As estradas do Camboja são janelas
Hoje em dia viajar no Camboja ainda é como observar uma janela para um universo diametralmente oposto ao universo tecnológico dos países ditos desenvolvidos. É uma janela aberta ao espírito criativo e engenhoso de quem começa a dar os primeiros passos rumo ao desenvolvimento económico, mas que ainda tem um longo percurso pela frente. É um panorama vivo e a cores aos modos de vida associados a quem ainda vive intrinsecamente ligado à terra mas que começa a usufruir e a adaptar-se aos meios à sua disposição, que nem sempre são muitos.
As motas, por exemplo, mais do que meros veículos de transporte, servem para carregar famílias inteiras. São armazéns ambulantes de stock numeroso que pode incluir uma dezena de colchões, camas de casal a cristaleiras. Bacias de plástico multicolores, facas, cestos, restaurantes,tudo se equilibra com a destreza de um artista de circo sobre duas rodas, viajando estrada abaixo, estrada acima,trazendo na sua passagem oportunidades de consumo às comunidades isoladas. Porcos bem alimentados de patas para o ar, gaiolas com leitões e galinhas, vêem por este meio encontrar a sua triste fé rumo ao matadouro na derradeira viagem das suas vidas.
Velhas relíquias motorizadas, que há trinta anos atrás seriam certamente o orgulho dos seus donos, sobrevivem graças ao engenho e espírito de reciclagem. Remove-se o que vai deixando de ter concerto, adaptam-se peças de outros veículos defuntose o resultado é o esqueleto mecânico com um par de assentos, guiador, motor e carroçaria, cumprindo no seu estado incompleto as funções para as que sempre estiveram destinados.
Curiosamente, por razões que nos escapam, o frigorifico ainda não pegou. Talvez por ser uma peça imóvel que não serve para transportar nem a família nem a criação. Para quem experiencia as temperaturas sufocantes e anseia por uma bebida refrescante, tem que se contentar com o que se encontra ao longo das estradas dentro de arcas de plástico de cor laranja ou azul, e esperar que o gelo lá posto não tenha já derretido. Convém também rezar para que a comida que nos calha no prato não tenha tido tempo de ser repasto de moscas, varejeiras e afins. Mas existe uma indústria e comércio de gelo bem vivos. Talvez seja uma explicação mais lógica ao porquê dos velhos hábitos demorarem a morrer. Assim, e mais uma vez, estrada abaixo e estrada acima, vão carrinhas de caixa fechada, a gotejar, vendendo gelo protegido em serradura, num ritual de pára-arranca, carrega gelo, corta gelo, limpa gelo, paga gelo, arranca, pára outra vez…
Em Kampung Cham – chegada ao Mekong
Tentar descrever o que se sente quando numa longa viagem se alcança um marco importante é tarefa inútil. Há coisas que se sentem e ponto final, não se devem descrever para não estragar a magia do que se sente. Às vezes as palavras poluem. Quando chegámos pela primeira vez às margens daquele manto azul e calmo, tal céu virado ao contrário, no final das pedaladas do dia, um misto de surpresa e emoção invadiu-nos. As nossas ideias pré-concebidas deitadas ao vento porque esperávamos encontrar um rio caudaloso e pastoso de cor amarelada, em vez do rio de águas serenas de cor cerúlea. O Mekong é um rio que enfeitiça tudo e todos na sua passagem como se estivesse sujeito a outras leis, a outros princípios de existência. A mãe da água – como a tradução do seu nome à letra indica – uma mulher que a todos encanta e seduz.
Os números descrevem este curso de água como o décimo segundo mais longo do mundo, desde o seu começo no plateau Tibetano até se ramificar em mil dedos de rios, 4350 quilómetros depois, no grande delta do Mekong. O mesmo onde o Camões quase se afoga e perde a sua obra mestra – os Lusíadas. São cinco os países que acaricia na sua passagem: a China, o Laos, a Birmânia, a Tailândia e o Vietname, onde finalmente se encontra com o mar do Sul da China. Com o aumento da população e das necessidades energéticas, planos para o aprisionar e conter ainda mais, alterando irreversivelmente o equilíbrio das espécies que dele dependem, incluindo o ser humano, são bastante reais e iminentes.
