Vem lá tempestade
Uma coisa é certa: se um azar está para acontecer, irá acontecer na pior altura.
No ziguezague do alcatrão esburacado, o vento amargo esculpia formas de gelo aguçadas na neve que tinha ficado presa nas ramas das árvores. Nas varandas da estrada via-se o sol a tentar despontar, com os seus raios a iluminar lá longe uma aldeia ou uma colina amarela, mas, por cima de nós, no nosso pedaço de céu, pairavam nuvens cinzentas prestes a descarregar as suas formas densas sob as nossas cabeças. A subida fazia-se na lentidão das pernas a contrariar a força do vento, mas numa curva mais inclinada a corrente da minha bicicleta, agora entregue aos dotes (eu diria circenses) do Nuno em pedalar o impedalável – voltou a rebentar.
Parámos à beira da estrada para remendar a já curta corrente, mas as mãos do Nuno, que depressa enregelaram, tornaram-se pinças desajeitadas e inúteis para fazer a união precisa dos elos. O fogão aceso foi a solução que nos ocorreu, mas o vento, determinado nas suas investidas, transformava a chama bruxuleante num modesto consolo e as mãos continuaram geladas e incapazes. Mais uma rajada e o céu pesado desabou. Primeiro soltaram-se umas gotas tímidas que depois ganharam certezas e se tornaram flocos de neve bem formados remoinhando ao vento. Precisávamos de abrigo – mas onde no meio da montanha desabrigada e sem poder pedalar? Seguir, mesmo empurrando, não era aconselhado. Voltar para trás em busca de algum abrigo era a única solução que nos ocorria, sobretudo, porque podíamos aproveitar o embalo da descida.
A bondade onde não se espera – o Sr Raymond
Uns quilómetros mais abaixo, umas construções em cimento inacabadas e com ares de abandono reapareceram – seguimos no encalce da sua guarida. De uma delas, a mais pequena, saiu um homem de meia idade. O seu ar de preocupação ao avistar os estranhos invasores, cedo deu lugar a um ar de “venham para dentro que este frio não está para brincadeiras”. Não foram necessárias grandes explicações, com o nevão que se formava já lá fora e a ventania desassossegada, dois seres a empurrar duas bicicletas só podiam andar à procura de uma coisa: abrigo. A casa para onde nos levou, que mais não era do que um barraco de uma divisão, era o local onde vivia, mas haviam outras casas com melhor aspecto e que mais tarde viemos a saber fazerem parte de uma espécie de projecto turístico em construção, o qual o senhor Raymond guardava nos meses de inverno, quando permanecia encerrado.
Pouco ali dentro havia, incluindo calor ou luz, mas o que havia foi partilhado. Chá quente apareceu em cima da “tapchan” (uma espécie de cama mesa), – a única mobília existente sob o chão de terra calcada e, no velho fogão que se acendeu, o senhor Raymond colocou um tacho chamuscado e amolgado que começou a fumegar libertando os aromas do que se aquecia lá dentro.
Naquele quadro de bondade alheia, foi-nos impossível declinar a sopa que nos foi oferecida, mas mesmo não sendo muito esquisitos com a comida, foi doloroso engolir o caldo com sabor forte a carneiro velho e a ranço dos nacos de gordura que boiavam no líquido, oriundos das partes traseiras que os ovinos por estas partes têm, e se confundiam com os pedaços de pão também mergulhados na sopa. Quando aliviados víamos já o fundo à taça, o senhor Raymond agarrou nelas e voltou a enchê-las sem que pudéssemos encaixar um “não queremos mais, obrigado”.
Através da muita mímica do nosso russo minimalista ficámos a saber que o senhor Raymond tinha 46 anos, que tinha lutado na Ucrânia, na guerra que esta travou com a ainda União Soviética, que não tinha filhos e que era viúvo. O seu olhar, no escuro daquelas quatro paredes, era de solidão, de quem parecia ter desistido de sonhar, mas a partilha de tudo, que era o pouco que tinha, ficou-me marcado como uma lição de vida que espero não esquecer: a pobreza está no espírito e não na falta de coisas que não se possuem. Pobreza é não partilhar, sobretudo quando se tem, ou quando se partilha por se esperar algo em troca.
