Falta de memória tem as suas vantagens
Ter-se memória fraca pode ser uma desvantagem, mas nem sempre…O Nuno por exemplo, cuja falta de memória é tão notória que às vezes receio que um dia acorde e não se recorde quem é a pessoa que dorme ao seu lado, neste caso eu, acabou por ter nesta desvantagem uma espécie de vantagem. Há 15 anos atrás, ou seriam há 16, ele não se lembra, esteve no Laos. Agora, de regresso, o país que guarda nas imagens enubladas da sua memória é um país totalmente diferente. E quer seja porque efectivamente já não se lembra de muitas coisas, sobretudo dos detalhes e dos sítios onde esteve, quer porque o país num curto espaço de tempo mudou quase irreconhecivelmente, o facto é que para ele a sensação foi a de estar num país novo.
Vang Vieng, por exemplo, onde chegámos dois dias depois de termos partido da capital, não podia ser mais diferente da pequena povoação por onde tinha passado há uns anos atrás. Nessa altura, quando o Laos tinha acabado de abrir as portas aos turistas, o que recorda é uma aldeia onde o alojamento era na casa das pessoas e poucos ali iam. Hoje em dia são mais de 120 os hóteis e “guest-houses”. Está desenvolvido de tal forma que é irreconhecível mesmo com muito esforço de memória. Mas este “ponto alto” no roteiro turístico do país já foi em tempos um paradeiro de mochileiros em busca de substâncias inebriantes e festas de lua cheia nas margens do rio Nam Song por onde desciam inebriados montados em tubos de pneus . Ao limpar a sua imagem, ficaram as descidas nos tubos pneumáticos, mas foram-se as drogas, pelo menos da forma explícita como eram consumidas no passado, e vieram também as massas de turistas asiáticos, com os seus chapéus exagerados de quem tem pavor do sol, e de quem não consegue viajar sem andar em matilha.
De cara lavada as ruas de Vang Vieng, para além dos muitos bares e restaurantes, estão cheias de carros com vendedoras ambulantes a tentar convencer os transeuntes a comprarem as suas panquecas de banana, ou a já habitual parafernália de souvenirs turísticos. E, do mais bizarro, das coisas bizarras que vimos até hoje no universo dos viajantes contemporâneos, foi a quantidade de restaurantes, com filas de assentos rasos almofadados, onde os mochileiros reviam hipnotizados, episódios da série americana “Friends” nos muitos ecrãs panorâmicos. Verdadeiramente surreal – ir até uma povoação nos confins do Laos para estar sentado em frente a um televisor a ver a série “Friends”. Será este um substituto às substâncias inebriantes? Que forma estranha de entorpecer a mente.
De Vang Vieng a Luang Parbang – Arre, que não se vê nada
Os 240 quilómetros de Vang Vieng a Luang Parabang podem descrever-se como vertiginosos e dramáticos, atravessados por uma estrada sinuosa que segue por entre vales e topos de montanhas. Levámos quatro dias a percorre-los, e quem se mete num autocarro, pode levar mais de nove horas. E sim, era dramático. Dramático o facto de que com tanta fumarada se ver tão pouco. No perfil do horizonte delineavam-se os contornos de várias montanhas de cumes aguçados em tons diferentes de cinzento conforme o seu plano na distância, que desapareciam da paisagem como se alguém tivesse usado uma borracha e as tivesse apagado.
No auge da época seca, e agora que o tapete de selva já não existe, queimavam-se as encostas para fertilizar as terras, no que é de qualquer forma um processo pouco sustentável para o fazer, e o ar, como consequência, era denso e coberto por uma neblina constante. Do céu caiam partículas de cinza como se um vulcão próximo estivesse em erupção. Chegávamos ao final do dia de ciclismo com a sensação de que o tínhamos passado com um cigarro na boca.