Naquele fim de tarde,no dia da nossa chegada, com uma angkor fresquinha na mão, o ceú alaranjado reflectido nas águas, os sons da cidade preguiçosa de Kampung Cham reanimada como música de fundo, era fácil acreditar que tudo estava bem e que a vida seguiria o seu curso lento sem percalços, garantindo vida eterna e imutável ao rio e a tudo o que dele depende, que é bastante.
Dois portugueses a cumprir mais uma “rota migratória”
Ao longo da vida vão-se conhecendo pessoas que logo nos primeiros minutos parece que já as conhecemos há muitos anos. O Fred e a Catarina, são duas pessoas assim. O facto de serem Portugueses ajuda. E o facto de serem viajantes ávidos, ainda mais.
Tendo juntado o útil ao agradável, combinaram o bichinho das viagens com o trabalho sazonal como hospedeiros de bordo, e tal como as rotas migratórias do mundo animal, de onde retiraram a ideia do nome para o seu blog, vão vivendo ao ritmo das suas próprias migrações, ora trabalhando, ora viajando, acrescentando novas rotas ao seu mundo.
E era muita a conversa que tínhamos para por em dia. A América do Sul, onde tinham estado o ano passado, renasceu nas aventuras e histórias que vivemos e partilhamos. O Sudoeste Asiático e os países por onde já tínhamos andado, pareceram-nos ali mesmo ao lado com todas as memórias recentes e peripécias recordadas a aproximar distâncias. Kampung Cham foi o ponto de encontro perfeito no seu langor, nunca impondo a sua presença, mas oferecendo uma boa panóplia de esplanadas improvisadas à beira do Mekong onde saboreamos várias cervejas frescas sentindo o calor das novas amizades e a brisa do final da tarde refrescando as nossas palavras e as nossas gargalhadas.
Na última noite em que estivemos juntos, o que começou como um desafio meio a brincar entre viajantes, levou-se relutantemente à prática – comer um ovo cozido onde no seu interior jazia uma pobre ser quase prestes a ser pinto. Eu e a Catarina preferimos dar parte fraca e assistir de bancada ao espectáculo algo grotesco de observar os nossos rapazes a engolirem uma coisa que segundo as descrições sabia a ovo mas que com penas, bico, olhos e alguns ossos já meio formados, estava longe de o ser. Aqui é o prato que delicia as gentes nos fins de tarde. Comem-nos às meias dúzias de cada vez. Olhando as maçãs de adão do Nuno e do Fred a descer hesitantes nos seus esófagos, ouvir o som seco que fizeram ao engolir aquela massa escura de galinha que nunca o vai ser, ver as suas caras de enjoo, percebi que tanto eu como a Catarina tínhamos feito bem em não alinhar naquela viagem gustativa.
Depois de três dias na sua companhia, o adeus fez-com tristeza mas na perspectiva de que a estrada nos voltaria a unir certamente numa das suas próximas migrações.
Para acompanhar a Catarina e o Fred: rotasmigratorias.com
A ponte de bambu para Koh Paen
Eu pensei em não levar a bike na minha deambulação solitária à ponte de bambú que liga a margem de Kampung Cham com a ilha no Mekong de Koh Paen. A lógica por trás do meu raciocínio era a de que se a ponte era de bambu o acesso estaria restringindo a pedestres. Decidi partir de bicicleta em riste. Logo se veria, afinal, por onde passam pessoas também passam companheiras féis de duas rodas. Ao chegar à ponte, uma linha amarela e longa formada por um emaranhado inventivo de canas, fiquei surpreendida por perceber que não só passavam bikes, como também motas e carros puxados a cavalos. Entretida com a máquina fotográfica a tentar captar o momento, já a meio da ponte, vejo uma mini-van a aproximar-se da entrada desta. “Vai deixar ali os passageiros certamente, que depois terão de a atravessar a pé como eu” – pensei. Não podia estar mais equivocada. O veículo seguiu, atravessando o grande rio, pondo a flexibilidade e a resistência da estrutura ao teste e obrigando-me quase a ter de saltar borda fora por falta de espaço. Assim se fazem as coisas por aqui.