Quando o sol se pôs e já mal distinguíamos as nossas formas na pequena divisão, fomos dormir. Tivemos que insistir que ficávamos no chão, o senhor queria que dormíssemos na “tapchan” – a sua cama. Foi uma noite fria com o vento a entrar pela janela de plástico, debaixo da qual nos deitámos dentro dos sacos de cama e das mantas que haviam na casa. Isso, e as muitas idas à casa de banho, que era a da nossa escolha no manto branco lá fora – os litros copiosos de chá, era já certo e sabido, que não se aguentariam na bexiga a noite toda. De manhã bem cedo, o tacho amolgado voltou ao fogão e mais uma vez tivemos, sem ter como declinar, que comer a rançosa, mas bem intencionada sopa de carneiro. Despedidas feitas com agradecimentos insuficientes, seguimos montanha acima de corrente remendada e o nascer de sol poético a iluminar-nos as pedaladas na estrada emoldurada de branco.
Samarcanda, em busca das peças perdidas
Samarcanda: o nome desta cidade evoca-nos para tempos onde é difícil separar a imaginação da realidade. Do tempo das caravanas, dos comerciantes imersos em sedas e especiarias, dos monumentos dos mil ladrilhos azuis e grandiosos, das histórias e das estórias…mas à Samarcanda onde chegámos, mesmo na monumentalidade do que sobra, faltava alma. Aqui purgaram-se as ruas do centro da sua vida primordial, deitaram-se abaixo as velhas casas, emparedou-se o antigo bairro judeu, rodearam-se os monumentos com lojas de “souvenirs” alojadas em edifícios tipo “outlet” dos subúrbios e, as arcadas das madraças, os pátios das mesquitas, foram preenchidos com mais lojas de souvenirs. Pelo menos, no frio do Outono, as ruas estavam ausentes de turistas, que certamente as invadem quando as temperaturas sobem.
Na estrada que pedalámos entre Sharikshabz e Samarcanda, a mesma onde na noite anterior tínhamos sido apanhados pela tempestade, o Nuno teve que empurrar a bicicleta nas subidas para ver se a corrente não voltava a quebrar. Chegámos à cidade determinados a rabiscar as lojas por peças que nos permitissem pedalar até ao Irão, onde então, poderíamos finalmente reparar a pobre “burra” com substitutos decentes. Encontrámos o que buscávamos por mero acaso (utilizar a palavra milagre aqui não ficaria fora de contexto) – uma corrente Shimano para oito velocidades e uma roldana guia (a que tínhamos estava tão gasta que estava desdentada em forma de círculo), numa loja antiga onde a luz do sol era filtrada pelo vidro sujo das janelas a iluminar as prateleiras preenchidas com peças usadas e cobertas de pó. Estávamos a mais de mil quilómetros da próxima loja decente na nossa rota e a “burrica” teria que aguentar.
No Bahoudir B&B, onde ficámos alojados por uns dias, recriámos o espírito, não dos comerciantes da rota da seda mas, dos viajantes. A Hélène e o Manu, um casal francês que tínhamos conhecido em Khorog no Tajiquistão também lá estavam, e entretanto apareceu outro francês ciclo-turista simpático com um sentido de humor peculiar, a viver e a dar aulas de inglês na China – o Jeremy. Histórias e gargalhadas não faltaram aos serões da velha pensão, essa sim, cheia de alma, mesmo no frio congelante do seu pátio agora para uso exclusivo dos fumadores (porque os demais não aguentavam o frio).
Um carro cheio de dinheiro…
– Quando comprei aquele carro, e apontou para um “Chevrollet” branco que parecia acabado de sair da linha de montagem – tive de encher o carro velho duas vezes com dinheiro…
– Queres dizer no porta-bagagens?
– Não! O carro cheio de sacos com notas, até no banco do passageiro – duas vezes!
Fazia sentido, uns meros 100 dólares equivaliam a um maço de quase um palmo de notas. O Jeremy, o ciclista francês, contou-nos que tinha trocado cerca de 600 dólares de uma só vez e não tinha agora espaço suficiente nos alforges para carregar tantos “sums”, andava com um saco de plástico cheio de dinheiro em cima das malas traseiras. No Uzbequistão, mesmo que o que se carregue valha muito pouco, a ilusão de se ser de milionário não deixa de ser boa.
Farid e Sherzod, tinham-nos encontrado no mercado de vegetais da cidade de Nurobod, uma ilha urbana no meio das estepes secas e desoladas do sudoeste do Uzbequistão. Uma cidade onde os blocos de cimento degradados, formavam linhas paralelas de bairros da era soviética, na intersecção das avenidas delineadas por castanheiros, mas onde tudo o resto se regia ao ritmo da vida feita no campo. Eram amigos de infância e o inglês que falavam com fluência era uma lufada de ar fresco nas nossas comunicações sempre tão limitadas à superficialidade das poucas palavras que entendíamos e falávamos.