Aquelas eram as primeiras verdadeiras montanhas que davam trabalho às nossas pernas desde que havíamos entrado na Tailândia, há mais de 5 meses atrás. Mas agora que finalmente estávamos de regresso não podíamos usufruir das vistas. No entanto, outras recompensas aguardavam por nós. Ao quilómetro 81, a contar de Vang Vieng, chegámos a umas águas termais em Namekene, onde havia, convenientemente, alojamento barato onde decidimos tirar um dia para por o corpo de molho e apreciar a tranquilidade do sítio. Isto sim, ciclovagabundagem ao mais alto nível.
As noites seguintes serviram para dar uso à tenda. Numa ocasião sob a guarida de uns militares jovens que nos deixaram por a tenda num telheiro feito de bambu, o nosso sono foi interrompido diversas vezes pelos focos das motas dos amigos que lhes prestaram visitas nas horas mais infrequentes da noite. O despertar abrupto foi feito ao som de uns tiros matinais com um dos tropas à caça do pequeno-almoço – um esquilo magricela.
Outra noite, ao aproximar de um passe e do final do dia, rabiscámos quatro ovos e uns noodles, numa loja pouco apetrechada para a sua função. Tivemos plena noção de que éramos o acontecimento alto do dia no povoado, a julgar pela quantidade de miúdos, graúdos e canídeos que se assomaram às portas do pequeno estabelecimento para nos observar em plena transacção comercial.
Alforges semi recarregados, seguimos uns quilómetros para nos afastarmos da aldeia e pusemos a tenda na encosta da montanha, ouvindo ainda as vozes das crianças e o cantar dos galos, com o vale chamuscado aos nossos pés. De manhã fomos acordados com o som de chamas a lavrarem não muito longe do nosso acampamento. Desmontámos a tenda à pressa e seguimos nos últimos quilómetros até Luang Prabang.
E se a etapa até lá chegar havia sido marcada pelo fogo das queimadas nas montanhas, os dias que passámos na cidade seriam marcados pelo elemento oposto – água, e muita!
Luang Prabang – Feliz Pii Mai
Água, água e mais água, entranhada no corpo e na alma, possivelmente oriunda do Mekong, rio do qual nos despedíamos da melhor forma depois de quase três meses em que foi nosso companheiro de viagem, e que finalmente revelava também a sua cor acastanhada, pela qual é geralmente conhecido.
Chegámos a Luang Prabang recebidos de braços abertos por um dia de sol e céus azuis. E esta pequena cidade com laivos de aldeia grande, com o carimbo da UNESCO, arrecada da nossa parte a designação da cidade mais agradável de todo o Sudoeste Asiático. As suas casas de arquitectura colonial Francesa, as ruas estreitas de arbustos em flor, a miríade de templos dourados com desenhos de banda desenhada nas paredes, a pacatez e a tranquilidade interrompida apenas pelos muitos turistas que ali vão, os bares oásis com vistas para o Mekong de onde é difícil arredar pé…que mais desejar de uma cidade? Só que esta esteja no auge daquele que é o maior festival religioso – o ano novo Budista, Pii Mai, Songkram, o ano novo Laociano…
Muitos nomes, muitas facetas, mas sobretudo muita água. O pretexto é lavar a alma, o corpo, o ano velho, mas no processo, que começa geralmente de manhã com as intenções para as quais foi designado, como a cerimónia da lavagem dos budas, as procissões das oferendas das almas, onde linhas de monges nos seus trajes alaranjados recebem as ofertas dos devotos e as ruas se enchem de um silêncio solene e de gente.
À tarde a coisa descamba e é a guerra total. Da China vêem as metralhadoras de plástico de cores fluorescentes, tão mais prezadas quanto maior for o seu reservatório de água. Mas o armamento da facção local oferece uma clara vantagem, de mangueira em riste e com os baldes sempre cheios não há como vencer e o melhor mesmo é entrar no espírito e passear pelas ruas onde reina a loucura, de corpo encharcado e sorriso nos lábios. Depois há inevitavelmente muita beerlao, que como a água, não pode faltar, e música onde mais uma vez o refrão do “sexy lady” do sul coreano Psy se repete até à exaustão.
E assim foram as coisas durante cinco dias, e ao sexto, pudemos finalmente, percorrer as ruas com as roupas secas e sentir um pouco o que é esta cidade em modo seco e de volta ao seu estado normal que é – tranquilo.
