Mais um país, mais um carimbo
Sobe-se a montanha. Chega-se à área semi desértica onde está um edifício desproporcionadamente grande e onde se efectuam as burocracias fronteiriças. Carimba-se o passaporte. Diz-se adeus ao oficial, que contra todas as expectativas não se fez à propina, e diz-se adeus ao país onde passámos os últimos dois meses – o Laos. Sobe-se a montanha até ao passe, e desce-se, pedalando por uma espécie de terra de ninguém. Outro edifício de ar sério e burocrático aparece do meio do nada. Entra-se, entregam-se os passaportes e aguarda-se num misto de expectativa e ansiedade, o som seco do carimbo a aterrar no papel e a fazer eco na sala quase vazia de outro oficial de fronteira. No tempo que leva a espera, olham-se para os outros que também aguardam, comparam-se feições, repara-se nas peculiaridades de cada um, olha-se para as mãos e os minutos passam. O som seco aguardado ecoa finalmente – as nossas boas vindas estão proclamadas – mais um carimbo. De passaportes na mão seguimos descendo a montanha em cima das nossas bikes. Aqui vamos nós Vietnam.
Novo país, novo mundo
A estrada que nos recebe no novo país é má, esburacada, e contrasta com as estradas do Laos mas na ausência de trânsito e na abundância de árvores, vamos descendo distraídos com as vistas até chegarmos ao vale onde máquinas vão extraindo a terra que eventualmente obliterará o que em tempos foi uma montanha. Voltamos a subir até outro passe, e ao descer, chegamos a um vale largo onde o Vietnam, como o esperávamos aparece: uma pintura de verde vivo de vários tons, retalhada por arrozais de onde se vêem pontos pequeninos, tal formigas, das cabeças das quais saem formas cónicas cor de palha. Na linha longa e estreita que é a estrada, centenas de bicicletas juntam-se a nós, vão em todas as direcções. Os carros e os camiões ansiosos por passar à frente, assinalam a sua presença apitando. Damo-nos conta da diferença óbvia entre o país onde recém acabámos de chegar e o país que deixámos para trás – aqui há muita gente e aqui o ritmo é claramente outro. Aqui vive-se para produzir e trabalhar, todos parecem ocupados a fazer alguma coisa.
Chegámos a Dien Bien Phu, uma cidade Vietnamita de passagem para a maioria dos visitantes, e de importância simbólica na história do país por ter sido aqui que os Franceses, levaram por assim dizer um pontapé no rabo, numa batalha histórica onde perderam, deixando o caminho aberto para a liberação do país dos tentáculos do poder colonial. Deixámos as bikes, e tudo o que não precisávamos para trás numa “guest-house”. Depois enfiámo-nos num autocarro-cama, o meu primeiro, e infelizmente não o último, e demos início à nossa outra etapa no Vietnam como mochileiros e ao encontro da Nela, a irmã do Nuno, que se ia juntar a nós.
Hanoi – a cidade entre “cestos”
O nosso sentimento relativamente a cidades grandes, por princípio, é de não gostar muito delas. Representam o que pretendemos estar longe – confusão, poluição, trânsito caótico, pessoas frias, barulho, consumismo, e tudo a acontecer muito rápido…As cidades não são, se se pensar no assunto, sítios muito saudáveis para se viver, e Hanoi, não é excepção. Mas por várias razões e mais algumas, é impossível não ficar encantado por esta metrópole de mais de 3 milhões de pessoas, muitas das quais parecem estar em cima de motoretas, e onde atravessar uma estrada é algo como praticar um desporto radical.
A analogia que faço para descrever Hanoi é a de a comparar a um dos muitos vendedores ambulantes que lá existem, daqueles que levam dois cestos pendurados nos extremos opostos de uma vara que carregam aos ombros.
Num dos cestos vai tudo o que é moderno, as lojas caras das marcas de luxo, os bairros de arquitectura colonial europeia bem preservados, os grandes viadutos que esquartejam a cidade, os prédios altos espelhados onde as grandes corporações do mundo se representam e alojam, as largas avenidas inspiradas nos boulevards franceses, as gentes cosmopolitas vestidas a rigor com as últimas tendências da moda asiática, que de momento parecem favorecer as cores fluorescentes.
