Entrada com o orgulho ferido
– Baixa as calças.
– Desculpe?!
Não devia ter ficado surpreendida. Não depois de ter sido o alvo do interesse e do zelo da guarda fronteiriça que, ou queria impressionar o seu superior ou, tinha uma atracção por pessoas do mesmo sexo e usava o poder favorecido pelo seu cargo profissional para se aproveitar (ocorre-me que fosse, talvez, um misto das duas coisas).
Primeiro revirou a mala onde trazia os medicamentos perguntando num inglês macarrónico se tinha narcóticos, enumerando a lista, como se eu não soubesse o que eram narcóticos. Mas digamos que até tinha – quer dizer, à parte de bacalhau salgado, nunca trafiquei nada ilegal entre fronteiras, mas os meus dias de traficante de bacalhau são coisa do passado – supõem-se que alguém que ande a passar carregamentos de substâncias ilícitas entre países admita o seu crime assim logo à primeira pergunta? A mim parece-me que não, mas enfim, que sei eu destas coisas? Não satisfeita com o paracetamol, a ciproflaxina, o imodium, o betadine e a bisnaga de creme para a picadura dos mosquitos que encontrou na minha bolsa dos primeiros socorros, chamou-me à sala de inspecção privada, pôs umas luvas de látex e com sentido de missão e falta de mais sorrisos ou explicações revirou-me a roupa e os bolsos, sem se esquecer de fazer uma vistoria detalhada ao interior do meu soutien.
Quando pensava que o processo desagradável e desnecessário estava terminado, mandou, sem pestanejar, que baixasse as calças. Não sei porque é que fiquei surpreendida, mas fiquei – talvez por não estar habituada a que estranhos me dêem ordens desta natureza e, pudores à parte, pensava que numa situação destas, tivesse que haver alguma suspeita, um cão que cheirou algo e deu sinal, uma mala que passou no raio-x, mas nada…
Ainda me ocorreu recusar, chamar um advogado, ligar à embaixada, os meus direitos, qualquer coisa. Mas depois lembrei-me que estava prestes a entrar no Uzbequistão, que não há embaixada portuguesa neste país e sobretudo a futilidade das minhas exigências: primeiro porque o país é (des)governado por uma ditadura, depois porque direitos humanos é coisa que não estão muito em voga por estes lados e, finalmente, porque o meu sentido prático me disse que negando a vistoria “personalizada” poderia dar a parecer que tinha algo mais a esconder do olho da lei do que as minhas partes íntimas.
De calças arreadas
Baixei as calças. A guarda pareceu satisfeita com o que viu e as suas mãos não saíram da sua cintura o que eu agradeci encarecidamente aos meus santos e anjinhos. Com a roupa de volta ao corpo, a dignidade a regressar-me ao espírito, a esperança de que podia finalmente ir-me embora começou a esboçar-se no meu ser – foi “ sol de pouca dura”.
– Descalça as botas!
Antes de começar a achar que a senhora estava definitivamente a abusar da minha paciência e dos seus deveres e funções lembrei-me que as linhas tortas da vida, cedo se endireitam – é que as botas de uma ciclo-vagabunda, as minhas naquele caso em particular, com cheiro a gorgonzolla “vintage”, eram coisa que não se desejaria experimentar numa salinha tão pequenina e pouco arejada, mas, se a senhora guarda pediu, a senhora guarda é quem manda. E a mulher parecia estar determinada a encontrar alguma coisa mais do que cheiro a chulé e, não satisfeita com os odores a transformar a sala de inspecção numa queijaria, perguntou-me o que era o pó branco que saia das botas – resquícios do tempo em que me preocupava mais com os odores oriundos das minhas extremidades andantes e lhes punha pó talco.
– Narcóticos? – perguntou incrédula e vitoriosa, como quem diz “eu bem desconfiava”. Ó santa paciência. Agarrei nas botas e meti-as debaixo do nariz da senhora guarda – ora tome lá deste narcótico e faça o favor de apanhar a “moca” – parece-me que precisa e pode ser que a parvoíce lhe passe. Passou.