Kop chai, lai lai – Adeus e muito obrigado!
Eat, eat! Drink the visky! Eat! Quem tinha o prato vazio voltava a ficar com ele cheio, quer quisesse ou não. E quem tinha o pequeno copo de aguardente de arroz no mesmo estado, voltava a ficar com ele cheio também. Há coisas na vida que não vale a pena contrariar, e hospitalidade genuína é uma delas.
Depois de Luang Prabang seguimos rumo à fronteira do Vietnam. Em Nong Khiaow apanhámos um barco rio acima para a pequena aldeia de Muang Ngoi onde passámos duas noites, e onde não ficámos mais tempo por recear não haver gente suficiente para que o barco saísse rumo à próxima aldeia nos dias seguintes. Foi pena, porque certamente não deve faltar muito para que esta pequena povoação mude de forma irreversível agora que a estrada a ligou ao mundo.
Depois de outra viagem de barco de seis horas, cénica mas muito desconfortável, não sem uma dose suficiente de adrenalina e mau cheiro quando logo no início o nosso timoneiro decidiu apanhar um peixe podre que estava a boiar no rio e o pôs debaixo da sua cadeira, o odor era tão nauseabundo que até os próprios locais que iam na pequena embarcação metiam a mão à boca quando o vento trazia lufadas do aroma pestilento. Para nossa surpresa, que pensávamos que o peixe em decomposição era para fazer isco, ficámos a saber que depois de seco, o peixe ia ser comido.
Mas o importante foi mesmo chegar a terra firme, porque para quem tinha a ideia que a melhor forma de navegar rápidos era numa embarcação de borracha larga com colete salva vidas vestido para o caso de alguma eventualidade, ficou a saber que com muita perícia, rápidos também se fazem em embarcações estreitas de madeira a abarrotar de gente e mercadoria, sem colete, mas com muita vida.
Em Muang Khoua, à procura de alojamento fomos abordados por um senhor bonacheirão que pouco ou nenhum inglês falava, a tentar convencer-nos a ficar na sua “guest-house” mesmo ali já ao lado. O Nuno, que não aprecia este tipo de aproximação tentou ignorar, mas eventualmente, na ausência de encontrarmos um sitio convincente onde ficar, fomos dar uma vista de olhos, e era verdade, ali estava o melhor alojamento da aldeia, vimos todos os outros e podemos comprovar. O nosso anfitrião oferecia quartos rústicos e muito limpos numa casa de madeira, pendurada sob um rio, com vistas para uma ponte suspensa peatonal usada por motas, e com vistas também para as traseiras da aldeia e a sua vegetação tropical que até a faziam parecer um sítio bonito e exótico.
Por ali paravam outros viajantes que acabavam de chegar, ou como nós, de partida rumo ao novo país, o Vietnam. Os jantares foram passados a partilhar histórias, aventuras, dicas, a beber e a comer ao toque das ordens do sr Mano e a acordar no dia seguinte com a boca seca, a cabeça meio a andar à roda, e com o anfitrião a bater-nos à porta com uma chávena de chá quentinho como que a adivinhar o nosso estado no dia seguinte. Manotham Guest House – altamente recomendado para quem ande por aquelas paragens remotas.
E foram mais dois dias a pedalar dali até à fronteira com o Vietnam, conseguindo sempre terminar o dia de pedaladas a tempo de evitar os dilúvios bíblicos com trovoadas tenebrosas que se abatiam no final do dia a anunciar o inicio da época das chuvas. Depois de dois meses de viagem bem preenchidos, dizíamos adeus ao Laos e sobretudo kop chai lai lai, ou seja, muito obrigado na língua desta gente afável e descontraída, da qual agora nos despedíamos.
Pela frente, um mês no Vietnam, duas semanas com a mochila às costas de encontro à Nela, a irmã do Nuno e o nosso amigo Jorge Montez. E mais duas semanas no norte montanhoso do país em cima das nossas burras. Para quem não tinha grandes expectativas, o Vietnam acabou por se revelar de forma surpreendente e inesperada.