Farid tinha vivido uns anos em Londres, e depois de nos levar até ao salão de festas que montou quando regressou, o chá rápido para o qual nos convidou, transformou-se num almoço de frango no churrasco com um molho divino de alho fresco picado miudinho, umas samosas de carneiro, uns “shots” de vodka e muito chá, como não podia deixar de ser. Enquanto falávamos da compras de carros, a vida em Londres, a vida no Uzbequistão, a família, os negócios, as viagens, iam chegando pares de noivos e os seus amigos mais festeiros, intercalados entre si por uma hora de bailarico e descontracção, antes das celebrações, mais sérias e rígidas com a família dos noivos e os convidados mais velhos, noutra parte da cidade.
Tinha a coisa bem montada: o salão era alugado à hora, e serviam-se samosas, cervejas e gasosas aos convidados que entre uivos e zurros iam dançando à boa moda destas Ásias, de braços erguidos até ao pescoço como se abraçassem um amigo imaginário, ao ritmo de” tecno-russo” ou outros “hits- pop”. Depois partiam para as celebrações mais sérias e, outro casal de esperançosos ocupava o espaço (passaram três enquanto almoçávamos).
A irmã tinha, no edifício contíguo, uma loja de aluguer de vestidos de casamento que comprava na Ucrânia – obras primas da engenharia de vestimentas matrimoniais, de branco imaculado e rococós brilhantes. Tinha também um cabeleireiro e salão para preparar a noiva para o dia, que é como quem diz: encher-lhe a cara de base, depilar-lhe as sobrancelhas numa espécie de arco ogival a fazer lembrar a “Cruella deVille” dos 101 dálmatas, pintar-lhe os olhos até que não se vejam debaixo de tanta sombra, “eyeliner” e pestanas falsas e, fazer-lhe um penteado tão elaborado, com postiços e laca, que a pobre da moça mal consegue mexer a cabeça. São eventos importantes que aliam famílias, reforçam estatutos e vão mantendo a economia local viva, ou em alguns casos, em ruínas.
Quando sentimos a paulada do terceiro” shot” soubemos que era hora de nos fazermos às bicicletas, mesmo com os convites persistentes dos nossos novos amigos para que ficássemos.
Quem é o burro aqui?
Depois de uns trinta e poucos quilómetros na estrada principal entre Samarcanda e Bucara, decidimos fazer um desvio pela estrada de Nurobod. Queríamos quebrar a monotonia da estrada principal, ao lado da qual se estendiam quilómetros e quilómetros de campos de algodão. Fileiras de arbustos castanhos, que se fundiam com o cinzento dos céus – marcas visuais de uma realidade, escondida noutra realidade.
O algodão é uma das fontes de rendimento principais do país, que é o segundo exportador mundial desta comodidade. O problema, entre muitos outros, é que ao estilo herdado da antiga União Soviética, a produção de algodão é controlada pelo estado e, os lucros vão, como seria de esperar, para os lacaios do governo e o senhor Karimov – o presidente na nação. Mas este é só o início da história: o estado determina quotas de plantação, o que quer dizer que impõe aos agricultores que plantem algodão em detrimento, por exemplo, de produtos agrícolas alimentares. Na época da apanha, a população, incluindo crianças, é mobilizada (forçada). A estes factos podemos adicionar o de que o algodão exige bastante água no seu cultivo e, nas planícies secas onde é plantado, ela não existe. Na era soviética foram construídos canais de irrigação ligando os rios principais – o Syr Darya e o Amu Darya – e o mar de Aral, onde desaguam, para levar água a estas planícies de outra forma secas. A parte sul do que foi um dia um dos maiores mares interiores do planeta – o Mar de Aral – jaz praticamente vazia, um evento que é considerado como um dos maiores desastres ecológicos causados pelo homem. E podia mencionar a salinização e a desfertilização de terras aráveis como consequência do uso intensivo de pesticidas e da monocultura, ou a poluição dos cursos de água, mas não é necessário – já se consegue fazer uma ideia do efeito nefasto desta utilização inábil dos recursos naturais, que continua a ocorrer.
O desvio que nos levaria eventualmente até Bucara, levar-nos-ia também para longe destes campos de monotonia tétrica e permitir-nos-ia, saborear um pouco da vida e realidade das comunidades isoladas nesta parte esquecida do país, surpreendentemente acolhedoras e genuínas.
Mas, com tanto desvio eventualmente acabámos meio perdidos. Por estas estradas, sinais não existem e os mapas nas suas teias de linhas, muitas vezes parecem ter as estradas incoerentes de um outro país qualquer – tem que se ter um bom sentido de orientação e/ou, um gps, mas nem sempre estes são suficientes….