Afastou a bota do nariz com ar enojado. – OK, podes ir!
Ainda lhe perguntei, em tom de gozo, se tinha a certeza, o que resultou num rotundo, “sim”!
– Adeus e até nunca mais!
(Não sei se foi tosse que ouvi, mas reparei que quando deixou a pequena sala deixou a porta aberta).
Nos entretantos o Nuno estava na galhofa com o guarda descontraído que lhe tinha feito a vistoria às malas, ou por outras, que não tinha feito, tão distraído que estava com perguntas sobre a nossa vida de viajantes e o Cristiano Ronaldo (sempre o Ronaldo), comunicadas entre russo quebrado – metade das suas malas nem pela máquina do raio X tinham passado.
As nossas primeiras experiências do país novo, não podiam ser mais diferentes.
Uma coisa era certa: um país que me obriga a arrear a calça como condição de entrada, tem que compensar bastante a exigência, para que eu saia dali impressionada.
Uzbequistão, o país onde os “pássaros” regressaram à gaiola
O Uzbequistão é um país pouco convencional. De certa forma pode dizer-se o mesmo de todos os países da Ásia Central, nascidos nas franjas do império soviético, que aproveitaram o desmembramento da hegemonia da grande potência para proclamar a independência, na década de noventa.
O que aconteceu, excepto no caso do Quirguistão que é algo diferente mas que ainda assim padece dos mesmos sintomas, foi como se alguém tivesse aberto a gaiola, mas o pássaro tivesse decidido regressar e fechar-se de novo nela. Tão habituados e dependentes que estavam do sistema soviético, os líderes independentistas destes países foram incapazes de se adaptar e lidar com a possibilidade de novas liberdades, ou por outras, as novas liberdades não lhes convinham já que estavam bem instalados nos lucros da antiga ordem das coisas. O que aconteceu foi um mero reinventar das premissas autoritárias, que resultaram numa cópia funcional da antiga regra soviética, para a esborratar com democracias de fachada, onde a oposição é sufocada (em muitos casos literalmente), a liberdade de expressão é um conceito abstracto e os direitos humanos existem apenas no papel.
Os senhores deste estado de coisas, normalmente nas figuras dos presidentes e dos seus coadjuvantes instalados em parlamentos de brincadeira, são seres omnipresentes. As suas caras estão estampadas em cartazes de propaganda, alegorias distorcidas das suas intenções e obras grandiosas em prol do bem do país (ou das empresas de construção dos seus familiares próximos – tecnicamente falando). As cidades capitais destes países estão repletas de edifícios e obras de utilidade pública questionável, muitos dos que vimos, vazios e parques de canteiros cuidados, com flores de muitas cores e arbustos recortados.
De resto, para quem vê o país a olho nu, o desfasamento entre o que a propaganda política quer fazer crer e o país real, não podia ser maior. As pessoas levam as suas vidas, abstraídas de politiquices, querem paz e sossego. Querem comida na mesa no final do dia. Vivem sobretudo da terra, dos animais e dos biscates. Dinheiro, quando há, é sempre bem vindo, mas provavelmente estão acostumados a não terem muito e a viver a vida de forma simples com o pouco que sempre tiveram. E vivem calados – o estado das coisas, foi algo que raramente discutimos por estas partes. Por indiferença ou por medo, mas provavelmente, pelos dois.
George Bush montado num burro
A monumentalidade acidentada do Tajiquistão tinha ficado para trás. Ainda assim, os primeiros dias de pedaladas no país foram feitos na cauda das montanhas de Boysuntau, parte da cordilheira de Fan que se estende pelos dois países e que no Uzbequistão adquiriu tons rosa, amarelos, ocres da paisagem semi-desértica que as cobre. Uma estrada sobre colinas que subia e descia no alcatrão manso do seu ondulado com ovelhas distraídas entre as ervas amarelas, avançando em intervalos, atrás dos zagais montados em burros cinzentos, com as pernas contornando as suas barrigas e os pés apontados para o céu, coiceando o bucho do animal quando o trote se queria mais largo. Uma ou outra povoação, que se confundia com a paisagem e que desaparecia na escuridão da noite.
