem ser uma questão de escolha.
Na manhã seguinte, depois de um pequeno almoço generoso, ainda tivemos tempo para ir animar os seus alunos e colegas – Sukru era professor de inglês na escola primária e secundária da aldeia. Partimos ao final da manhã, rumo a Mardin – a cidade altaneira, no top das planícies do médio-crescente, agora ressuscitada dos escombros do conflito entre curdos e o exército turco. Seguimos as nossas pedaladas debaixo de chuva e chegámos à cidade depois de uma subida íngreme e do arrastar das bicicletas em sentido contrário pelas suas ruas de empedradas, à procura de um quarto barato, que parecia não existir.
Nas próximas histórias, entre Mardin, Urfa e a chegada à costa depois de quase um ano de ausência, mais histórias da estrada entre pedras, castelos, ruínas romanas e acampamentos merecidos.