Já depois de três dias pela estrada, onde muito esporadicamente aparecia uma povoação em tons que se confundiam com as cores arenosas da paisagem e onde geralmente atestávamos as garrafas com água pedindo nas casas e acabando com os alforges cheios do que houvesse a mais, que podia ser iogurte caseiro, melancias, pão, doces…chegámos a uma encruzilhada onde tínhamos a opção de regressar à estrada principal, perdendo metade dos quilómetros que já tínhamos avançado, ou fazer corta-mato. Ficou decidido o corta-mato porque ninguém gosta de voltar para trás. Sem saber muito bem se íamos na direcção certa, sobretudo porque a estrada era um carreiro semi-arenoso virado para a imensidão plana da paisagem. Uns quantos quilómetros de pedaladas incertas (será mesmo por aqui? – é que andar deserto adentro sem certezas é uma sensação desconcertante). Encontrámos um rapaz, à espera não sabemos de quê, montado num burro, que por sua vez puxava uma carroça amarela – decidimos reavaliar as nossas direcções. Mas, nem o rapaz falava inglês, nem o nosso russo permitia elaborar nas dúvidas que as suas indicações estavam a gerar, só o burro parecia satisfeito ruminando na distracção das sua funções de animal de carga.
Nos entretanto, no carreiro que seria o nosso, começou-se a ver na distância um carro. Decidimos esperar que passasse para confirmar direcções, mas demorou. Vinha carregado com lenha que lhe saia por tudo quanto era buraco e tejadilho. Quando finalmente chegou aos soluços até onde nos encontrávamos, a cena lembrou-me algo saído de um possível filme do Kusturica: dois ciclo-turistas perdidos, um rapaz em cima de um burro puxando uma carroça amarela, um carro a cair aos bocados (era um BMW da década de 70, ou por aí) com três rapazes jeitosos apertados nos dois bancos da frente, no pouco espaço que sobrava entre os arbustos enfiados no veículo, o deserto e o céu cinzento a amplificar o contraste daquela bizarraria toda. Um dos rapazes saiu com grande esforço do carro, puxando as calças que lhe caiam pelo rabo abaixo, à boa moda contemporânea, e veio dar uma olhadela ao mapa que o Nuno trazia na mão, o segundo, enfiado entre os dois bancos da frente com a manete das mudanças e dois garrafões de água entre as pernas, saiu para vir por água no motor, que ao abrir do “capot”, soltou uns esguichos de água e fumo.
Pareciam ter mais certezas sobre as direcções que buscávamos, que não eram, como suspeitávamos, as que o rapaz do burro (que continuava feliz a rumascar na erva seca) nos tinha dado. Com convicção, indicaram-nos que seguíssemos os postes de electricidade. Ainda ajudámos a dar um empurrão ao carro, que pegou hesitante sobre o peso que o afundava no caminho e, cada qual seguiu às suas vidas. Onde quer que fossem. Como quer que fossem.
Bucara e a hora de deixar mais um país
Voltámos a encontrar uma estrada alcatroada passadas umas três horas e, chegámos a Bucara, mais uma cidade património da humanidade, um dia depois. Cinco dias e 330 quilómetros mais tarde, voltámos a encontrar-nos com o Jeremy, que tinha feito uma rota mais longa, e aguardava por nós. “Onde é que se meteram? O que é que vos aconteceu? – Estava a começar a ficar preocupado.” Não havia razão para tanto, somos ciclistas lentos e gostamos de nos entregar aos imprevistos. Para compensar o atraso, cozinhámos uma jantarada de bifes com batatas fritas, cozinhado sorrateiramente na casa de banho do hotel. Pusemos as aventuras em dia – em cinco dias de viagem é possível concentrar muita vida.
O frio e os céus cinzentos, pouco convidativos a deambulações na cidade, não ofuscavam, no entanto, o charme que Bucara ainda tem. Mesmo estando já, no que é a parte antiga, totalmente entregue ao servilismo do turista, ao contrário de Samarcanda, aqui ainda consegui reconstruir o encanto da glória de épocas idas, reflectidas no que sobrou das dinastias Safânidas, Timuridas e uma série de outras. A cidade tem mais de 140 monumentos, entre mesquitas, castelos, antigos bazares, minaretes e foi durante séculos um dos maiores centros de cultura, arte e religião da Ásia Central. Não o será tanto agora, mas o encanto permanece.
Com o visto a acabar, o aro da minha bicicleta rachado (mais um problema a adicionar à lista), iríamos pedalar até ao Turquemenistão, cuja a fronteira estava a menos de 100 quilómetros de Bucara, para uma corrida contra o tempo: atravessar o país em cinco dias, o tempo do visto de trânsito, com uma bicicleta a dar de si. Estaríamos nós e as nossas bikes à altura do desafio? A saber no próximo relato.