Fomos alternando entre noites de campismo e noites em hotéis. No Uzbequistão é necessário apresentar recibos de alojamento à saída do país – uma regra para demover viajantes independentes? Mero capricho burocrático e autoritário? – vá-se lá saber. Mas como estes, por norma, não são rigorosamente verificados, desde que se apresentem uns quantos recibos, é fácil incluir noites sob o manto de estrelas no esquema de viagem. De outra forma, seria difícil atravessar o país de bicicleta já que as distâncias entre hotéis podem ser substanciais, assim como os seus preços (geralmente pouco merecedores do valor cobrado).
Na primeira noite que acampámos no país, escondidos da estrada principal por uns montes, já o sol não era, apareceu-nos um pastor curioso, que veio ver o que fazíamos por ali. Explicá-mo-nos o melhor que conseguimos e satisfeito, depois de ter desistido de nos convencer a ir dormir na sua cabana, desapareceu pela colina. Já era noite escura quando reapareceu, desta vez com uma taça com dois nacos de carne de carneiro cozinhado e duas garrafas de água. Ficámos um pouco à conversa, iluminados pela luz parca das nossas lanternas e o som dos talheres metálicos nos pratos e o nosso mastigar. Na manhã seguinte voltou a aparecer montado num burro, para ver se estávamos bem e dizer adeus, foi aí que reparámos que era a cara chapada do George Bush, filho. Se tinha o mesmo sentido de humor desengonçado e o mesmo patriotismo bacoco – nunca chegaremos a saber.
Mais controles de passaporte
Da segunda vez que acampámos, tivemos que pedalar pela noite dentro porque entre povoações e montanhas não encontrávamos pedra que nos escondesse e ir perguntar às casas por pernoita, naquela ausência de luz, era ir assustar as pessoas. O sítio eventualmente apareceu, no leito seco de um rio.
Na manhã seguinte bem cedo desmontámos acampamento e seguimos. Três quilómetros mais tarde, passámos por um controle de passaporte, mais um, dos muitos pelos quais tivemos que passar nas estradas nestes países.
Como os guardas pareciam distraídos com os carros e os automobilistas, decidimos passar de fininho a ver se a nossa presença era ignorada, mas não tivemos sorte: ouvimos um apito e um grito de um policia pouco impressionado com a nossa tentativa de invisibilidade. Voltámos para trás, com a clara certeza de que estávamos tramados.
O Polícia chamou-nos à parte, para que o seguíssemos. Apontou para uma parede para encostarmos as bicicletas. Depois levou-nos até uma porta nas traseiras do edifício onde indicou que entrássemos. Com as formalidades e a cara de poucos amigos, parecia que a nossa manhã não ia começar da melhor maneira. Quando entrámos, qual foi o nosso espanto, ao perceber que estávamos na cantina do controle policial. No tempo que nos levou a fazer os devidos cumprimentos aos cinco polícias que ali tomavam o seu repasto matinal, já nos tinham mandado sentar, servido chá, pão, dois ovos estrelados e duas salsichas a cada um. Comemos com sentido de dever, mesmo depois de já termos tomado o nosso pequeno almoço, respondendo às perguntas da praxe e percebendo que era só o pequeno almoço que nos queriam oferecer. De barriga cheia, montanha abaixo, ocorreu-nos que nem sequer nos tinham perguntado pelos passaportes.
A vida de viajante é assim. A única coisa certa: as incertezas, mas sobretudo as surpresas e o inesperado! Se um guarda um dia nos pede para baixar as calças, é não desanimar, porque o guarda seguinte, provavelmente, tem um par de ovos estrelados à nossa espera.
Na próxima história, as nossas pedaladas pelo Uzbequistão continuam, na senda das cidades património da humanidade, nos desarranjos da minha bicicleta , generosidade alheia e dos dias passados (perdidos) no deserto.