Já na aldeia de Koh Paen, dois dólares mais pobre – eis o imposto ao “farrang” sob o pretexto de que a ponte tem de ser reconstruida todos os anos quando o rio a destrói nas enchentes, percorri os carreiros da aldeia que se encontrava em plena época de secagem de tabaco e da desfolha do milho. Se o país já me parecia bem embrenhado nos meandros da vida rural, ali era sem dúvida o epitomo desta realidade. As casas de madeira construídas sobre pilares que as afastavam do chão e da água na época das chuvas, nas portas das quais se assomavam crianças que gritavam “hellos” impossíveis de não retribuir. Duas ou três vacas a ruminar e outras tantas deitadas debaixo da copa de árvores frondosas, umas quantas galinhas a bicar o chão, o cão procrastinando as suas funções de guarda na milésima sesta do dia, e a família e os vizinhos reunidos, sentados no chão de volta das colheitas, preparando-as para a secagem e armazenamento, sorrisos e histórias partilhadas na intimidade comunitária. As crianças fardadas, com sapatos calçados, camisa branca, calça ou saia azul escura e laçarote ao pescoço, em cima das suas pasteleiras tiritantes a caminho da escola. Monges curiosos, no seu hábito cor de sol poente, dispensados das rezas, sorrindo à janela dos templos. Com cenas como estas às vezes dá-me a sensação de que a vida se desenrola como se alguém a estivesse a pintar diante dos meus olhos, numa palette infinita de cores. O resultado desta pintura, nunca acabada, é sempre de beleza óbvia à qual me é impossível ficar alheia ou de não sentir um eterno privilégio por poder presenciá-la.
De Kampung Cham à fronteira, os últimos quilómetros
Ao todo foram 890 os quilómetros que percorremos ao sabor das nossas pedaladas no Camboja. Que é poeirento já sabíamos. Mas com parte da estrada que acompanhámos ao longo do Mekong, depois de Kampung Cham, por alcatroar e no auge das queimas, entrámos num limiar de poeira diferente – o da nuvem.
Pelo caminho descobrimos os prazeres do sumo da cana de açúcar, líquido verde refrescante, bomba calórica que os nossos corpos sorviam com avidez. As cidades de Chlong e Kratie, verdadeiras relíquias da arquitectura colonial francesa, esquecidas nas margens do Mekong. E as aldeias mais pobres e remotas que vimos no país, quando nos afastámos do rio, rumo às savanas secas e áridas próximas da fronteira.
A nossa memória do país ficará certamente marcada pelas grandes e imperdíveis ruinas de Angkor. Pelos os milhares de “hellos” que recebemos e devolvemos. Pelas estradas planas. Pelos apitos constantes das buzinas dos carros e o hábito perturbante das motas andarem fora de mão nas cidades. No olhar profundo destas gentes ainda marcadas pelo passado sombrio. Pelo pó, claro está. E pelo grande Mekong que continuaremos a seguir no novo país – o Laos.
Diferente. Se faríamos algo diferente? Com certeza. Voltaríamos aqui na época verdejante, depois das chuvas, para que a cor acastanhada e poeirenta que guardamos na memória seja substituída pelo verde intenso dos arrozais. Isso e voltar para ver o Mekong, que como numa troca de cores, carregado de sedimentos, passa a ter a cor da época seca, mesmo seguindo no seu zénite, gerando a explosão de vida nas suas margens.