No outro cesto vai o tradicional e tudo que representa o que ainda sobra do passado e permanece bem presente, como a “mélange” de casas antigas com manchas vivas de bolor, os templos entalados entre elas, as lojas sem nome ou ar condicionado, que servem de espaço de vida, os lagos tranquilos ladeados por árvores a arder em flor. No meio, carregando esses dois cestos feitos mundos, estão as pessoas, os jogadores de “xiangqi” , os vendedores, os turistas, os visitantes, as crianças, os novos, os velhos…o elo de ligação, o elo transportador da realidade dupla da cidade e que vivem entre estes dois mundos e os interligam mesmo que estes existam separados por uma linha, agora invisível, entre a parte nova e o centro da cidade velha, antigamente amuralhada.
Vendedoras ambulantes
Quando saímos na paragem do autocarro na cidade antiga, o primeiro bairro por onde passámos, foi o da fita cola. Nem mais. Loja, após loja, com rolos de tamanhos diferentes de fita colante a transbordar para os passeios. Mas há também a ruas dos shampoos, loções corporais e análogos. A rua das bolachas e biscoitos. A rua dos brinquedos. A rua das placas mortuárias. A rua dos sapatos. A rua dos chapéus, e não vou continuar a enumeração porque corria o risco de estar aqui o resto do dia. Nestas lojas, que como no resto do sudoeste asiático servem também de casa, a vida é vivida na rua e no espaço da loja. Na rua poem-se bancos baixinhos e ali, dependendo da hora do dia, se come, se socializa, e se observa a vida a passar. Na loja, é a grande algazarra de mercadoria, onde num dos cantos existe um pequeno templo, noutro, algures, um fogão com um “wok”, e um outro canto improvisado onde se dorme a sesta quando o fluxo de clientela abranda, e o calor aperta.
Para os que não têm poiso fixo para vender, a loja é a cidade inteira. Mulheres de chapéu cónico, percorrem as ruas com cargas desproporcionais às suas estruturas pequenas e delicadas, carregando cestos de frutas, vegetais, carne, até mini cozinhas. Compram as mercadorias, ainda o dia tem laivos de noite, no mercado, para depois revenderem nas ruas. A vida destas mulheres é dura. Longe das famílias, vêem até à grande cidade, para providenciar mais uma fonte de rendimento, quando os arrozais, ou os bicastes do marido, não chegam para por comida na mesa e ter os filhos na escola. Passam dias sem ver a família e dormem em quartos baratos e pequenos que partilham com outras vendedora em situações idênticas. Num bom dia, em chegando o início da tarde já tudo está vendido, mas geralmente só com o chegar da noite o cesto se esvazia – a concorrência é feroz – e se tira o peso dos ombros, por umas horas.
A vida ao nível dos joelhos
E do pouco espaço que sobra depois dos estaminés comerciais montados, as motas e os carros estacionados, está preenchido com mesas baixas e bancos de plástico tão curtos que para os que têm perna alta os joelhos quase tocam nas orelhas. Mas é aí que outra faceta da vida de Hanoi se desenrola precisamente – ao nível dos joelhos. Durante o dia os passeios e as beiras das ruas enchem-se de sítios para comer a famosa comida de rua vietnamita como o Pho – a bendita sopa de noodles, os rolos recheados, as carnes cozidas em caldos aromáticos, o peixe frito, o arroz simples ou frito, o café de enviar foguetões para o espaço, o chá de limão com gelo…tudo se prepara, serve e se consome na rua. E com o calor adesivo que se se sente mesmo à noitinha, o alivio possível só se consegue ingerindo canecos incontáveis de “bia hoi”, cerveja de barril, que escorrega bem demais, e que é estupidamente barata, mas que obriga a ingressões constantes à casa de banho.
Entre museus, “trabalho administrativo”, muitos passeios, a dose diária de bia-hoi e umas boas tempestades eléctricas, os dias passaram rápido e preenchidos. Quando a Nela chegou, já nos sentíamos parte da mobília que era a grande casa Hanoi. De mochila às costas seguiríamos os três Vietnam abaixo, Vietnam acima, relatos que virão nas próximas histórias.